Nos primeiros minutos do primeiro episódio três adolescentes acordam em uma sala vazia, sem memória de quem eles são ou de como chegaram lá. Há uma máquina de escrever bem visível no canto e gás verde venenoso está saindo do chão. Cães demoníacos aparecem do nada para persegui-los, e um homem com questionável senso de moda oferece sua ajuda mística, mas com um custo ambíguo. Assim começa a série de animação “O Vazio” (“The Hollow”, 2018-20), disponível na Netflix. Protagonistas tentam encontrar o caminho de volta para casa. Mas como encontrar se não lembram do caminho ou sequer o que ela é? Esse é o paralelo que a série faz entre a Jornada do Herói a e condição existencial gnóstica humana, do nascimento até a morte – somos exilados em um mundo paralelo? Em algum limbo pós-morte? Prisioneiros em um game cósmico?
Primeiro Nível do jogo – a Jornada do Peregrino
Quando nascemos para esse mundo chegamos tontos, descoordenados e assustados. Nada lembramos, não sabemos quem somos, onde estamos ou o propósito de tudo a nossa volta. Vivemos em uma espécie de estado de esquecimento, amnésia. Queremos voltar para a nossa casa. Mas o problema é que esquecemos onde ela está ou sequer o que ela é.
Esse parágrafo acima poderia ser a síntese da condição humana pelo ponto de vista do Gnosticismo: tal como exilados que perderam a memória e o caminho da nossa verdadeira casa, estamos nesse cosmos como prisioneiros numa arapuca cósmica criada por um deus que não nos ama.
Porém, esse primeiro parágrafo é a síntese descritiva da abertura do primeiro episódio da série de animação canadense O Vazio (The Hollow, 2018-2020), criação de Vito Viscomi, um veterano roteirista de TV, cujos anos de experiência são postos em prática na série em ritmo acelerados, narrativa confiante e episódios curtos de pouco mais de 20 minutos. O que dá uma incrível fluidez na estória. Bem diferente num contexto atual da Netflix com dramas extensos com mais de uma hora de duração.
O Vazio abre justamente com três adolescentes que acordam em uma sala sem janelas ou portas, sem conseguirem lembrar como pararam ali ou seus próprios nomes – que posteriormente descobrem ao encontrarem papéis com seus nomes em seus bolsos.
Na sala, apenas uma velha máquina de escrever. Os adolescentes são Mira (Asleigh Ball), uma jovem impulsiva e inventiva; Adam (Adrian Petriw), um líder prático e estóico; e Kai (Connor Parnall), impulsivo, engraçado e medroso. São personagens arquetípicos dentro da chamada Jornada do Herói – o heroico e apolíneo Adam; Mira, o feminino sagrado e a voz da Razão; e Kai, o alívio cômico que acompanha o herói.
Como também são arquetípicos as situações e oponentes com os quais se confrontarão na jornada: Minotauros, alusões a contos de fadas como João e Maria, parques de diversões vitorianos, templos com monges zumbis etc. E bizarros biomas os mais variados possíveis como desertos escaldantes com destroços de naves espaciais, uma ilha flutuante cheia de demônios, densas florestas com uma gigantesca árvore falante, castelos guardados por dragões mitológicos etc.
Cada episódio representa uma pequena conquista na busca pelo caminho de volta para casa... o problema é que eles não têm a menor ideia de como é as suas casas. Ao longo de caminho especulam o que é tudo aquilo: será que estão mortos? Estão perdidos em algum universo paralelo? Presos em um mundo virtual, ao melhor estilo Matrix?
A configuração narrativa lembra bem o estilo “caixa de mistérios” de JJ Abrams. Mas há também ecos de séries como Lost, Westworld, mas especialmente Maze Runner – memórias perdidas, mundos ameaçadores altamente estruturados, poderes ocultos etc.
Em cada episódio vamos aprendendo um pouco sobre cada mundo e, principalmente, sobre uma espécie de “Deus Ex Machina” chamado de “Esquisitão” (“Weird Guy”): uma espécie de “ajuda” que sempre aparece nos momentos mais agudos.
Há também um quê da série Rick e Morty (clique aqui) pela sucessão de mundos que o trio deve atravessar. Mas assim como na série de Justin Roiland e Dan Harmond, também em O Vazio os protagonistas vão aos poucos descobrindo a si mesmos: suas habilidades, poderes e expertises que também estavam esquecidos.
Uma diferença essencial entre a jornada do herói gnóstico e do Herói descrito por Joseph Campbell: enquanto do herói clássico está em busca do “elixir” no final, para o herói gnóstico a gratificação não está no final, mas na própria jornada – a descoberta de si mesmo através de uma jornada também interior.
O objeto mais curioso dessa jornada é o mapa que o trio de adolescentes carrega e pelo qual tentam se orientar entre os muitos mundos: o mapa está incompleto. Ou melhor, ele vai se completando na medida em que os mundos são descobertos, paralelo com as descobertas interiores dos protagonistas.
Um mapa icônico e simbolicamente semelhante aos mapas do século XIX como “The Pilgrim’s Progress” ou o “Map of the Various Paths of Life”, alegorias de eventos simbólicos, metafísicos como as provações da fé de um peregrino ou os caminhos da vida do nascimento até a morte. Esses estranhos mapas antigos procuravam servir de guias pessoais para racionalizar e ajudar a entender fenômenos psicológicos e religiosos.
Mapas: "O Vazio" e "Pilgrim's Progress", o mapa da salvação de John Bunyan, 1863 |
Ainda no plano do icônico e simbólico é também emblemática a imagem na camiseta de Adam: uma espiral estilizada – a espiral como o simbolismo máximo da jornada espiritual interior. representa a auto-evolução, a alma ascendente, da matéria ao mundo espiritual.
Além disso, a espiral partilha de uma complexa simbologia do eixo e da verticalidade. Enquanto forma ela enquadra-se perfeitamente no tema da identidade. Por ser uma forma logarítmica, isto é, por crescer de modo terminal sem modificar a forma total constitui-se no ícone da temporalidade, da permanência, do ser através das mudanças.
Os paralelos gnósticos da jornada do herói gnóstico em O Vazio com a própria condição existencial humana desde o nascimento até a morte são evidentes.
Segundo Nível do Jogo – o próprio Vazio – Alerta de spoilers à frente
Na sucessão dos episódios aos poucos vamos, aqui e ali, reunindo evidências sobre a ontologia (onde os nossos heróis estão?) daqueles mundos. Os diversos mundos pelos quais o trio ascende após batalhas épicas são como passagens de níveis. Ou seja, a resposta é a ausência de ontologia, o “Vazio” – aquele mundo é um videogame, confirmando a hipótese consensual dos personagens no meio da primeira temporada.
O tropo é tão antigo como, por exemplo, Batman: The Animated Series que teve seus heróis presos em um mundo virtual há mais de 25 anos. E, é claro, o clássico Tron fez a mesma coisa em 1982.
Depois de saírem vitoriosos do jogo, Adam, Mira e Kai despertam em um estúdio de um game show com uma vibrante plateia e o “Esquisitão” (Mark Hildreth) como o mestre de cerimônias da competição. Do mundo 2D da animação, os protagonistas passam para a realidade 3D da live action, respectivamente atuados por Peter Bundic, Lana Jalissa e Harrison Hude.
É impactante a passagem dos personagens 2D que nos acostumamos a ver nos nove episódios, agora transformados em atores reais. Mas acaba funcionando. Normalmente essas transposições acabam sendo ruins – atores reais vestidos e estilizados tentando se aproximar dos desenhos animados geralmente não não dá um resultado orgânico.
A fala do “Esquisitão”, o animador do game show e o personagem que foi melhor convertido à live action, é flagrantemente gnóstica ao descrever as regras do game:
“Todos vocês sabem as regras... Se empacarem e precisarem de ajuda, podem gritar “ajuda”, que vou ajudar, mas vai custar pontos de energia... Então não usem muito. Como sabem NÃO VÃO LEMBRAR nada disso... Não é DIVERTIDO?”, gargalha para a frenética plateia.
O Sr. Weird Guy é a quintessência do Demiurgo gnóstico: comanda um jogo cósmico que nos induz ao esquecimento ao sermos colocados no seu próprio jogo, para sua própria diversão. O que imediatamente nos faz lembrar do discurso de Milton (Al Pacino), o próprio Diabo personificado como um advogado no filme O Advogado do Diabo (1997):
Deus? Vou te falar, deixe-me lhe dar uma pequena informação confidencial sobre Deus. Deus adora olhar. Ele é um brincalhão. Pense bem. Ele dá ao Homem instintos. Ele lhe dá esse extraordinário dom, e depois o que Ele faz? Eu juro, pra Seu próprio divertimento, Sua própria comédia privada cósmica dos erros. Ele coloca regras contraditórias. É a piada de todos os tempos. Olhe, mas não toque. Toque, mas não prove. Prove, mas não engula. E enquanto você pula de um pé pro outro, o que Ele faz? Ele ri pra caralho! Ele é um escroto! Ele é sádico!
O game show consiste numa imersão radical dos jogadores nos seus próprios avatares – o upload das consciências que são submetidas ao esquecimento: as descobertas das regras, do funcionamento do jogo e de si mesmos somente ocorrerão no transcorrer da jornada – não seria essa a própria condição humana gnóstica?
Como já vimos em postagens anteriores, a hipótese de o Universo ser um game de computador é cada vez mais levada a sério por físicos e pela própria Cosmologia – clique aqui.
Terceiro Nível do Jogo – Falhas de codificação
O trio de adolescentes continua na sua busca do caminho de volta para suas casas. Mas tudo começa pelo retorno ao jogo e, dessa vez, iniciando nas suas “casas” no mundo digital do Hollow – versões criadas a partir das suas próprias memórias.
Claro que estão em uma segunda “encarnação” e ainda acreditam que voltaram ao mundo real. Até irem ao Hollow Headquarters e descobrirem que estão em um novo jogo.
Então, decidem procurar o Sr. Esquisitão em busca de respostas. Mas tudo o que ele tem a dizer é que eles não passam de “falhas de codificação”...
Uma irônica maneira do Demiurgo definir a própria humanidade...
Ficha Técnica
|
Título: O Vazio (The Hollow, série)
|
Criador: Vito Viscomi
|
Roteiro: Vito Viscomi
|
Elenco: Asleigh Ball, Franciska Friede, Connor Parnali
|
Produção: Slap Happy Cartoons
|
Distribuição: Netflix
|
Ano: 2018-20
|
País: EUA
|
Postagens Relacionadas |