A crítica vem definindo
a produção australiana “Upgrade” (2018) como alguma coisa entre a série
britânica “Black Mirror” e o clássico “Robocop” de 1987: em um futuro próximo,
um tecnofóbico (alguém que sempre gostou de “fazer as coisas com as próprias mãos”)
tem sua vida virada de ponta cabeça ao ficar tetraplégico e receber o implante
de um chip de computador que o fará andar novamente, porém com algumas
“atualizações”. Tudo que deseja agora é vingança contra os assassinos de sua
esposa, quando descobre estar em um plot conspiratório envolvendo algum tipo de
espionagem industrial. “Upgrade” é um filme que revela o atual imaginário que
anima o desenvolvimento computacional – Inteligência Artificial e
Singularidade, o momento em que a tecnologia deixa de ser a extensão do corpo
humano para se tornar sua própria negação.
Upgrade (2018)
é um melodrama sangrento de ficção científica que acompanha um homem comum que
passa o tempo consertando um antigo carro esporte em sua garagem. Ele e sua
esposa sofrerão uma emboscada fatal por um grupo de ciborgues que se acham
superiores aos seres humanos – ela morre e ele acaba tetraplégico mas um implante de um microchip trará para ele uma perigosa "atualização".
A partir dessa sinopse o leitor poderá
pensar que o diretor e autor Leigh Whannell tem muito a dizer sobre as relações
do homem com a tecnologia. Mas Upgrade não tem a paciência necessária para
desenvolver a maior ideia do filme: como a tecnologia moderna domina
muito mais os usuários do que nós imaginamos.
É um sci-fi B que lembra alguma coisa surgida do cruzamento entre Black Mirror
e Robocop – como o próprio título
informa, o protagonista de alguma forma será regenerado por uma intervenção
cirúrgica high tech e partirá numa
missão de vingança.
O mais importante nessa produção australiana é
como ela figura o atual estágio do imaginário tecnológico: o chamado
“pós-humano” – versão 2.0 da humanidade, o seu estágio superior por meio da
transmutação dos nossos corpos em máquina, imagens e informação. Porém, há algo
mais: a singularidade – informática, nanotecnologia e robótica evoluem em um
ritmo tão acelerado que desencadeará o surgimento de uma super-inteligência (a
Internet senciente, por exemplo) e a absorção do próprio homem. Que faria um
upload final para essa super consciência, restando uma questão ontológica que
jamais seria respondida: será que migramos para a imortalidade as nossas almas
ou apenas pálidas réplicas digitais de nós mesmos?
Ficções científicas B como Upgrade (assim como o clássico Robocop), pelo seu próprio exagero
“gore” de máquinas e sangue, explicita ainda mais esse atual imaginário
tecnológico. Assim como Robocop
representava todo o imaginário ciberpunk daquela década, Upgrade é um sintoma do atual imaginário tecnológico, cujo
epicentro está no Vale do Silício. Engenheiros e cientistas computacionais à
espera da singularidade final.
O Filme
Upgrade começa
com a velha dualidade homem versus máquina. Grey Trace (Logan Marshall-Gree) é
o “homem que gosta de fazer tudo com as mãos”: um diletante mecânico que passa
horas mexendo no motor do seu velho Mustang – ou coisa parecida. Enquanto suas
mãos estão sempre sujas de graxa, sua esposa Asha (Melaine Vellajo) trabalha
numa empresa de tecnologia e volta para casa em um carro autônomo dirigido
apenas pelo comando de voz – como, aliás, quase tudo na residência do casal.
Gray é um cara que nutre certa desconfiança
com a inteligência artificial e máquinas comandadas pela voz. Até que um dia as
suas desconfianças são confirmadas. À bordo do carro autônomo, sem perceberem
que o veículo foi hackeado e alterado o caminho para um perigoso subúrbio, são
emboscados por uma gangue que por algum motivo estão determinados a executar um
único propósito: matá-los. Asha morre e Grey fica tetraplégico pensando apenas
em dar um fim à sua própria vida – ironicamente terá que terminar os seus dias
dando ordens a máquinas que tanto desdenhava.
Até que recebe uma oferta de Eron
(Colin Clave), um milionário e recluso cientistas e dono da Vessel Computers,
uma gigantesca empresa de tecnologia: Grey se tornará uma cobaia para “Stem”,
um micro chip de computador que será implantado em sua vértebra, reconectando
os impulsos cerebrais com a medula.
Com o sucesso do implante, logo o
impulso suicida de Grey é substituído pela sede de vingança: encontrar os
assassinos de sua esposa e mata-los. Mas também logo descobrirá que Stem não é
um mero implante: é uma inteligência artificial que se transforma numa voz que
dialoga com sua mente, permitindo algumas “atualizações” em seu corpo –
velocidade, força, performance etc. Claro, desde que Grey dê autorização para
Stem assumir o controle do seu corpo.
Naturalmente Grey usará essas
habilidades super-humanas para encontrar os assassinos de sua esposa. Ou será
que Stem é quem está manipulando Grey para alcançar algum obscuro propósito?
Tudo fica ainda mais sinistro quando
Grey descobre que a gangue de assassinos na verdade é formada por entidades
biocibernéticas – seres humanos que receberam “upgrades” e que estão em algum
“plot” conspiratório que envolve espionagem entre empresas de tecnologia.
De extensão humana ao pós-humano
Upgrade é um
filme que carrega as tintas em um tema já tratado em filmes blockbuster como Transcendence e Lucy com as estrelas Johnny Deep e Scarlet Johansson,
respectivamente. O tema do Pós-humano.
É interessante perceber nesse caso como o cinema é capaz de
representar o estágio do imaginário tecnológico (aquilo que, afinal, motiva e
dirige o desenvolvimento tecnológico). Por exemplo, 2001 Uma Odisséia no
Espaço, de Stanley Kubrick, em 1968 refletia as ideias do visionário
pesquisador canadense Marshall Mcluhan.
Para ele, os meios de comunicação,
assim como as máquinas e tecnologias, na verdade eram extensões do corpo
humano: sejam máquinas musculares (ferramentas básicas), máquinas sensoriais
(produtores de signos como as mídias) ou as máquinas cerebrais (computadores),
amplificam habilidades, sentidos e percepções humanas. HAL-9000 é uma extensão
humana. Porém, lhe falta uma coisa: a alma humana.
Tanto em Kubrick como em Mcluhan, o
homem ainda é o centro do imaginário tecnológico – e no confronto homem versus
máquina a tecnologia sempre perderá: falta nas máquinas a alma, o centro da
inteligência.
Mas estamos no século XXI e Upgrade revela esse novo imaginário que
anima esse início de século, como descreve o engenheiro computacional e criador
do conceito de “realidade virtual”, o norte-americano Jaron Lanier:
Os cientistas da computação são humanos, e são tão aterrorizados pela condição humana como qualquer outro. Nós, da elite técnica, buscamos alguma forma de pensar que nós podemos DAE uma resposta à morte. Isso ajuda a explicar o fascínio de um lugar como a Singularity University. O influente Vale do Silício narra uma história que seria assim: um dia, num futuro não muito distante, a Internet vai de repente ser incorporada a uma super Inteligência Artificial, infinitamente mais inteligente do que qualquer um de nós individualmente. Vai se tornar um ser vivo em um piscar de olhos e dominar o mundo antes que os seres humanos percebam o que está acontecendo (LANIER, Jaron (2010a), “The First Church of Robotics”, In: The New York Times, 09/08/2010
Tudo pode
soar como muitos filmes de ficção científica (uma Internet recém-senciente
criada a partir de todo o pensamento humano cotidianamente digitalizado pelas
redes sociais, sites e blogs). Mas seriam ideias correntes entre os principais
orientadores, patrocinadores (Cisco, Google, Nokia, Autodesk) e tecnólogos
influentes do Vale do Silício.
Esse é a
agenda científica tecnognóstica, cujo filme apresenta também uma estranha
teurgia às avessas – teurgia (theoi,
“deuses” + ergon, “obra”). “Imitar
Deus, criando vida” (imitativo dei por generatio animae), diz esse princípio de
manipulação da matéria presente tanto na Alquimia quanto na Cabala Extática – a
fusão da cabala profética com a “cabala dos nomes divinos” (recitação dos nomes
divinos e as várias combinações do alfabeto hebreu).
Se na
teurgia o homem tenta imitar Deus criando vida (seja o golem ou o “homunculus”
na alquimia de Paracelsus) para a redenção da matéria, em Upgrade a criação do “pequeno homem”(que quase literalmente o micro
chip Stem representa) não redime o homem ou a matéria. Mas o aprisiona ainda
mais na Criação ao gerar um demiurgo ainda mais pervasivo e poderoso do que o
jovem cientista e dono da empresa Vessel Computers, Eron.
Além da produção australiana fazer um mix de referencia
com Black Mirror e Robocop, há uma evidente alusão às
visões de Cronenberg sobre a fusão da carne com a tecnologia, presentes em
filmes como Videodrome e eXistenZ: os ciborgues não são apenas
entidades bicibernéticas – suas mão são armas embutidas cujas balas são
carregadas pelos cotovelos.
Mas é claro que o diretor Whannell não chega a fazer as
reflexões filosóficas ou existenciais da série britânica ou nos filmes de
Cronenberg. Upgrade opta pelo estilo
de banho de sangue satírico de Paul Verhoeven no Robocop de 1987.
Ficha Técnica
|
Título: Upgrade
|
Diretor: Leigh Whannell
|
Roteiro: Leigh
Whannell
|
Elenco: Logan
Marshall-Green, Melaine Vallejo, Steve Danielsen, Harrison Gilbertson
|
Produção: Blumhouse
Productions, Goalpost Pictures
|
Distribuição: OTL Releasing
|
Ano: 2018
|
País: Austrália
|
Postagens Relacionadas |