Em 1986 policiais
invadem um baile funk em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, ferindo física
e psiquicamente dois homens. Em 2014, um terceiro homem vem do futuro a procura
de evidências que ajudem um movimento identitário negro mover uma ação contra o
Estado pelos danos daqueles homens no passado. “Branco Sai, Preto Fica” (2014)
de Adirley Queirós é uma ousada experimentação em um gênero pouco visitado pelo
cinema brasileiro – o filme consegue construir uma espécie de “meta docudrama
sci-fi”. Com sua desolação, frieza e aridez, Brasília deixou de ser a utopia
modernista de uma possível civilização brasileira para se transformar na
perfeita cenografia de filmes distópicos, com uma vantagem: não é preciso
computação gráfica. No país do futuro, o tempo é um eterno retorno: se o
presente é um apartheid social, o futuro não deixa por menos – a “Vanguarda
Cristã” tomou o poder e ameaça o sucesso das investigações. Filme sugerido pelo nosso leitor Paulo Pê.
Marco vanguardista do que seria o
símbolo das raízes da civilização brasileira, Brasília tornou-se na verdade um
marco distópico. A cinematografia que envolve a capital do Brasil já é extensa,
na maioria das vezes protagonizada por personagens que se sentem estrangeiros,
alienados e estranhos em um lugar com cenário quase extraterrestre pela frieza
e aridez. Algo como o fim da utopia modernista na qual o otimismo do progresso
cedeu lugar ao concreto e monumentalidade que parecem aprisionar o indivíduo.
Insolação
(2009, o amor e desencontros na condição humana de exílio e prisão), Era uma Vez em Brasília (2016, um
prisioneiro intergaláctico é enviado no tempo para matar Juscelino Kubitschek
no dia da inauguração de Brasília), O Fim
e os Meios (2015, um publicitário carioca vai fazer o marketing de um
candidato e conhecerá os bastidores políticos da cidade) ou os vários
documentários ou filmes inspirados no rock punk de Brasília (Somos tão Jovens, Faroeste Caboclo etc.)
sobre uma geração de jovens estrangeiros em uma terra sem raiz.
Branco Sai, Preto Fica (2014), do diretor Adirley Queirós, lança um novo personagem nessa
distopia sci-fi em que se transformou a utopia modernista de Brasília: o
Detetive.
Em postagem anterior, discutíamos que
a subjetividade pós-moderna pode ser sintetizada cinematograficamente em três
tipos de personagens: o Viajante (a jornada espiritual), o Estrangeiro (aquele
que se sente estranho em sua própria família, cidade ou país) e o Detetive
(envolvido em mistérios e conspirações que, no final, voltam-se contra ele
próprio) – clique aqui.
Um homem vem do futuro com o propósito
de encontrar provas de que um incidente ocorrido em um baile de música black em
1986 foi um atentado racista – o título refere-se à ordem que um soldado deu no
momento de uma batida policial que resultou em danos físicos e psíquicos
irreversíveis para dois personagens: um ficou paraplégico, e outro perdeu uma
perna.
Provas são necessárias para que no
futuro movimentos identitários negros consigam processar o Estado. Mas também
no futuro, as coisas não vão bem: o Estado foi tomado por um grupo de
extrema-direita religiosa chamado “Vanguarda Cristã”...
Branco Sai, Preto Fica é mais um filme de uma longa tradição de filmes sci-fi iniciada pelo
clássico francês de viagem no tempo de Chris Maker La Jetée (1962) ou do
iraniano Taboor (2012) – filmes de
baixíssimo orçamento, cujos efeitos especiais (cânone do gênero) são criados
com recursos simples como montagem, edição, fotos e desenhos.
Paisagem de desolação
E Brasília, assim como as cidades
satélites ao redor como Ceilândia, não precisa de computação gráfica para se
tornarem ficção científica: sua própria paisagem de desolação com horizontes
recortados tanto por prédios futuristas quanto por favelas, lajes e escadarias
que se sobrepõem já conferem uma atmosfera distópica – algo como um “favela
sci-fi”.
É um filme experimental e como uma
narrativa inventiva, um mix de documentário, drama político e ficção
científica. Fotos e recortes de jornal do episódio de repressão policial e racismo
em 1987 nos mostram que Adirley Queirós partiu de um evento real para construir
uma distopia brasileira sem saídas ou esperança: se no presente o sonho de
Brasília de planejamento urbano se transformou em apartheid social, o detetive
vem de um futuro cujo País ainda não foi redimido.
Na busca por evidências que comprove o
racismo policial, o detetive do futuro (algo que lembra alguma coisa entre Terminator e Repo Man) vê-se prisioneiro no tempo e no espaço: não pode retornar
ao seu tempo devido a mais um golpe político brasileiro. E está condenado a ser
um Estrangeiro num lugar ao qual não pertence – quem sabe, uma metáfora do
eterno retorno nacional.
O Filme
Branco Sai, Preto Fica é um filme temporalmente claustrofóbico: simplesmente não há saídas
para ninguém – no presente temos personagens que habitam uma cidade (Ceilândia)
politicamente marginalizada cuja entrada e saída é controlada por passaporte; e
no futuro, um regime político religioso tomou o poder. E no meio dessas
polaridades, o hip-hop como a narrativa oral da marginalização e militantes do
lutas sociais do futuro.
O filme inicia como um documentário,
no qual o paraplégico Marquim do Tropa (interpretando ele próprio) narra ao som
da base do hip-hop a invasão policial de 1987, no estúdio da sua rádio pirata.
Também acompanhamos o cotidiano de outro sobrevivente dessa tragédia: Sartana (Irineu)
– acompanhamos a manutenção da sua perna mecânica enquanto ensina outros
deficientes a lidar com suas próteses.
Do docudrama, cortamos imediatamente
para o elemento sci-fi: Dimas (Dimas Durães) chega do futuro no interior de uma
espécie de container (recurso baixo orçamento do diretor) em cujas paredes vai
pendurando recortes de jornais da época, tentando reconstituir a tragédia
daquele baile funk.
O detetive parece ser um brasileiro
prototípico: na viagem pelo tempo perdeu dinheiro, cartão de crédito e
documento de identidade. Ela está “fudido”, como se reporta, através de um comunicador tosco, com o futuro. De
onde vem notícias politicamente nada animadoras – Dimas decide apenas enviar as
provas do futuro processo (ele precisa fazer um vídeo com depoimentos de
Sartana e Marquim) e não mais retornar.
O filme acumula sequências memoráveis
e simbólicas: Sartana em seu depósito de pilhas de pernas mecânicas e próteses
variadas como uma espécie de ferro-velho humano; um conjunto de tecno brega que
toca música com timidez; a paisagem desolada de Ceilândia na qual, em um espaço
aberto e empoeirado, repousa o container do viajante do tempo; a casa de Marquim
cujos tubos de neon ilumina estreitas e intrincadas passagens e elevadores para
a cadeira de rodas; e a constante pontuação de fotografias do fatídico baile funk mostrando como os protagonistas eram (jovens e cheios de esperanças)
contrastando com a melancolia e alienação do presente.
Bomba musical – alerta de spoilers à frente
Em todo o filme, as narrativas do
detetive Dimas e das vítimas Sartana e Marquim não se encontram – enquanto
Dimas investiga os recortes de jornal em sua caixa de metal e caminha através
das desoladas ruas de Ceilândia, Marquim articula um plano com um produtor
musical: em troca de passaportes que o ajudem a sair da cidade, o produtor
ajuda Marquim a criar literalmente uma “música-bomba”. Uma bomba
eletromagnética cujo conteúdo parece ser um pout pourri de hip-hop e tecnobrega
(a inacreditável “Dança do Jumento”).
Um petardo eletrônico que será
disparado diretamente da sua rádio pirata para atingir Brasília. Mais
especificamente, o prédio do Congresso Nacional.
Esses padrões, argumentos e premissas
apresentadas (uma espécie de meta
docudrama sci fi) é criativo e cheio de promessas para o espectador.
Porém, o filme vai aos poucos perdendo o foco narrativo – simplesmente, a
investigação do detetive do futuro e a bomba musical construída por Marquim e
Sartana não se encontram. Correm como estórias paralelas com um desfecho rápido
e frouxo. E até anticlimático.
Mesmo assim, a incursão de Adirley
Queirós em um gênero pouco visitado pelo cinema brasileiro é bem vinda.
Principalmente pela pretensão híbrido narrativa em criar um nível meta entre o
documentário e a ficção científica.
Como todo filme é um documento de
época, com Branco Sai, Preto Fica não
poderia ser diferente: a produção reflete o cenário político com as
manifestações nas ruas, iniciadas com as “Jornadas de Junho” em 2013 – o
descrédito com a Política e a depreciação da imagem dos políticos. Afinal, a
bomba musical será apontada diretamente para o Congresso Nacional e não para o
Banco Central ou Palácio do Planalto.
A narrativa é marcada por reflexões
sociológicas e políticas a respeito do controle do Estado e da mídia.
Principalmente das forças repressivas do exército e da polícia. Mas
ironicamente, no final, Adirley Queirós replicou os mesmos clichês das bombas
semióticas lançadas pela grande mídia naquele momento: a deliberada depreciação
da Política como maneira de desestabilização político-econômica que preparou
terreno para o futuro impeachment de 2016.
Ficha Técnica
|
Título: Branco
Sai, Preto Fica
|
Diretor: Adirley Queirós
|
Roteiro: Adirley
Queirós
|
Elenco: Marquim do
Tropa, Dilmar Guimarães, Gleide Firmino
|
Produção: Cinco da
Norte
|
Distribuição: Cinco da Norte
|
Ano: 2014
|
País: Brasil
|
Postagens Relacionadas |