Um filme que parece ter
saído de alguma capa de disco heavy metal dos anos 1980, começando pelo pôster
promocional. E que exige do espectador uma entrega ativa, ao invés de
passivamente analisa-lo. Por isso, a maioria da crítica considera “Mandy”
(2018), do diretor canadense Pano Cosmatos, um filme absolutamente insano,
estranho e difícil de ser resenhado. Na verdade, nem seria um “filme”, mas uma
“experiência” non-sense e surrealista com um mix alucinado de referencias a
comerciais, animações, HQs, rock metal e mais da cultura pop dos anos 1980.
Tirando as camadas de exercício de estilo, Cosmatos dá continuidade à reflexão
iniciada no filme anterior “Beyond The Black Rainbow” (2010): as consequências
do “despertar místico” do esoterismo e ocultismo na cultura pop em torno das
viagens alucinógenas psicodélicas do LSD. De como toda uma geração tentou
buscar um atalho para a iluminação espiritual, mas acabou encontrando uma “bad
trip”: o Demiurgo existente em cada um de nós.
"Ela abriu estranhas portas que nunca mais se fecharam"
David Bowie, "Scary Monsters", 1980)
“Essa coisa de ocultismo veio provavelmente
da geração dos anos 60. Os ‘baby boomers’ tentaram encontrar espiritualidade em
ocultas e sombrias regiões. Seus ideais acabaram sendo corrompidos”, disse em
entrevista o diretor Panos Cosmatos quando do lançamento do seu filme de
estreia, Beyond The Black Raimbow, em
2010.
Oito anos depois, em seu segundo
filme, Cosmatos ainda parece não ter esgotado o acerto de contas com toda uma
geração que tentou mudar o mundo procurando dentro de si algum tipo de
revolução espiritual. Como dizia o gnóstico pop David Bowie (ele próprio, um
dos arautos dessa “Nova Era”), “estranhas portas foram abertas e jamais foram
fechadas”.
Mandy (2018) é
muito mais do que um exercício de estilo – com uma atmosfera e fotografia que
parece ter saído dos vídeos VHS dos anos 1980, com inúmeras referencias a
filmes e comerciais de TV daquela década e um Nicolas Cage fazendo
metalinguagem de si mesmo com alusões ao filme Motoqueiro Fantasma.
Mandy é um
filme no qual o espectador tem que relaxar e aceitar os pressupostos do mundo mitológico-pop
que Cosmatos cria: é deliberadamente lento, perturbador e muitas vezes sem
sentido. Mas é principalmente uma experiência imersiva, sinestésica, como um
pesadelo lisérgico de mais de duas horas. Como uma jornada espiritual pode se
tornar uma bad trip de violência, sangue e vingança. Como em Beyond The Black Rainbow.
Mas se no filme anterior, Cosmatos
mergulhou em um sci-fi “futuro do passado” de clássicos futuristas como 2001,
THX 1138 e nos enigmas metafísicos do russo Tarkovsky (Solaris e Stalker), em Mandy temos uma imersão no ocultismo pop
de HQs, capas de discos de bandas heavy metal, pulp fictions de horror e
animações “tokienescas” pastiches de imageries medievais com sci-fi. Como
aquelas capas dos anos 1970 da banda de rock progressivo Yes.
Embora ambientado nos anos 80, Mandy trata das consequências ainda
atuais do chamado “despertar místico” dos anos 1960 caracterizado por uma
espécie de autodivinização de buscar dentro de cada um de nós um luz espiritual
que nos faria conectarmos com o Todo. Utopias tribais, primitivas embaladas por
ácido e psicodelismo cujo impulso transcendentalista era turbinado pelas
viagens alucinógenas e estados alterados de consciência.
Mas toda essa busca pela
autodivinização acabou não encontrando Deus dentro de nós mesmos. Mas o pior do
nosso psiquismo, personificado na figura de um Demiurgo – líderes espirituais,
charlatões, cultos e seitas que parecem reproduzir em escala microcósmica o
drama cósmico da próprio Criação. Passamos a emular deuses tiranos que exigem
rituais de sangue e violência.
O Filme
Nicolas Cage é um lenhador chamado
Red Miller com uma indefectível camisa xadrez flanelada, vivendo em uma casa na
floresta com a sua esposa Mandy (Andrea Risenborough). Além disso, é 1983 e com
inúmeras referencias pop do momento – para começar, o próprio pôster
promocional do filme, lembrando capas de discos do grupo metal Iron Maiden.
A primeira parte da narrativa parece
criar uma dualidade entre Red (um lenhador bruto, de poucas palavras, como se
representasse o peso da realidade cotidiana) e Mandy – etérea, diáfana, lendo
literatura fantástica e trajando camisetas pretas com pentagramas ou de outra banda de metal, o Black Sabbath.
Os momentos felizes de intimidade do
casal não esconde uma atmosfera de tensão, como se preparasse o espectador para
o pior – a floresta ao redor da casa parece sempre misteriosa e escura,
enquanto a figura levemente andrógina de Mandy, com uma cicatriz abaixo de um
olho, completa uma composição misteriosa.
Um dia, caminhado por uma trilha,
Mandy é vista por um aspirante a messias e líder espiritual chamado Jeremiah
Sand, sempre cercado por um séquito de mulheres e homens sociopatas. Torna-se
obcecado por ela e exige que seus seguidores a localizem e a sequestrem, para
se tornar a mais nova integrante da seita. Nesse momento, percebemos o modus
operandi clássico de toda seita: uma liderança espiritual baseada na
humilhação, abusos e intimidação.
Através de uma “pedra de abraxás”, amuleto gnóstico que representa o “Grande
Arconte” (“Arcontes”, seres subordinados ao Demiurgo e que controlam os “365
céus”, segundo Basilides), invocam uma gangue de motoqueiros, aparentemente
espectros demoníacos. Juntos, localizarão e sequestrarão Mandy, enquanto o
marido Red é quase crucificado com arame farpado.
E quem é Jeremiah? Um tipo que olha para si
mesmo diante do espelho e que recebe uma suposta mensagem divina: “confie em
você mesmo”. Por isso, Jeremiah acredita que tem um direito divino de pegar do
mundo o que quiser – seus desejos, suas necessidades, tudo existe no mundo para
servir aos seus interesses. “Fui abençoado com o conforto de ter muitas
mulheres”, regogiza-se, tentando convencer Mandy a embarcar na seita. Antes de
ser morta cruelmente despois de ridicularizar o líder que acredita ser
recompensado: despois de ser um aspirante fracassado a estrela do rock,
acredita que Deus lhe deu uma compensação com a iluminação espiritual.
Depois de se libertar dos arames
farpados, Red descerá aos infernos numa jornada de sangue e vingança, totalmente
surreal e non sense, na qual delírio e realidade se confundem com metalinguagens
de animações “tokienescas”. Procurarará líder que ocasionalmente ordena seus
seguidores a convocar uma gangue de motoqueiros para raptar mulheres como
propriedade e também sacrificar crianças só porque são obesas.
Eventualmente descobrimos que essa seita foi o
resultado de uma “bad trip” de um exótico fabricante de LSD que produz viagens
das quais os usuários não mais retornam.
O “grande despertar místico”
Certamente Mandy é uma continuação da reflexão de Cosmatos iniciada em Beyond The Black Raimbow. Ambos os
filmes são ambientados em 1983. Lá no filme de 2010 há uma referência em
relação à Alquimia com o protagonista Dr. Mercurio Arboria. Como sabemos, a
Alquimia é processo de galgar os degraus que façam retornar às suas origens
divinas a partir da Teurgia: a manipulação da matéria para repetir os mesmos
passos divinos da Criação: “imitar Deus criando vida”.
Já em Mandy, Cosmatos colocou na mira formas de manifestação do fantástico
e do sobrenatural na indústria do entretenimento. Não é à toa que a epígrafe
que abre o filme é essa: “Quando eu morrer, me enterre bem fundo e coloque dois
alto-falantes em meus pés... coloque um headphone na minha cabeça e me deixe
curtir o rock and roll enquanto estiver morto”.
Cosmatos tematiza o “grande despertar místico” através da
cultura pop do pós-guerra, o despertar da geração baby boomer - expressão para designar a geração de filhos nascidos após
a segunda guerra mundial durante uma explosão populacional que se seguiu ao
conflito bélico. Toda uma geração que buscou o Sagrado e a transcendência
através do atalho por meios químicos: a iluminação espiritual sem mais ascese,
mas agora através de um mergulho rápido no interior do psiquismo.
E o interior
escuro do inconsciente não trouxe a conexão tão buscada pela Alquimia: o
caminho de volta à Plenitude, muito além dessa existência. Pelo contrário, o
“grande despertar”, no contexto da indústria do entretenimento e da sociedade
de consumo, fez apenas encontrar o Demiurgo presente em cada um de nós. Como
Foucault dizia, o poder está capilarizado na sociedade, e não apenas
concentrado no Estado ou em agências repressivas.
Ou em termos
gnósticos, a realidade foi seduzida pela ilusão: o atalho místico, fantástico e
espiritualista criado pela indústria do entretenimento apenas reproduziu em
escala fractal o esquema totalitário cósmico de subjugação e dominação. Ainda
mais, potencializado pelo niilismo e hedonismo promocional da sociedade de
consumo: a experiência individualista e narcísica confundida com experiência
espiritual.
Por isso Mandy não é um filme para todos – sob
muitas camadas de ironia, metalinguagem, “gore” e violência, Cosmatos conclui a
reflexão iniciada em Beyond The Dark
Rainbow: o atalho para o Nirvana oferecido pela cultura pop criou experiências
diversas, personalizadas e totalitárias.
Ficha Técnica
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Título: Mandy
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Diretor: Pano Cosmatos
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Roteiro: Pano
Cosmatos, Aaron Stewart-Ahn
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Elenco: Nicolas Cage, Andrea Risenborough, Linus Roache
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Produção: SpectreVision,
Umedia, XYZ Films
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Distribuição: XYZ Films
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Ano: 2018
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País: EUA
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