Um curta produzido na quarentena e vencedor do festival on line nos EUA chamado “Filmes Sem Precedentes”. “Quarantine Dog Good Boy” é um curta estranho, bizarro e irônico – a relação com os pets nesse momento de confinamento e isolamento social: para muitos, eles se tornam a companhia constante que compensa a solidão. Mas, como será o ponto de vista do cão ao ver a rotina do entorno mudar e sentir o medo e ansiedade em seus donos? Um curta irônico, porque mergulha na psicologia humana do relacionamento com nossos animais de estimação: como são humanizados como fossem espelhos das mazelas humanas. Porém, eles podem perigosamente refletir de volta o demasiado humano.
A atual quarentena imposta como medida sanitária para enfrentar a pandemia COVID-19 está deixando a todos ansiosos, inseguros (terei emprego amanhã?), amedrontados (terei dinheiro amanhã?) e com pensamentos bipolares entre momentos de confiança (logo passará e sairemos melhores dessa!) e outros de pessimismo (o mundo não será mais o mesmo). Chegando até a prejudicar a qualidade do sono e do simbolismo onírico dos nossos sonhos – sobre isso clique aqui.
Mas, e os animais domésticos? O que será que poderá estar pensando o nosso cão de estimação, percebendo as mudanças em casa como, por exemplo, a presença constante em casa de seus donos? Ou mais do que isso, também sentindo que seus donos estão mais ansiosos e assustados. E que as brincadeiras e truques do cachorro como rolar no chão e dar a patinha não mais os divertem.
Esse é o tema do curta Quarantine Dog Good Boy (2020) do cineasta Michael Reich, vencedor do Festival de Filmes Sem Precentes (Without Precedent 48 Hour Film Festival), festival de filmes on line nos EUA. Feito obviamente nesse período de quarentena, em seu apartamento.
Reich tem duas predileções: primeiro, gostar bastante de animais domésticos. E também de emular nos seus audiovisuais a qualidade daquelas velhas fitas VHS com o esquema de cores danificado depois de tanto uso.
Decididamente, o resultado é um curta estranho, com uma trilha sonora atonal de Dave Salierno com toques de teclado e riffs de guitarra misteriosos, enquadramentos de câmera angustiantes e... excrementos de cachorro sólidos.
O curta
O narrador do curta é o próprio cão chamado Martin, “um bom garoto perdido”, confuso com a mudança da rotina na quarentena, perplexo. Ele descreve em voice over como era sua rotina antes de tudo acontecer: passar os dias comendo ração e saindo para passear, enquanto seus donos amorosos o afagam e estranhos na rua passando a mão na sua cabeça. “Bom garoto”, todos dizem.
“Mas os dias atuais estão muito diferentes”, observa o pobre Martin. “As pessoas saem menos para caminhar, ficam olhando para as suas telas ansiosos e assistem ao homem laranja [Martin refere-se ao presidente Trump] e sinto desesperança e medo...”.
Martin sente vontade de abraçar seus próprios donos porque sabe que ele os faz felizes: “quando sentem meu pelo na sua pele, aqueço seus corações humanos”, diz pungentemente o cachorro.
Porém, tudo mudou. Os dias parecem sempre iguais (“cheiram igual”, diz) e os donos de Martin parecem não mais ligar para as brincadeiras e truques do triste cão.
Até que veio um dia especial: sua dona colocou “plástico no rosto e nas mãos” e levou Martin para passear. Para Martin, pareceu que tudo tinha voltado ao normal. “Good boy”, diziam pessoas na rua que passavam a mão na cabeça de Martin.
Martin sentia a felicidade de estar vivo e que tudo seria bom novamente. Porém... deixemos que o leitor veja por si próprio o desfecho desse estranho curta.
Com certeza, o espírito do curta é a ironia com pitadas de humor negro. Sobre como os animais de estimação imergem cognitivamente no mundo dos humanos, tornando-se um reflexo não só do dono, mas da própria sociedade – tal como no fetichismo, projetamos nos bichinhos nossas próprias personalidades, desejos ou frustrações e vemos nos seus olhos nosso “demasiado humano”.
O leitor deve se lembrar do filma As Aventuras de Pi (Life of Pi, 2012): numa das sequências iniciais é encenada essa relação fetichista humana com os animais - que, de resto, será com a própria Natureza, como depois discutido no filme quando Pi fica perdido no oceano.
O protagonista leva um pedaço de carne para o tigre-de-bengala Richard Parker preso em uma jaula no zoo da família. Ele acredita que o tigre possui uma alma e que virá docilmente comer a carne em suas mãos. Quando o tigre já está ameaçadoramente próximo, seu pai o arranca de frente de jaula e diz enfurecido: “Acha que esse tigre é um amigo? Ele é um animal, não um boneco!”. “Animais têm alma, eu vi nos olhos dele”, responde Pi chorando. “Animais não pensam como nós... Quando olha nos olhos dele você vê suas emoções refletindo de volta, nada mais!”, dispara o pai.
Estudos de cognição dos animais em geral, e dos cães em particular, são agora uma indústria em crescimento. Além das lojas de produtos para pets.
Pesquisas em cognição animal, tomando emprestado o “Inventário do Desenvolvimento Comunicativo MacCarthur”, chegaram a conclusão de que os cães teriam a capacidade mental de uma criança entre dois e três anos. A questão é que os animais agem COMO humanos – assim como Pi, nos projetamos nos animais e recebemos de volta um reflexo de nós mesmos. Ou das mazelas da sociedade como um todo.
Essa é a ironia fundamental do estranho Quarantine Dog Good Boy: esse reflexo pode se tornar mortal.
Ficha Técnica
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Título: Quarantine Dog Good Boy (curta)
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Diretor: Michael Reich
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Roteiro: Michael Reich
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Elenco: Elke Van der Steen, Michael Reich, Martin The Dog
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Produção: Michael Reich
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Distribuição: Vimeo, YouTube, Without Precedent 48 Hour Film Festival
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Ano: 2020
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País: EUA
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