domingo, setembro 23, 2018

Estranhas portas que jamais foram fechadas em "Mandy"


Um filme que parece ter saído de alguma capa de disco heavy metal dos anos 1980, começando pelo pôster promocional. E que exige do espectador uma entrega ativa, ao invés de passivamente analisa-lo. Por isso, a maioria da crítica considera “Mandy” (2018), do diretor canadense Pano Cosmatos, um filme absolutamente insano, estranho e difícil de ser resenhado. Na verdade, nem seria um “filme”, mas uma “experiência” non-sense e surrealista com um mix alucinado de referencias a comerciais, animações, HQs, rock metal e mais da cultura pop dos anos 1980. Tirando as camadas de exercício de estilo, Cosmatos dá continuidade à reflexão iniciada no filme anterior “Beyond The Black Rainbow” (2010): as consequências do “despertar místico” do esoterismo e ocultismo na cultura pop em torno das viagens alucinógenas psicodélicas do LSD. De como toda uma geração tentou buscar um atalho para a iluminação espiritual, mas acabou encontrando uma “bad trip”: o Demiurgo existente em cada um de nós.


"Ela abriu estranhas portas que nunca mais se fecharam"

David Bowie, "Scary Monsters", 1980)


“Essa coisa de ocultismo veio provavelmente da geração dos anos 60. Os ‘baby boomers’ tentaram encontrar espiritualidade em ocultas e sombrias regiões. Seus ideais acabaram sendo corrompidos”, disse em entrevista o diretor Panos Cosmatos quando do lançamento do seu filme de estreia, Beyond The Black Raimbow, em 2010.

Oito anos depois, em seu segundo filme, Cosmatos ainda parece não ter esgotado o acerto de contas com toda uma geração que tentou mudar o mundo procurando dentro de si algum tipo de revolução espiritual. Como dizia o gnóstico pop David Bowie (ele próprio, um dos arautos dessa “Nova Era”), “estranhas portas foram abertas e jamais foram fechadas”.

Mandy (2018) é muito mais do que um exercício de estilo – com uma atmosfera e fotografia que parece ter saído dos vídeos VHS dos anos 1980, com inúmeras referencias a filmes e comerciais de TV daquela década e um Nicolas Cage fazendo metalinguagem de si mesmo com alusões ao filme Motoqueiro Fantasma.

Mandy é um filme no qual o espectador tem que relaxar e aceitar os pressupostos do mundo mitológico-pop que Cosmatos cria: é deliberadamente lento, perturbador e muitas vezes sem sentido. Mas é principalmente uma experiência imersiva, sinestésica, como um pesadelo lisérgico de mais de duas horas. Como uma jornada espiritual pode se tornar uma bad trip de violência, sangue e vingança. Como em Beyond The Black Rainbow.


Mas se no filme anterior, Cosmatos mergulhou em um sci-fi “futuro do passado” de clássicos futuristas como 2001, THX 1138 e nos enigmas metafísicos do russo Tarkovsky (Solaris e Stalker), em Mandy temos uma imersão no ocultismo pop de HQs, capas de discos de bandas heavy metal, pulp fictions de horror e animações “tokienescas” pastiches de imageries medievais com sci-fi. Como aquelas capas dos anos 1970 da banda de rock progressivo Yes. 

Embora ambientado nos anos 80, Mandy trata das consequências ainda atuais do chamado “despertar místico” dos anos 1960 caracterizado por uma espécie de autodivinização de buscar dentro de cada um de nós um luz espiritual que nos faria conectarmos com o Todo. Utopias tribais, primitivas embaladas por ácido e psicodelismo cujo impulso transcendentalista era turbinado pelas viagens alucinógenas e estados alterados de consciência.

Mas toda essa busca pela autodivinização acabou não encontrando Deus dentro de nós mesmos. Mas o pior do nosso psiquismo, personificado na figura de um Demiurgo – líderes espirituais, charlatões, cultos e seitas que parecem reproduzir em escala microcósmica o drama cósmico da próprio Criação. Passamos a emular deuses tiranos que exigem rituais de sangue e violência.

O Filme


Nicolas Cage é um lenhador chamado Red Miller com uma indefectível camisa xadrez flanelada, vivendo em uma casa na floresta com a sua esposa Mandy (Andrea Risenborough). Além disso, é 1983 e com inúmeras referencias pop do momento – para começar, o próprio pôster promocional do filme, lembrando capas de discos do grupo metal Iron Maiden.


A primeira parte da narrativa parece criar uma dualidade entre Red (um lenhador bruto, de poucas palavras, como se representasse o peso da realidade cotidiana) e Mandy – etérea, diáfana, lendo literatura fantástica e trajando camisetas pretas com pentagramas  ou de outra banda de metal, o Black Sabbath.

Os momentos felizes de intimidade do casal não esconde uma atmosfera de tensão, como se preparasse o espectador para o pior – a floresta ao redor da casa parece sempre misteriosa e escura, enquanto a figura levemente andrógina de Mandy, com uma cicatriz abaixo de um olho, completa uma composição misteriosa.

Um dia, caminhado por uma trilha, Mandy é vista por um aspirante a messias e líder espiritual chamado Jeremiah Sand, sempre cercado por um séquito de mulheres e homens sociopatas. Torna-se obcecado por ela e exige que seus seguidores a localizem e a sequestrem, para se tornar a mais nova integrante da seita. Nesse momento, percebemos o modus operandi clássico de toda seita: uma liderança espiritual baseada na humilhação, abusos e intimidação.

Através de uma “pedra de abraxás”,  amuleto gnóstico que representa o “Grande Arconte” (“Arcontes”, seres subordinados ao Demiurgo e que controlam os “365 céus”, segundo Basilides), invocam uma gangue de motoqueiros, aparentemente espectros demoníacos. Juntos, localizarão e sequestrarão Mandy, enquanto o marido Red é quase crucificado com arame farpado.

 E quem é Jeremiah? Um tipo que olha para si mesmo diante do espelho e que recebe uma suposta mensagem divina: “confie em você mesmo”. Por isso, Jeremiah acredita que tem um direito divino de pegar do mundo o que quiser – seus desejos, suas necessidades, tudo existe no mundo para servir aos seus interesses. “Fui abençoado com o conforto de ter muitas mulheres”, regogiza-se, tentando convencer Mandy a embarcar na seita. Antes de ser morta cruelmente despois de ridicularizar o líder que acredita ser recompensado: despois de ser um aspirante fracassado a estrela do rock, acredita que Deus lhe deu uma compensação com a iluminação espiritual.


Depois de se libertar dos arames farpados, Red descerá aos infernos numa jornada de sangue e vingança, totalmente surreal e non sense, na qual delírio e realidade se confundem com metalinguagens de animações “tokienescas”. Procurarará líder que ocasionalmente ordena seus seguidores a convocar uma gangue de motoqueiros para raptar mulheres como propriedade e também sacrificar crianças só porque são obesas.

 Eventualmente descobrimos que essa seita foi o resultado de uma “bad trip” de um exótico fabricante de LSD que produz viagens das quais os usuários não mais retornam.

O “grande despertar místico”


Certamente Mandy é uma continuação da reflexão de Cosmatos iniciada em Beyond The Black Raimbow. Ambos os filmes são ambientados em 1983. Lá no filme de 2010 há uma referência em relação à Alquimia com o protagonista Dr. Mercurio Arboria. Como sabemos, a Alquimia é processo de galgar os degraus que façam retornar às suas origens divinas a partir da Teurgia: a manipulação da matéria para repetir os mesmos passos divinos da Criação: “imitar Deus criando vida”.

Já em Mandy, Cosmatos colocou na mira formas de manifestação do fantástico e do sobrenatural na indústria do entretenimento. Não é à toa que a epígrafe que abre o filme é essa: “Quando eu morrer, me enterre bem fundo e coloque dois alto-falantes em meus pés... coloque um headphone na minha cabeça e me deixe curtir o rock and roll enquanto estiver morto”.


Cosmatos tematiza o “grande despertar místico” através da cultura pop do pós-guerra, o despertar da geração baby boomer - expressão para designar a geração de filhos nascidos após a segunda guerra mundial durante uma explosão populacional que se seguiu ao conflito bélico. Toda uma geração que buscou o Sagrado e a transcendência através do atalho por meios químicos: a iluminação espiritual sem mais ascese, mas agora através de um mergulho rápido no interior do psiquismo.

E o interior escuro do inconsciente não trouxe a conexão tão buscada pela Alquimia: o caminho de volta à Plenitude, muito além dessa existência. Pelo contrário, o “grande despertar”, no contexto da indústria do entretenimento e da sociedade de consumo, fez apenas encontrar o Demiurgo presente em cada um de nós. Como Foucault dizia, o poder está capilarizado na sociedade, e não apenas concentrado no Estado ou em agências repressivas.  

Ou em termos gnósticos, a realidade foi seduzida pela ilusão: o atalho místico, fantástico e espiritualista criado pela indústria do entretenimento apenas reproduziu em escala fractal o esquema totalitário cósmico de subjugação e dominação. Ainda mais, potencializado pelo niilismo e hedonismo promocional da sociedade de consumo: a experiência individualista e narcísica confundida com experiência espiritual.

Por isso Mandy não é um filme para todos – sob muitas camadas de ironia, metalinguagem, “gore” e violência, Cosmatos conclui a reflexão iniciada em Beyond The Dark Rainbow: o atalho para o Nirvana oferecido pela cultura pop criou experiências diversas, personalizadas e totalitárias.



Ficha Técnica 

Título:  Mandy
Diretor: Pano Cosmatos
Roteiro: Pano Cosmatos, Aaron Stewart-Ahn
Elenco:  Nicolas Cage, Andrea Risenborough, Linus Roache
Produção: SpectreVision, Umedia, XYZ Films
Distribuição: XYZ Films
Ano: 2018
País: EUA

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