Após o
inacreditável filme “Rubber” (2010) onde um pneu com poderes telepáticos roda o
deserto em busca de sangue e vingança, o francês Quentin Dupieux nos brindou
com “Wrong” (2012) produção que chega ao ápice da filosofia “no reason” que o
diretor desenvolve para desconstruir não só o cinema como a própria realidade.
Partindo de um plot narrativo surreal (um homem que descobre que seu cão desapareceu
e tenta achá-lo por meio de um método de união telepática homem/cão ensinado
por um guru new age), Dupieux procura fazer um cinema que não
ofereça às pessoas a esperança de que a realidade seja provida de algum sentido.
Para ele, se a vida é caótica e incerta, assim devem ser também as narrativas cinematográficas.
Dupieux acredita que quanto mais surreal e inverossímil forem os argumentos de
um filme, mais “realista” se torna para os espectadores.
Tendemos a pensar
que a vida cotidiana é marcada por papéis sociais, regras e normas às quais
temos que nos encaixar, tornando o dia-a-dia um tédio, sempre à espera de um
feriado prolongado que nos liberte. Vamos ao cinema ou assistimos a um vídeo na
esperança de uma breve escapadela da rotina para procurar nos produtos
audiovisuais algo que dê sentido à nossa rotina desesperançada.
Mas para o diretor
francês Quentin Dupieux é exatamente o inverso: a vida é caótica, incerta, sem
scripts definidos, sempre nos pegando de surpresa. Na verdade a realidade não
faz muito sentido. E vamos ao cinema para assistirmos histórias onde tudo faça
sentido, exatamente como a vida não é. Dupieux procura fazer o contrário: um
cinema que não ofereça às pessoas a esperança de que a existência tenha algum
sentido ou propósito. Em outras palavras, o diretor francês tenta fazer uma
interessante conexão entre a visão gnóstica da existência com uma desconstrução
da linguagem cinematográfica.
Quem já assistiu
ao filme anterior do francês, Rubber
(2010) entende bem a sua filosofia do no
reason (sem explicação) que ele quer imprimir em seus filmes: um pneu usado
que um belo dia ganha vida em um aterro sanitário e descobre que possui poderes
telepáticos e telecinéticos, passando a se vingar da humanidade numa trilha de
sangue e cabeças explodidas em um vilarejo global. Dupieux é obcecado pela
ideia de desconstruir matalinguisticamente todas as regras que regem o roteiro
de cinema (principalmente a ideia de verossimilhança), indo além do simples
humor trash, cinismo, ironia e humor
negro. De certa forma, ele tenta recuperar o humor de skatches e gags visuais
do cinema mudo (slapstick)
caracterizado pelo absurdo e surrealismo das situações.
“Wrong”: tempo e espaço são absurdos
Wrong, a
produção posterior a Rubber, leva o
absurdo e o inexplicável à própria textura do tempo e do espaço: um mundo onde
o relógio digital vai de 7:59 para 7:60, onde chove dentro do escritório e lá
fora está ensolarado, onde um palmeira se transforma de repente em pinheiro,
onde uma pessoa supostamente morta reaparece na próxima sequência como se nada
tivesse acontecido etc. Os personagens de Dupieux percebem a anormalidade, mas
continuam levando a vida em frente.
Wrong até possui um plot narrativo, porém bizarro: Dolph Springer (Jack Plotnick) é um cara normal e solitário, desempregado, mas que inexplicavelmente vai todo dia ao escritório para simular que ainda trabalha diante dos ex-colegas atônitos – tudo no meio de uma interminável chuva interna. Até que em uma manhã acorda para descobrir que o seu cão chamado Paul desapareceu. Em meio à ansiedade de tentar descobrir o paradeiro do animal, Dolph liga para uma pizzaria não para fazer um pedido, mas para discutir o conceito metafórico do logo da empresa.
Logo ele encontrará Mestre Chang (William Fichtner), um milionário escritor de livros de autoajuda que acredita na telepatia dos cães e que é um ativista da causa animal: sequestra animais de estimação para devolvê-los dias depois para que os donos aumentem seu amor por eles. Mas algo deu errado com o cão Paul que se perdeu. E os poderes telepáticos que unem Dolph a Paul tentarão salvar o dia...
A filosofia “No Reason” de Dupieux
Em uma entrevista
concedida para a Film: blogging the real
world, Dupieux esclarece o princípio ontológico para a sua filosofia no reason que aplica a seus filmes:
Você se sente frustrado quando as pessoas dizem que filmes como Rubber e Wrong não fazem sentido?
Esse é o ponto! Quase todo filme faz muito sentido. É por isso que nós os chamamos de filmes – eles são muito diferentes da vida. Geralmente em um filme, no final, você se sente satisfeito porque tudo está em ordem e tudo faz sentido. É por isso que você se sente bem depois de assistir a um filme meanstream. Mas do meu ponto de vista a vida real não faz sentido. Todos os dias você experimenta coisas que não estão exatamente no script. Isso é o que estou tentando fazer basicamente... trazer elementos orgânicos conectados aos sonhos e inconsciente. Eu acho que deveria ser o mesmo na vida real. Acho que a vida seria super-chata se tudo estivesse no script (...) Há um monte de espaço a ser explorado, em vez de sempre trabalhar na mesma estrutura do roteiro (Interview With ‘Wrong’ Director Quentin Dupieux: “Almost Every Movie Makes Too Much Sense).
.
Nesse raro
depoimento de Dupieux explicando sua filosofia do no reason cinematográfico ele propõe um interessante jogo
gnóstico-baudrillardiano: o que chamamos de realidade não possui sentido por
não haver um script ou uma narrativa lógica. Ir ao cinema para assistir aos
filmes mainstream nos reforça a
esperança de que, no final, as coisas possuam um sentido. Por isso consideramos
os filmes obras de ficção porque, no fundo, sabemos que a realidade não possui
explicações lógicas. Mas essa oposição que acabamos criando (realidade versus
ficção) paradoxalmente dá uma força simbólica maior à realidade, isto é, a de
que a realidade seja real.
Isso lembra o jogo
simbólico que o pensador francês Jean Baudrillard faz com o imaginário da
Disneylândia como o modelo perfeito do simulacro: um mundo que se quer infantil
para esconder dos adultos que a infantilidade está por todos os lados, tanto na
ficção quanto na realidade.
O que propõe
Dupieux com filmes como Rubber e
Wrong? Que o cinema se torne “realista” no sentido de mostrar que a realidade é
tão sem sentido tanto quanto os próprios filmes. Em outras palavras: não
oferecer aos espectadores o que eles tanto procuram nos filmes hollywoodianos:
narrativas lógicas, verossímeis e realistas que nos façam esquecer de que a
realidade é no reason.
O Cinema e o Deserto
Na condição de estrangeiro,
Quentin Dupieux tem um olhar que consegue compreender os grandes arquétipos da
América. E Wrong explora dois
arquétipos norte-americanos centrais: o cinema e o deserto.
E tudo começa com
o enigmático personagem Mestre Chang do filme Wrong: um cruzamento de hippismo, esoterismo new age,
empreendedorismo e novas tecnologias. Ele é uma síntese da chamada ideologia
californiana que parece ser uma constante nos filmes de Dupieux no seu olhar
arquetípico para a América. Uma bizarra fusão do espírito desgarrado da boemia
hippie de São Francisco com a alta tecnologia do Vale do Silício associado a altas
cargas do espírito neoliberal.
Assim como o Vale
do Silício e as tecnologias computacionais atuais, da mesma forma foi o cinema no
início do século XX na Califórnia. Do espírito do primeiro cinema e do humor
anárquico e non sense dos filmes
mudos de Harold Loyd, Comedy Capers e Buster Keaton, Dupieux vai buscar
elementos para criar o seu método no
reason de desconstruir os filmes e a própria realidade. O sueco Roy
Andersson é outro cineasta que tenta resgatar o humor non sense dessa fase seminal do cinema convidando o espectador a
testemunhar como os papéis sociais podem ser absurdos e sem sentido – Vocês, Os Vivos (2007) e Songs from the Second Floor (2000).
Se Gordo e o
Magro, Chaplin e Buster Keaton queriam mostrar que a realidade era tão sem
sentido quanto seus filmes (dessa maneira, os filmes mudos seriam mais
realistas do que os atuais filmes sonoros e coloridos), da mesma forma Mestre
Chang (o cúmulo da ideologia californiana) é tão sem sentido quanto os geeks do
Vale do Silício.
Além de Mestre
Chang, outro personagem enigmático que parece “amarrar” toda a ausência de
sentido do filme: Mike (Regan Burns), o vizinho de Dolph que desde o início do
filme entra no seu carro e parte “em busca do fim do mundo”, acelerando seu
carro no Deserto de Nevada.
Se a realidade é
sem sentido, o deserto é o grau zero de significado. Um espaço morto que é a
mitologia central na cultura americana. Na sua forma geológica rude,
crua, áspera e seca inspirou diversas narrativas cinematográficas que vão do
misticismo à violência e crueldade como o western, slash movies ou dramas de sobreviventes.
Como já declarou Dupieux quando filmou o filme Rubber no deserto, como espaço morto é
cinematograficamente perfeito, pois tudo é possível. Seria como estar em outro
planeta, onde todas as regras e propriedades terrestres estão canceladas. Para
Dupieux o deserto é a própria metáfora do no
reason. Paradoxalmente é o centro da mitologia realista, utilitarista e
pragmática norte-americana. Aí para ele entraria o cinema hollywoodiano: para
injetar na mente das pessoas a certeza de que a realidade cotidiana é provida
de algum sentido.
Ficha Técnica |
Título: Wrong
|
Direção: Quentin Dupieux
|
Roteiro: Quentin Dupieux
|
Elenco: Jack Plotnick, Eric Judor, Alexis Dziena,
Steve Little, William Fichtner, Regan Burns
|
Produção: Realitism Films, Arte France Cinéma
|
Distribuição: Drafthouse Films
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Ano: 2012
|
País: França
|
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