Sempre estamos à espera do futuro, seja no gênero ficção científica na literatura e no cinema, seja nas utopias políticas ou religiosas. Ou então deixamos de acreditar no futuro, por meio de distopias ciberpunks ou totalitarismos tecnológicos. Mas, e se o futuro já aconteceu e nós não percebemos? As maravilhas tecnológicas já foram realizadas, mas ainda a humanidade se debate angustiada com velhas questões universais como morte, solidão, luto, amor e identidade. Na série “Tales From The Loop” (2020-) estamos em uma década de 1980 alternativa em uma cidadezinha pastoral e agridoce na qual os cidadãos convivem com robôs e tecnologias quase extraterrestres com a mesma naturalidade com que experimentam a hora do chá ou fazem a lição de casa escolar. Com delicadeza e calma, cada episódio lida com uma questão universal humana numa abordagem dos temas sci-fi que a crítica vem definindo como “anti-Black Mirror”: não há utopias ou distopias – o futuro já passou e a humanidade ainda se debate com o “demasiado humano” ainda sem respostas.
Seja na literatura ou no cinema, o gênero ficção científica se fundamentou na sugestão de visões de futuros, novos mundos, robôs e tecnologias desconhecidas inacessíveis aos tempos atuais. Até a própria ideia de futuro entrar em crise, dentro daquele período que se convencionou chamar de pós-moderno. Desde então, o gênero passou a ser dominado, por um lado, pelo futuro-retrô nostálgico – o “futuro do passado”; e do outro as distopias como o steampunk, cyberpunk, pós-apocalíptico etc.
O paroxismo dessa ausência de futuro é alcançado no subgênero psicodrama alt sci-fi: os tradicionais tropos sci-fi (viagem no tempo, aliens etc.) são meros pretextos ou pano de fundo para discutir questões dos relacionamentos humanos – Sound of My Voice (2011), Another Earth (2011), Melancolia (2011), Entre Realidades(Horse Girl, 2020).
Mas... espere um momento! E se o futuro não acabou ou jamais foi realizado? Hipótese vertiginosa: e se o futuro já aconteceu e nós nem percebemos, seja porque estávamos hipnotizados pelos mundos futuros cinematográficos ou absorvidos pelos problemas do cotidiano?
A série Prime Video Tales From The Loop (2020-) seja talvez seja a narrativa ficção científica mais interessante da atualidade. A crítica define Tales From The Loop como a série “anti-Black Mirror”: não apresenta distópicos mundos sombrios tecnologicamente totalitários ou ameaçado por apocalipses virais. Pelo contrário, tudo transcorre numa atmosfera pastoral agridoce, em um ritmo mais contemplativo, sem explosões, raiva, ódio, fugas, policiais do futuro ou demiurgos totalitários.
Nos oito episódios da primeira temporada estão lá os clássicos temas sci-fi: loops e ciladas temporais, mundos paralelos ao lado de tratores quânticos, robôs que passeiam por uma cidadezinha e um misterioso laboratório subterrâneo. Há até um quê de Strangers Things. Mas todos esses temas, seres mecânicos e o estranho laboratório que dá emprego e sustento para toda a pequena cidade estão lá com um outro propósito: mostrar que apesar de todo progresso tecnológico as questões universais básicas do ser humano ainda não foram respondidas e causam angústia: solidão, amor, morte, luto, a paternidade, identidade etc.
A série é baseada no livro homônimo do ilustrador sueco Simon Stålenhag: uma série de ilustrações nos subúrbios suecos dos anos 1980, povoado de máquinas fantásticas – braços mecânicos enferrujados, postes gigantes brilhantes, incríveis e estranhas máquinas que convivem tranquilamente com a rotina banal cotidiana.
Visões originais que a série tenta capturar na tela: o futuro parece que já passou, enquanto as angústias humanas continuaram sem repostas ou consolo.
Ilustrações do livro do pintor sueco Simon Stålenhag no qual a série se baseou |
O Filme
Na primeira temporada acompanhamos os pequenos contos que envolvem cada morador de uma pequena cidade de Ohio chamada Mercer. Seus empregos dependem diretamente de uma enorme máquina negra alojada num grande laboratório subterrâneo no interior de um centro de física experimental: o “The Loop”.
O propósito do Mercer Center for Experimental Physics e das diversas máquinas espalhadas pela cidadezinha (velhos experimentos enferrujados, como um orbe abandonado; silenciosos robôs que observam atrás das árvores; torres de refrigeração; estações regularmente espalhadas com relés e disjuntores etc.) não é explicado. Russ (Johathan Pryce), diretor do laboratório, limita-se a dizer que é para “desvendar e explorar os mistérios do Universo” e “tornar o impossível em possível”.
Todas as buscas por repostas concretas que o espectador busque através das mitologias e temas clássicos da ficção científica serão frustradas. Há um futurismo enferrujado onipresente nas narrativas calmas e delicadas sobre as questões universais humanas que acompanham aqueles moradores. Os temas sci-fi apenas servem para catalisar a atenção, como fosse um enigmático quebra-cabeças.
Os contos fugidios do livro de ilustrações do pintor sueco Simon Stålenhag servem de base para as estórias da série – além das intrigantes ilustrações de imagens da vida cotidiana em planícies, onde a vida comum cotidiana convive com estranhas ou gigantescas máquinas maravilhosas.
O livro Stålenhag cria uma década de 1980 alternativa na cidade natal da sua infância: em 1954 o governo sueco ordenou a construção do maior acelerador de partículas do mundo, como parte das pesquisas em tecnologia nuclear na Guerra Fria. Os habitantes daquela longínqua zona rural da Suécia apelidaram o aparelho como “The Loop”. Quando é fechado em 1994, a presença do acelerador e seus gadgets tecnológicos espalhados na região criaram uma geração de crianças para quem robôs, armas de partículas e aeronaves são tão rotineiros quanto a lição de casa escolar ou a hora do chá.
Há pouca trama nos contos curtos, tão fugazes quanto as lembranças de Stålenhag dois gêmeos trocam acidentalmente corpos (seus pais nunca percebem), uma fenda aberta no espaço e no tempo, um impasse entre polícia e uma criança que empunha uma luva que controla um enorme robô.
Em Tales From The Loop os contos de Stålenhag são transformados em episódios sobre as emoções humanas, destacadas na série como estórias principalmente sobre perdas e ausências – pais desaparecidos, um neto se confrontando com a iminente morte do avô, solidão e amor platônico, entre outras. Apesar da cidade respirar uma tecnologia sofisticada e quase extraterrestre, os temas mais universais da condição humana continuam sem repostas: os moradores devem lidar com eles por si mesmos.
Hipertrofia de expectativas
Um exemplo é o terceiro episódio, “Parallel”. Gaddis (Ato Essandoh) é um solitário guarda de segurança do laboratório de Mercer que acaba se tornando parte de um triângulo amoroso em uma realidade paralela. É um episódio com um tema clássico de ficção científica conceitual, mesmo com efeitos especiais limitados a um trator flutuante com aparentes propriedades quânticas, e que nunca se torna adequadamente operacional. O episódio explora um romance homoafetivo adorável e agridoce, mas também expõe o quão nebuloso é o mundo de Tales From The Loop.
Para aqueles que gostam da ficção científica alegórica, que explora os nebulosos anos 1970-80, poderão ficar frustrados: a atenção se concentra no que significa para o personagem Gaddis ser um negro gay em um contexto que lembra uma pintura de Edward Hopper em um mundo paralelo.
O trator, assim como todas as máquinas maravilhosas da cidade de Mercer, novas e abandonadas nas quais os personagens tropeçam a cada episódio nas planícies e florestas, parecem ser subprodutos do “The Loop”. Mas nada é explicado.
As misteriosas imagens da série, assim como nas ilustrações de Stålenhag, sempre sugerem que já passamos pelo futuro, mas mal o percebemos. Para tratar desse tema a série nem apela para o retro-futurismo e nem para cenários distópicos de medo e niilismo. A banalidade da vida cotidiana dos anos 1980 convive com uma misteriosa tecnologia. Por exemplo, o trator quântico é consertado com uma caixa de ferramentas comum.
Aviões, carros, celulares, TVs, rádio, Internet, laptops são máquinas e dispositivos maravilhosos tais como aqueles da cidadezinha de Mercer. Convivemos com essas tecnologias de forma banal, sem nos darmos conta que já são produtos de um futuro paradoxalmente distante – aqueles futuros descritos pelos velhos filmes sci-fi.
Esperando por um futuro que nunca chega (porque já aconteceu) ansiamos ainda por utopias ou distopias. Vivemos uma hipertrofia de expectativas ou um “descarrilamento do presente”, na expressão do filósofo Giacomo Marramao.
Há um certo “descarrilamento” do presente: projetamo-nos continuamente para o futuro ou então voltamo-nos para o passado, sendo-nos impossível encarrilharmo-nos devidamente no presente (idem). É exatamente o inverso dos processos de retenção e propensão, em fenomenologia, como formas de incorporação de passado e futuro no presente – Leia MARRAMAO, Giacomo. Kairós. Apologia del tiempo oportuno. Trad. Helena Aguilà, Barcelona, Ed. Gedisa, 2002.
Descarrilados no presente, não conseguimos responder aos temas mais básicos da condição humana. Esperamos que seja respondido pelo futuro ou por um progresso tecnológico que já ocorreu e não percebemos.
Ficha Técnica
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Título: Tales From The Loop (série)
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Criador: Nathaniel Halpern
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Roteiro: Nathaniel Halpern baseado no livro homônimo de Simon Stålenhag
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Elenco: Jonathan Pryce, Daniel Zolghadri, Rebeca Hall, Ato Essandoh, Paul Schneider
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Produção: Amazon Studios
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Distribuição: Amazon Prime Video
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Ano: 2020-
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País: EUA
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