Responder a essas perguntas requer compreender a história do amplo gênero da literatura fantástica e os divergentes destinos na Europa e Estados Unidos e toda uma complexa série de migrações entre um continente e outro.
Podemos compreender que o primeiro florescimento do gnosticismo na modernidade (dentro da literatura fantástica que incorpora elementos do sobrenatural, grotesco e do inominável) foi na era romântica entre os séculos XVII e XVIII na Europa. Este renascimento surge numa combinação entre a especulação esotérica gnóstica e o pragmatismo esotérico no Romantismo. Figuras como William Blake e Percy Shelley beberam em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas, desafiando o status quo. Podemos compreender o modo narrativo do Romantismo como uma revolta contra a ascensão do racionalismo no século XVIII.
Nesse período encontramos na Europa a segunda variante da literatura fantástica: o Gótico. Suas vitorianas estórias de fantasmas talvez tenham sido a primeira forma de literatura ficcional a penetrar na cultura popular.
Na Europa, esta literatura romântica e Fantástica, especialmente na França e Alemanha, vai servir de veículo para o avanço das vanguardas artísticas tais como o Surrealismo e o Expressionismo. Em termos cinematográficos corresponderia ao período Cult e europeu dos filmes gnósticos, tal como descrita por Erik Wilson ("Secret Cinema: gnostic visions in film"). Para ele, o gnosticismo cinematográfico europeu passou por dois períodos bem distintos: no promeiro período temos os filmes que constituem “reacionários avisos” contra o gnóstico desejo de transcender a matéria (The Revenge of the Homunculus - Otto Rippert’s, 1916 - sobre as trágicas conseqüências de um experimento alquímico mal sucedido; The Golem - de Paul Wegener’s, 1920 - mostrando os trágicos resultados da magia cabalística).
Os temas gnósticos retornam mais tarde, desta vez através de filmes não-comerciais ou rotulados como cults que endossam valores heterodoxos que os antigos filmes condenavam. Blow Up (Antonioni, 1966) é uma exploração gnóstica de como a cultura consumida pelas aparências suplanta a realidade. Confundindo forma e conteúdo através de uma narrativa altamente ambígua e alucinante que incomoda tanto os personagens do filme quanto o público, 8½ (Fellini, 1963) explora a cabalística crença de que um ideal humano pode ser alcançado através do artifício, a criação de um Adão cinemático; Zardoz (John Boorman, 1974) uma verdadeira fábula gnóstica onde, em um futuro pós-apocalipse, o protagonista alcança a iluminação ao descobrir que o deus em que acreditava (Zardoz) era, na verdade, uma criação artificial de uma elite imperfeita e decadente; e The Man Who Fell to Earth (Nicholas Roeg, 1976) apresenta um extraterrestre que vem para a Terra em busca de água para o seu planeta que está morrendo. Incapaz de cumprir sua missão acaba prisioneiro de uma rede de corrupção em uma América corporativa. Diferentes dos antigos filmes, estes filmes gnósticos cults criticam o status quo, sugerindo que a cultura pós-moderna é um desolado mundo de ilusões que produz conformismo.
Victoria Nelson, ao descrever a “estranha história do Fantástico norte-americano”, observa que o fervor religioso e místico sofre constantes renascimentos:
“O Grande Despertar em meados do século XVIII tem sido acompanhado por no mínimo três outros renascimentos de acordo com Robert Fogel: o segundo, na virada do século XIX, com as repercussões religiosas e filosóficas do Transcendentalismo na alta literatura como também nas inúmeras manifestações da literatura popular, incluindo o movimento Espiritualista, Teosofia e novas religiões e cultos como os Mórmons e os gnósticos “Christian Scientists” e “Shakers”. O terceiro Grande Despertar, diz Fogel, ocorreu entre 1890 e 1930 e nós ainda estamos no meio do quarto que se iniciou nos anos 1960” (NELSON, Victoria. The Secret Life of Puppets. Havard University Press, 2001, PP. 76-7).
“Joseph Smith descreve essas aventuras sagradas novelisticamente no Livro dos Mormons, para produzir, como John Brooke já observou, uma particular americanização da teologia Renascentista ao juntar aspectos do Hermeticismo, Gnosticismo, Alquimia e magia popular para produzir uma ‘totalmente plena’ alternativa para o Cristianismo” (NELSON, Victoria. IDEM).
Como bem observou Robert Fogel, estamos em meio ao quarto despertar místico e religioso norte-americano originado nas utopias primitivas e tribais do acid rock e psicodelismo dos anos 60. Uma peculiar leitura Zen-Taoísta de um misticismo da natureza, um renascimento dos mitos da Terra e do elogio dos seus ciclos naturais, combinados com um socialismo cristão, mitos comunais e, paradoxalmente, combinado com o impulso transcendentalista das viagens alucinógenas e estados alterados de consciência.
Associado ao discreto movimento do Gnosticismo no meio científico a partir das universidades de Pinceton e Pasadena durante a II Guerra Mundial, a princípio entre físicos, cosmólogos e biólogos para, em seguida, alastrar-se por outras áreas, principalmente através da Cibernética e Teoria da Informação, temos o surgimento de um típico fenômeno norte-americano: o Tecnognosticismo. Isto é, a convicção mística e tecnófila da possibilidade da experiência transcendência e da experiência do Sagrado por meio do desenvolvimento das tecnologias da comunicação e da informação. Como afirmou ironicamente Theodore Roszak, é a tecnologia como o “atalho para Satori” a tecnologia como quintessência da superação da condição humana (finitude, contingência, mortalidade, corporalidade e limitação existencial) sem a necessidade de disciplina, meditação ou ascese.
Neste quarto Grande Despertar temos, finalmente, o encontro de toda a tradição da “Religião Americana”, no sentido dado por Harold Bloom, com a pujança tecnocientífica do complexo industrial-militar norte-americano.
Como já vimos em uma postagem anterior (clique aqui para ler), este quarto Grande Despertar produziu uma cisão no ressurgimento do Gnosticismo no século XX: de um lado o Gnosticismo Cabalístico (representado pela busca fáustica da tecnologia como forma mais rápida de busca do pós-humano e da transcendência absoluta e rápida do espírito em relação à prisão do corpo) e, do outro, o Gnosticismo Alquímico (a crença que a matéria deve ser redimida e não simplesmente superada e a necessidade de denúnciar esse imaginário tecnológico fáustico como sendo mais uma forma do Demiurgo aprisionar o ser humano nas ilusões do mundo material).
Surpreendentemente, o lócus dessa tematização vem sendo a produção recente cinematográfica hollywoodiana. Essa constatação nos leva a uma última questão: o que faz diretores e produtores da indústria cinematográfica ter esse súbito interesse no universo temático gnóstico, particularmente o alquímico? Por que estas narrativas míticas da antiguidade foram parar nas sinopses, roteiros e nas mesas de produtores de filmes mainstream hollywoodianos? Por que Hollywood abraçaria esta particular visão gnóstica que questiona o gnosticismo tecnocientífico?
Uma pista para começar a responder a essa questão talvez esteja nas considerações de Boris Groys sobre uma “guinada metafísica” da produção hollywoodiana recente: deuses, demônios, alienígenas e máquinas pensantes defrontando-se com heróis movidos, sobretudo, pela questão do que possa estar oculto por trás da realidade sensível. Nesta temática metafísica se esconderia uma pretensão auto-referencial. Filmes como Show de Truman ou Matrix tematizam a própria produção midiática. Podemos considerar os heróis desses filmes como verdadeiros críticos da mídia.
“Hollywood, pois, reage à suspeita de manipulação estética que lhe é dirigida reativando uma suspeita metafísica ainda mais antiga e profunda - a suspeita de que todo o mundo perceptível poderia ser um filme rodado numa metahollywood remota. Nesse caso, os filmes hollywoodianos seriam "mais verdadeiros" que a realidade, pois ela não nos mostra geralmente nem o caráter artificial que lhe é próprio nem o que lhe está além. O novo filme hollywoodiano, ao contrário, elabora, ao refletir sobre seus procedimentos próprios, uma nova metafísica que
interpreta o ato de criação como uma produção de estúdio.” (GROYS, Boris. “Deuses Escravizados – a guinada metafísica de Hollywood”, In: Mais! Folha de São Paulo, 03/06/2001, p. 5.)