Numa época em que o trabalho, a
cultura e a tecnologia liquefazem e precarizam nossas vidas na fluidez e instabilidade, os “millennials”
tentam se agarrar nos destroços de uma suposta sabedoria do passado e nos
gadgets, aplicativos e plataformas digitais do presente. Um presente que se
torna eterno, pelo medo e ansiedade em relação ao futuro, porque nada parece
durar por muito tempo. Mas um jovem casal decide adotar um gato, e acredita que
tudo vai mudar. “O Futuro” (“The Future”, 2011) é uma fábula pós-moderna sobre
tecnologia e o futuro da geração mais tecnologizada da História. Mas o medo do
futuro e de compromissos, representado agora por um gato necessitando de intensivos
cuidados veterinários, é tão paralisante que ameaça dissolver a vida conjugal
pela mentalidade “líquida” da sua geração. Filme sugerido pelo nosso incansável leitor Felipe Resende.
Para a cosmologia gnóstica, somos sobreviventes da
Criação, todos agarrados a destroços tentando sobreviver em um mar de matéria
escura. Certamente, tomada por si só essa imagem guarda um certo exagero. Mas,
e se inserir esse pressuposto cosmológico no cotidiano banal da geração dos millennials, jovens “hipsters” da
vanguarda digital, jovens, belos, sensíveis, agradáveis? Mas também incertos,
irresponsáveis e hesitantes.
Uma geração cujo meio ambiente social, tecnológico e
profissional é fluido, liquefeito e instável. Paralisados entre a hesitação em
um ambiente sem âncoras e sonhos de grandes conquistas que as tecnologias
vendem para os usuários.
Esse é o filme O Futuro
(The Future, 2011), uma coprodução
EUA e Alemanha, escrito, dirigido e atuado pela artista plástica Miranda July.
Certamente um filme autobiográfico ao melhor estilo Woody Allen, com
personagens criados como espécies de avatares dos seus dramas pessoais.
Seu personagem Sophie pode ser considerado um tipo ideal da
sua geração dos millennials: na faixa
dos 30 anos, vive uma espécie de eterno presente indefinido. Junto com seu
companheiro, vive em um pequeno apartamento decorado com o acúmulo de objetos
lúdicos e irônicos. Cada qual com o seu Mac. Com empregos precarizados, de
baixa manutenção, mas adequados para manter seu estilo de vida pouco exigente.
Nostalgia pelos tempos sólidos
É um filme sobre
como a geração mais tecnologizada da História, tendo ao seu dispor poderosas
ferramentas para grandes conquistas, tornou-se infantilizada, incapaz de lidar
com o tempo, com o futuro. Por viverem em um mundo onde tudo é fluido e
líquido, experimentam o paradoxo de viverem em um eterno presente hedonista
enquanto parecem interiormente nutrir a nostalgia de tempos mais sólidos.
Jason (Hamish Linklater) e Sophie (Miranda July) é um
casal que tenta se agarrar a algum “destroço” para criar uma zona de segurança
ou estabilidade psíquica momentânea: uma T-shirt amarela, por exemplo. Ter
filhos, plantar uma árvore ou escrever um livro (como diz aquele antigo provérbio
chinês) estão fora de questão: seriam projetos que exigiriam responsabilidade
demais, por envolver um comprometimento sério com o futuro.
Mas esse presente extenso em
que vivem é entediante e vazio. Principalmente porque tudo aquilo de grandioso
que a tecnologia promete, não conseguem realizar.
Eis que um gato aparece para
mudar as coisas. Adotar um gato doente de um abrigo? Quem sabe assumir um
compromisso de longo prazo? Ou nem tanto. Afinal, um gato não vive tanto,
quanto um filho. Não é o comprometimento de uma vida. Mas para um casal hipster nada é assim tão simples.
O Filme
Jason trabalha remotamente de
casa para o help desk de uma empresa de tecnologia. Enquanto Sophie dá aulas de
dança para crianças – quando seu próprio estilo de dançar parece emular o jeito
infantil. Estão junto há quatro anos, seja por hábito, familiaridade ou pelas
peculiaridades de cada um. Há uma atmosfera de inércia que revela o eterno
presente de uma vida sem passado ou futuro.
E a mudança vem na forma de um
gato – cujo bichano narra em of sua própria história que se confunde com a do
casal. Sintomaticamente, com uma voz infantil, feita pela própria
diretora/protagonista.
Sophie e Jason decidem adotar
um gato doente que exigirá uma dedicação integral com remédios e cuidados
sistemáticos. Mas o bichano ainda terá que ficar 30 dias sendo cuidado no
abrigo de animais: além de uma pata machucada, o gato tem diversos problemas de
saúde.
Essa espera fará o casal de
defrontar com o principal problema da sua geração: o fantasma do futuro, a
ansiedade de lidar com o tempo e com realizações. Sophie e Jason decidem que o
futuro bichinho de estimação tem que encontra-los daqui a um mês realizados.
Afinal, se o gato exigirá total dedicação, eles devem estar interiormente
felizes e satisfeitos consigo mesmos.
Portanto eles têm que
encontrar algum propósito nobre, uma realização decisiva para suas vidas. Por
isso decidem abandonar seu mundinho de conforto minimalista para se abrirem ao
real.
Ele larga o trabalho remoto em
seu Mac e decide sair para as ruas, deixar todos os sentidos abertos para não
deixar escapar nenhuma oportunidade. E o máximo que consegue, meio sem querer,
é bater de porta em porta trabalhando para uma ONG chamada “Tree for Tree”,
vendendo árvores para combater o aquecimento global como fosse uma testemunha
de Jeová.
E Sophie decide se tornar uma “Youtuber”:
nos próximos 30 dias, postar diariamente um vídeo com diferentes estilos de
dança, coreografadas na sala do seu apartamento.
Mas tudo que conseguem é
apenas encontrar mais destroços existenciais para se agarrarem. Sophie começa
um caso com Marshall (David Warshovsky), um homem mais velho, divorciado e que
vive com sua pequena filha. E nas suas andanças de porta em porta, Jason se
torna amigo de um velho homem chamado Joe (Joe Putterlik) – um colecionador de
velharias que passa o tempo consertados antigos eletrodomésticos para vender.
De alguma forma, esses
destroços oferecem aos protagonistas um oásis para suas ansiedades em relação
ao futuro – são como visões nostálgicas de um passado que jamais viveram.
A residência de Marshall, organizada e com cara de família passando a segurança
de um homem mais velho; e a casa retrô do velho Joe, transmitindo algum tipo de
sabedoria indefinida para o ansioso Jason.
O Futuro começa
como uma comédia dramática com fundo motivacional, para evoluir ao fantástico,
como uma espécie de fábula sobre o tempo e a evolução espiritual - a certa altura Jason sem confronta com o
próprio Tempo (a fonte de toda angústia dos millennials), fazendo-o parar no
momento em que Sophie revelará sua traição. Jason se moverá para os lados do
fluxo do Tempo, com a ajuda de uma “rocha que está no céu”, a Lua.
Pensamento infantil e mágico
A infantilização e a magia
(aqui tomada no sentido negativo, como fetichismo) parecem se encontrar na
mentalidade dessa geração. Assim como nos apegamos a gadgets e toda sorte de
aplicativos que prometem empoderar nossas vidas, da mesma forma os
protagonistas se apegam a um gato, uma T-shirt, um amante mais velho e a sabedoria
vintage de um idoso e dão um sentido de esperança desproporcional. Mas tudo que
encontram é mais paralisia e aumento da ansiedade.
Acreditam que cada um desses
destroços em que se agarram seja algum fragmento de algum tipo de sabedoria
perdida. Que possa se transformar numa varinha de condão para magicamente
transformar a vida.
E até o gato, em sua pequena
gaiola no abrigo contando os dias, narra em of suas dúvidas: será que seus
futuros donos aguentarão juntos esses 30 dias? Ou se desintegrarão, esquecendo-o
completamente?
Ao fim do filme, temos a
impressão de termos assistido a algum tipo de fábula pós-moderna. Mas, na
verdade, é uma radiografia melancólica de uma geração que tem toda a
tecnologia, informação e conhecimento em suas mãos. Mas é incapaz de criar algo
de perene, duradouro e resistente ao Tempo.
Os antigos deixaram para nós
pirâmides, estátuas, tábuas, paredes e quadros com escritos e imagens que
resistiram às intempéries do tempo. E os arqueólogos conseguiram trazer para o
presente toda a sabedoria do passado.
Mas, e no futuro? Será que os arqueólogos
dos próximos séculos encontrarão alguma coisa ainda gravada em HDs, CDs, DVDs e
pen drives enterrados nos meios dos destroços da nossa civilização?
Ficha Técnica
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Título: O
Futuro
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Diretor: Miranda July
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Roteiro: Miranda
July
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Elenco: Miranda
July, Hamish Linklater, David Warshovsky, Joe Putterlik
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Produção: Razor Film,
GNK Productions, Medienboard Berlin-Bradenburg
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Distribuição: Roadside Attractions
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Ano: 2011
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País: EUA/Alemanha
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