“Lassie” se encontra com “Planeta dos Macacos”. É o filme húngaro “White God”(Fehér Isten, 2014), uma fábula brutal sobre cães de rua que se insurgem contra os humanos cruéis e indiferentes. Hagen, um cão mestiço abandonado à morte por um pai mesquinho que quer separá-lo da sua filha, desce ao inferno da crueldade e desprezo humanos na ruas de Budapeste até organizar uma revolta com centenas de cães de um canil municipal. Uma fábula sobre o racismo e a intolerância? Metáfora política da Hungria atual? “White God” vai mais além: lembra para os ambientalistas e protetores dos direitos dos animais que suas batalhas serão vazias enquanto não entenderem uma sinistra dialética – a crueldade contra os animais e a Natureza é o espelho da própria crueldade humana com o outro, reflexo de uma sociedade marcada pela dominação e controle.
Tente imaginar um filme onde a antiga série Lassie se encontra com o clássico filme
de Kubrick Spartacus. Alguns críticos
chegam a compará-lo a uma mistura da atmosfera de insurgência do Planeta dos Macacos com o tom
apocalíptico de Os Pássaros de
Hitchcock. Estamos falando sobre o filme húngaro White God, uma fábula brutal sobre cães de rua que se levantam
contra seres humanos cruéis e indiferentes.
Dentro dos estereótipos da indústria do
entretenimento, a combinação de crianças com cachorros geralmente produz dramas
açucarados ou comédias de situações como Marley, Bethoven ou Bolt. Mas esse
filme definitivamente não é para crianças.
Desde a abertura do filme em flash-foward, onde
vemos a protagonista de 13 anos Lili (Zsofia Psotta) andando de bicicleta pelas
ruas estranhamente vazias de Budapeste até surgir uma onda de cães que correm
ao seu alcance, vemos um mundo visto pelo olhar de um cão que liderará uma
revolta contra a espécie humana, criando um filme com um raro senso de um
misterioso conto de fadas.
A crítica especializada vê em White God uma fábula sobre a escravidão e a intolerância. Ou ainda,
uma alusão à realidade política húngara.
Mas o que observamos na narrativa com apurado senso
fílmico (as cenas da disparada de centenas de cães revoltosos pelas ruas com
câmera portátil em widescreen no nível do solo são de tirar o fôlego) é como as
relações humanas conflitivas e hierarquizadas parecem se refletir sobre a
própria relação que os homens tem com a Natureza, mais especificamente com os
“melhores amigos do homem”.
Pais separados e ressentidos, uma orquestra com um
maestro ditatorial, mafiosos que organizam rinhas mortais de cães, a burocracia
do Estado representados pela cobrança de taxas para manter cães em
apartamentos, pela polícia e um cruel canil municipal etc.
Embora White God faça nos lembrar da Teoria Gaia (a
hipótese de que o planeta Terra é um ser vivo e que ele se vinga dos humanos
que insistem que romper com sua auto-sustentação), o viés do filme é mais
político e concreto – ressentidos por viverem em uma sociedade marcada por
dominação, hierarquia e conflitos, o homem desconta essa dor auto-impingida na
própria Natureza. E no caso, naqueles que estão mais perto de nós: os cães.
O Filme
Lili é filha de pais divorciados, cuja mãe tem que
deixar a cidade por alguns meses em busca de uma oportunidade profissional.
Enquanto isso, deixa a filha aos cuidados de seu pai Daniel (Sandor Zoster), um
inspetor de matadouros que é visto pela primeira vez supervisionando a
evisceração de uma vaca morta – cena simbólica que dá o tom do filme: a
arrogância humana por supostamente ter um domínio inquestionável sobre a
Natureza.
Daniel é impaciente e, em alguns aspectos, um homem
mesquinho. Ele mal tolera o amor de sua filha por um cão chamado Hagen (um
esperto cão mestiço) e é profundamente desconfortável com a ideia de tê-lo
dormindo em seu apartamento. Daniel poderá ficar com Hagen, desde que pague uma
taxa à prefeitura pela licença. Seu ressentimento contra a ex-esposa é
descontado no cão que é expulso – diante dos prantos de Lili, Daniel o abandona
ao lado de uma auto-estrada, certamente na esperança de que morra atropelado.
Daí começa a jornada de Hagen ao inferno. Sozinho,
esquiva-se de carros, busca alimentos e foge da implacável perseguição dos
agentes de zoonose da prefeitura (a popular “carrocinha”), até cair nas mãos de
um cruel treinador de cães para lutar em rinhas ilegais. Aprisionado, Hagen passa então
a ser cruelmente condicionado a se tornar um feroz cão de combate – alimentação
especial com anabolizantes e sessões de surras combinados com exercícios de
musculação para torna-lo cada vez mais agressivo.
Tal como Spartacus de Kubrick, o filme é sobre a
revolta de escravos: na sua primeira e única luta, Hagen mata seu rival – a
montagem dos planos da cena cria uma pungente sensação de que Hagen, ao cutucar
com a pata no corpo do rival já sem vida, sente-se extremamente enojado e
arrependido – Por que fiz isso?!?!, parece pensar.
É o ponto de partida para um plano que será aos
poucos construído, cujo ápice é a libertação de centenas de cães do canil
municipal, onde a revolta ganhará as ruas em um combate de guerrilha contra
atônitos policiais de choque. A lembrança da revolta símia em Planeta dos Macacos é imediata.
Ao fazer o paralelo entre as relações humanas marcadas por conflitos e exploração e a indiferença e violência como esses mesmos humanos tratam os cães, White Dog suscita uma questão: nossas relações com o chamado "melhor amigo do homem" refletiriam as próprias mazelas da sociedade? White Dog parece revelar uma secreta dialética do homem com a Natureza que acompanharia a própria jornada civilizatória humana. É o que veremos a seguir.
Ao fazer o paralelo entre as relações humanas marcadas por conflitos e exploração e a indiferença e violência como esses mesmos humanos tratam os cães, White Dog suscita uma questão: nossas relações com o chamado "melhor amigo do homem" refletiriam as próprias mazelas da sociedade? White Dog parece revelar uma secreta dialética do homem com a Natureza que acompanharia a própria jornada civilizatória humana. É o que veremos a seguir.
Da dialética do esclarecimento à dialética dos cães
O clássico livro Dialética do Esclarecimento dos frankfurtianos Theodor Adorno e Max
Horkheimer revela uma sombria história que correria por trás da construção da
Razão, do Conhecimento e da Ciência que supostamente teria feito a humanidade
sair da ignorância do Mito e da superstição. Para eles, a mesma luz que
ilumina, também é capaz de criar sombras.
Os autores lembram que toda a jornada do
“esclarecimento” (a entrada do homem no reino do conhecimento) foi em meio a
uma sociedade marcada pela violência e dominação. Porém, o poder do saber
reflete a própria violência do Poder em geral: “o saber que é poder não conhece
nenhuma barreira, nem na escravização da criatura, nem na complacência em face
dos senhores do mundo” (ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento,Jorge Zahar, 1985, p. 9).
Assim o esclarecimento resultou em uma armadilha
que em consequência levou o homem a sua própria dominação – o poder do
conhecimento resultou em poder de controle e dominação, solidificando ainda
mais a divisão em classes, hierarquização e conflitos. Conhecimento resultou em
razão instrumental, eficácia e desempenho que submetem os indivíduos à ordem
industrial da linha de montagem e busca de bater metas de produtividade.
Isso implica que a introjeção dessa ordem “esclarecida”
leva ao mal estar e dor que deverá ser descontada no socialmente mais fraco (o
fascismo) e na própria Natureza:
“O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor consideração consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu cautério o último resto de sua própria autoconsciência.” (IDEM, p. 21)
Do cãozinho de estimação que engorda pela comida
enfiada goela a baixo pela carência afetiva do seu dono ao condicionamento
selvagem de um cão treinado para as rinhas, a dialética parece ser a mesma: na
medida em que o homem é punido pela própria armadilha que criou (a sociedade
que confundiu racionalidade com dominação e violência), ele precisa projetar
essa miséria na própria Natureza com destruição, subjugação e crueldade.
Dessa maneira, White God constrói uma fábula ao
mesmo tempo criativa e sinistra: o grande problema do homem é sua relação com o
outro – o próximo sempre será o reflexo da dor auto-impingida e objeto de
revide: cães mestiços (o filme sempre lembra que aqueles cães estão naquela
situação por serem “vira-latas”), a Natureza, os animais, estrangeiros, negros,
minorias etc.
Em outras palavras, a grande virtude do filme é
mostrar de uma forma didática a verdadeira dialética que representa o
imaginário fascista – o outro lado da moeda do esclarecimento: na medida em que
o homem é duro consigo mesmo, se acha no direito de sê-lo com os demais.
White God lembra que todas as batalhas dos
ambientalistas e protetores dos direitos dos animais serão vagas e inócuas se
não levarem em consideração a dialética sombria que está por trás de cada pet
shop, hoteizinhos para cães e pit bulls cruelmente treinados para a violência:
a crueldade com animais e a Natureza é o espelho da própria crueldade do homem
com o outro.
Ficha Técnica |
Título: White
God (Fehér Isten)
|
Diretor:
Kornél Mundruczó
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Roteiro:
Kornél Mundruczó
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Elenco: Zsófia
Psotta, Sándor Zsoster, Lili Horváth, Gergeli Bánki
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Produção:
Proton Cinema, Pola Pandora Filmproduktions
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Distribuição:
Magnolia Pictures
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Ano: 2014
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País: Hungria, Alemanha
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