O espelho global no safári africano do Tocantins

O projeto de um parque temático milionário em pleno Tocantins (Out of África Brasil) promete trazer leões, rinocerontes, antílopes, entre outros, das savanas africanas para um safári no cerrado brasileiro. Definitivamente o Brasil se insere no imaginário da Globalização onde eventos, geografias e culturas se desterritorializam para circular pelo mundo ao sabor dos fluxos financeiros e midiáticos. Nesse imaginário os simulacros do “real” e do “selvagem” parecem ter uma única função: tal qual uma transfusão de sangue, injetar hiper-realidade em um real cujo sentido se enfraquece - o “selvagem” se humaniza como um espelho da nossa própria desumanidade: o parque temático selvagem torna-se mais “real” quanto mais é centrado no “show” da luta dos predadores e presas como lição moral para a nossa “realidade”.

"Brasil e África se juntam depois de milhares de anos que uma fissura nas placas tectônicas transformou o que hoje são dois continentes com características tão semelhantes. Agora já podemos sentir o coração de África no Tocantins." Essa é uma frase retirada do vídeo promocional de um projeto de trazer para o meio do Tocantins um típico safári africano. No projeto orçado em 350 milhões de dólares, em uma reserva de 100 mil hectares seriam colocados mais de 400 indivíduos de espécies como leões, leopardos, elefantes e búfalos. Em pleno cerrado brasileiro teríamos animais vivendo como nas savanas africanas (clique aqui para ler a notícia).

É muito curiosa essa associação entre o deslocamento das placas tectônicas que separaram os continentes por forças magnéticas do interior da Terra e um investimento milionário que pretende reunir novamente África e América do Sul através de um parque temático. Se no passado a deriva dos continentes separou, agora a energia eletromagnética e espectral da indústria do entretenimento vai unir.

Mas será que vai unir mesmo? Ou há uma semelhança irônica desses dois fatos separados no tempo? Em outras palavras, e se no safári do Tocantins estivermos experimentando o mesmo fenômeno de descolamento e desconexão do passado? Continentes foram arrastados pelas forças internas do planeta; hoje culturas e geografias são transformadas em signos pelas forças midiáticas e do marketing para se deslocarem para pontos distantes das suas origens.

Esfinge egípcia em Las Vegas: a cultura
desterritorializada global

No Brasil poderemos ter um verdadeiro safári com autênticos espécimes africanos tendo o cerrado como cenário, assim como a midiatização das favelas brasileiras transformam-se em cenografia em casas noturnas europeias. Assim como em plena Las Vegas surgem réplicas da Torre Eiffel e da Esfinge de Gizé. A indústria do entretenimento transformou tudo em signos que se desterritorializaram para aspirar ao global. Eventos, construções, fenômenos culturais e naturais são arrancados das suas raízes locais para circularem pelo planeta ao sabor dos fluxos financeiros e midiáticos.

O pensador francês Jean Baudrillard chamava esse fenômeno de hiper-realidade: a transformação de lugares, épocas e culturas em cenografias, isto é, não mais representações, mas simulacros (cópias da cópia) das imagens que a TV e cinema fizeram anteriormente do próprio real. E o exotismo do “selvagem” e da África convertidos em safári num parque temático é um exemplo disso.

Globalização do imaginário

O fato de o Brasil atrair esse fluxo financeiro-midiático para a construção de uma reserva temática parece representar o segundo momento da inserção do país na cena da Globalização. O primeiro momento é localizado após a eleição do presidente Collor e o início da abertura econômica do país aos fluxos da financeirização internacional. A década de 1990 seguiu com a forçosa política de privatizações e a compulsória perda de soberania do Banco Central para fazer vistas grossas à volatização financeira e lavagem de dinheiro. Esse é o momento, por assim dizer, duro da inserção do Brasil no cenário econômico e político da Globalização.

No final dessa mesma década acompanhamos a entrada numa segunda fase, mais light: a inserção dessa vez no imaginário da Globalização – signalização generalizada das culturas para que se insiram na circulação global de bens simbólicos como cinema e TV. O chamado “cinema de retomada” com filmes como “Central do Brasil” (1998) e “Cidade de Deus” (2002) adotam uma linguagem cinematográfica internacionalizada que se enquadram às convenções tanto dos blockbusters como de um certo filme “independente” de diretores que aspiram chegar aos grandes estúdios e distribuidoras como um Quantin Tarantino.

Favelas, violência, criminalidade, pobreza etc. são traduzidos a partir das convenções da linguagem internacionalizada (consumo individualizado, personalização, fotogenia, estilização, estereotipagem, narrativas como thrillers, jornadas de heróis ao melhor estilo dos Estúdios Disney, o valor do empreendedorismo, a persistência individual como fator de sucesso etc.), transformando cultura e geografias brasileiras em signos desterritorializados que se encaixam em qualquer lugar do mundo, até como temas decorativos de casas noturnas em algum recanto gelado europeu.

Desterritorialização da favela brasileira em um
bar de música underground na Alemanha

Da mesma forma a África passou pela sua primeira fase dura e violenta: escravidão e colonização. Para depois ter a sua geografia e natureza transformados em cenografia para intrépidos novos “buanas”: apresentadores de documentários em canais de TV como Nat Geo ou Discovery Channel onde a atração não é mais a natureza selvagem, mas as aventuras e perigos a que se expõem os apresentadores – e alguns até chegam a morrer na boca de um crocodilo desavisado!

De violento, o safári adquire aspectos politicamente corretos: não se carregam mais armas, mas agora câmeras fotográficas. Tarzan, macaca Chita, Fantasma e Jim das Selvas foram apenas o início dessa signalização do continente africano para que adquirisse a leveza necessária que permitisse a sua circulação midiática pelo mundo. Hoje, o safári politicamente correto é um dos signos do século XXI: misto de turismo, conhecimento “científico” e de respeito “ecológico”. O selvagem é convertido no exótico-ecológico-educativo: a natureza africana humaniza-se, enquanto os homens se animalizam em guerras, genocídios e miséria.

O “encontro” da África e da América do Sul no Tocantins é sintomático: o Brasil atrai um projeto dessa magnitude por estar já integrado aos circuitos do imaginário da Globalização.

Da história natural ao neodarwinismo

Outro aspecto desse imaginário globalizado é o determinismo tecnológico da interatividade e imersão. Todas as novas tecnologias de comunicação e informação aprofundam esses conceitos que se tornam, hoje, paradigmáticos e presentes em um arco que vai da educação ao entretenimento. Logicamente isso vai contaminar a nossa própria percepção e a maneira como vamos “hiper-realizar” o real.

Veja o caso do museu da história natural e a sua conversão a parque temático. O antigo museu não era apenas estático e pouco interativo: suas representações desajeitadas de épocas ou lugares distantes e animais extintos (empalhamento, letreiros com termos científicos e maquetes) deixavam transparecer que tudo ali se referia ao passado, ao longínquo e o que foi perdido ou que a maioria dos visitantes jamais teria condições de viajar para ver. Esse gap entre o signo e o real transformava tudo em reverência, respeito e mistério.

Com o paradigma tecnológico da imersão e interatividade não há mais passado e distância: tudo já está presente em parques temáticos que reproduzem vida selvagem não mais natural, mas copiada dos estereótipos televisivos e cinematográficos. Epcot Center na Disneylândia-Flórida talvez tenha sido o primeiro desse modelo: mundos pré-históricos, as selvas tropicais, e viagens espaciais – passado, presente e futuro em um único momento, tudo interativo em uma imersão num safári temporal.

O selvagem é domesticado, tudo está disponível e regido pela interatividade do turista-usuário. Tempo e natureza se humanizam, enquanto paradoxalmente o homem torna-se selvagem. Voltando à notícia, o projeto apelidado como “Out of Africa Brasil” prevê predadores e presas vivendo na reserva, sem serem alimentados pelos homens. “Vai ser a cadeia natural mesmo”, diz o médico Nicolau Esteves, encabeçando o projeto.

Esse é o momento paradoxal do projeto e, talvez, de toda a hiper-realidade: transformado em simulacro do que foi outrora a vida selvagem, transforma-se em espelho da desumanização. O que o tornará o safári do Tocantins “real” e “selvagem” é a cadeia natural de predadores e presas e não mais uma territorialidade perdida na África. O entretenimento torna-se um espelho de uma sociedade que reconhece na natureza uma lição “moral” para a vida humana brutalizada: competição, caça e o salve-se quem puder como ideologia abstrata e aplicável a qualquer ponto do planeta.

Assim como os animais de estimação adquirem características do seu dono, o “selvagem” é confinado em parques temáticos para que nos espelhemos na dura lição do darwinismo social – cada um de nós pode ser simultaneamente predador ou presa, associando-se, dessa maneira, à ideologia neoliberal do imaginário da Globalização.

O projeto “Out of África Brasil” cumpre o papel de todos os parques temáticos e reality shows televisivos: como em uma transfusão de sangue, injetar “realidade” em um real que parece já ter perdido o sentido. Assistir aos predadores abatendo as presas ou aos personagens dos reality shows eliminando uns aos outros como uma dura lição moral que temos de aprender: a vida sempre foi assim!

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