quinta-feira, janeiro 26, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Comparando os dois momentos da banda Pink Floyd representados pelo filme "Pink Floyd The Wall" de Alan Parker e o documentário “The Pink Floyd and Syd Barrett Story” é flagrante o contraste entre o imaginário pulsante, enérgico e desafiador das origens da banda na era psicodélica e a narrativa amarga e pessimista da trilogia final ("Animals", "The Wall" e "Final Cut"). A perda da dimensão épica do rock psicodélico, cujas armas eram o surrealismo e o “non sense”, derrotada pelo princípio de realidade: o indivíduo que, impotente, só lhe resta a vitimização, auto-indulgência e pena de si mesmo.
O filme “Pink Floyd The Wall” de Alan Parker está fazendo 30 anos.
Embora o baixista e líder do Pink Floyd Roger Waters tenha ficado insatisfeito
com essa adaptação cinematográfica do álbum duplo “The Wall” de 1979, o filme
tornou-se um Cult, consenso de crítica entre os fãs da banda e críticos. A música “Another
Brick in the Wall” virou um hino libertário e o solo de guitarra de Guilmour na lindamente triste “Confortably Numb” é até hoje arrepiante.
Mas depois de três décadas é necessário um olhar em
perspectiva tanto para o filme como para o álbum. Principalmente depois de se
assistir ao documentário inglês “The Pink Floyd and Syd Barrett Story” (2003),
onde é contada a história de Syd Barrett, membro fundador da banda e
protagonista indiscutível da cultura psicodélica. É interessante compreender as
origens do Pink Floyd dentro do experimentalismo underground da cultura
psicodélica na década de 1960 e como se tornou como banda de frente do rock
progressivo e rotulado como “dinossauro” pela emergente cultura punk/new wave
à época do lançamento tanto do álbum quanto do filme de Allan Parker.
"Pink Floyd The Wall" (1982)
Nessa revisão crítica vamos partir de três pressupostos que,
veremos, estão interligados: primeiro, a crítica ao Estado Totalitário e às
“instituições totais” como o Exército, a Educação e a Família presente no
musical é ambígua sabendo-se que tanto o filme como o álbum tinham como pano de
fundo a ascensão no Neoliberalismo no início da década de 1980: qualquer
crítica ao Estado servia de munição ao projeto de “Estado Mínimo” das políticas
privatistas.
Segundo, embora a ideia do álbum não seja essa, a narrativa
do filme se baseia em um astro de rock chamado Floyd (Bob Geldof) que entra em colapso
emocional em um quarto de hotel. Ele mergulha nas tristes memórias dos traumas da
sua vida, com olhar fixo para a porta, convidando os espectadores a descobrir o
que há por trás daquele olhar frio e do disfarce “nazista”. Cada lembrança será
como um tijolo (a perda do pai na Segunda Guerra Mundial, a mãe superprotetora,
a escola autoritária etc.) que formará no final o muro que o cerca, tornando-o
frio e solitário.
Terceiro, é marcante como de uma cultura psicodélica caracterizada pelo tom épico, lúdico e de imaginação anárquica e libertária, após a saída de
Syd Barrett da banda (teria entrado em um processo de deterioração mental agravado pelo uso de drogas) o Pink Floyd embarcou em uma viagem interior e
autobiográfica (principalmente de Roger Waters) repleta de pesadelos, traumas
e delírios. Da psicodélica utopia onde a fantasia e a imaginação teriam energia
para se sobrepor ao princípio de realidade, à derrota do indivíduo diante do
realismo das instituições totais, expressa por um discurso marcado pela vitimização
e excesso de auto-indulgência.
A Cultura Psicodélica
Nos anos 60 a onda do estado alterado de consciência como
forma de expansão mística, artística e intelectual da mente abalou toda a
paisagem social. Milhões de estudantes, artistas e intelectuais, embasados na
literatura beat de Kerouac e Ginsberg e no livro “As Portas de Percepção”
(termo emprestado de William Blake) de Adous Huxley, foram levados pela
esperança de que agentes químicos e drogas como o LSD poderiam abrir o cérebro
mortal para um reino onde “tudo parece infinito”, nas palavras de Blake.
Se na Califórnia tínhamos uma cena hippie onde a cultura
psicodélica e lisérgica estava fundamentada em velhas crenças comunais,
esotéricas e religiosas (astrologia, tarô, magia, taoismo etc.) e o som baseado
no blues amplificado, elétrico, gritante e sem polimento, na Londres onde o Pink
Floyd dava os primeiros passos o psicodelismo tinha algumas características a
mais: um mix de blues, com referências da “music hall”, guitarras overdrive e
wah-wahs, feedbacks amplificados, experimentações dissonantes, e muitas
referências literárias de Lewis Carroll. E o centro de tudo isso, a casa
noturna UFO onde em 1966-67 a banda Pink Floyd realizou suas primeiras apresentações com
Syd Barrett, compositor da maioria das músicas.
Experiências multi-sensoriais nos shows do Pink Floyd no UFO Club em 1967
Na cena Londrina não existia “hippies”, mas “freaks” que se
reuniam nas noites de sexta e sábado na UFO Club para as verdadeiras
apresentações “multimídias”: performances do Pink Floyd combinadas com a
projeção de filmes de vanguarda, show de luzes estroboscópicas, projeção de
slides com imagens caleidoscópicas fractais, tudo projetado sobre as roupas de
setim dos integrantes da banda para acentuar ainda mais o ofuscamento mesclado
com o som de improviso e viajante.
Era como se a experiência multi-sensorial quisesse produzir
estados alterados de consciência, como Alice caindo através do buraco do
coelho. Não havia solos de guitarra, mas sons com ritmos hipnóticos produzidos
por um isqueiro Zippo atritando o braço de uma guitarra Fender de Syd Barrett
produzindo atmosferas acompanhadas por uma interminável linha de baixo.
“Ligar-se, sintonizar-se, libertar-se”, era a
palavra de ordem do papa do LSD, o psiquiatra norte-americano Thimothy Leary.
Mas parece que toda uma geração não compreendeu a advertência feita por ele no
livro “A Experiência Psicodélica - Um Manual Baseado no Livro Tibetano dos
Mortos”:
“a droga não produz a experiência transcedental. Ela apenas age como
chave química – ela abre a mente, liberta o sistema nervoso de seus padrões e
estruturas ordinários. A natureza da experiência depende quase inteiramente do
arranjo e do cenário.” (LEARY, Thimothy. “The Psychedelic
Experience: A Manual Based on the Tibetan Book of the Dead”. NY: Kensington
Publishing Corp., 1995, p. 11).
Acreditando que nas drogas encontrariam o atalho para o Nirvana, a
cultura psicodélica se esvaiu em overdoses, “bad trips” e pesadelos encontrados
no mergulho no interior da própria inconsciência. No rescaldo dessa cultura, o
psicodelismo dividiu-se em dois grupos bem definidos. Usando o jargão do
pesquisador Umberto Eco, o primeiro grupo é o que poderíamos chamar de
“integrados”: o “ligar-se e sintonizar-se” foi traduzido em termos de rede de
computadores e cibernética. “O computador é o LSD do mundo dos negócios”, disse
certa vez McLuhan. Os mais ilustres desenvolvedores de softwares do Vale do
Silício foram hippies no estilo psicodélico e viram no ciberespaço a
oportunidade da abertura espiritual da mente.
Do outro lado os “apocalípticos”: as drogas psicodélicas resultaram no
mergulho solipsista para o interior da própria mente e o que encontraram não
foi o “verdadeiro Eu”, mas pesadelos, esquizofrenia, alienação e paranoia. A
tradução cultural foi a concepção da política como conspirações e os fatos como
obscuros resultados de fabulações de sociedades secretas ou alienígenas
“greys”. E a tradução estética pode ser encontrada, por exemplo, na banda Pink
Floyd pós Syd Barrett: a recorrência dos temas da alienação e paranoia cujo
ápice encontramos na trilogia dos álbuns “Animals”, “The Wall” e “Final Cut”.
Ambiguidades do "The Wall"
"Pink Floyd The Wall" (1982)
No álbum “Animals” Roger Waters, inspirado no livro “A Revolução dos
Bichos” vê os homens como bichos divididos em homens de negócios megalomaníacos
(cachorros), políticos corruptos (porcos) e os cegos que seguem os líderes
(carneiros). E somente o amor poderá nos proteger dos males do mundo. Em “The
Wall” Waters desenvolve essa ideia na radicalidade: o protagonista como vítima
dos males das instituições totais que vão, cada uma delas, contribuindo na
construção de um muro que o cerca, impedindo-o de amar.
Dessa maneira o filme “The Wall” vai narrar a tragédia do protagonista
Floyd como um astro do rock vítima das instituições e da indústria do
entretenimento que, mesmo em meio à crise pessoal e ao mergulho nas drogas e
nas memórias traumáticas, o arrasta para mais um “show”, na verdade algo
parecido com um congresso nazi. Esse é o roteiro clichê do obituário de todo
ídolo pop que tem um final trágico (Emmy Winehouse, Kurt Cobain etc.) ou
enlouquece (o próprio Syd Barrett): um roteiro moralista onde o astro nunca
está preparado para o sucesso - dinheiro e poder os corrompe para afundá-lo nas
drogas fatais ou mortes trágicas.
Portanto, revendo o filme “The Wall” 30 anos depois ficam evidentes duas
ambiguidades: o discurso simplista e sem matizações contra Estado e
instituições totais para jovens caiu como uma luva nos primeiros anos de
implantação das políticas neoliberais a fórceps no Reino Unido. As imagens de
estudantes ateando fogo na escola enquanto cantam “nós não precisamos de
educação” soa libertário e anárquico, mas significam o próprio desmantelamento da
dimensão pública e a recusa da Política (afinal, todos os políticos são ladrões
como afirmou o álbum anterior “Animals”). Sabemos que uma das bases ideológicas
do neoliberalismo é a despolitização a partir da recusa da própria Política
como uma instituição de natureza corrupta. As decisões devem ser entregues aos
financistas, muito mais “racionais”.
Aliado a isso, a caracterização vitimista do protagonista Floyd. Não há
um julgamento em relação aos atos do protagonista, o fato de ter optado em ser
um astro do rock. O mergulho nos seus traumas, paranoias e pesadelos serve
apenas para justificar o sofrimento e absolvê-lo de qualquer responsabilidade: ele
é a vítima, passiva e derrotada diante do inevitável sistema, sem questionar a
sua decisão de ter aceito participar do próprio sistema como um pop star.
Fazendo o contraponto entre o filme de Alan Parker e o documentário
“The Pink Floyd and Syd Barrett” é flagrante o contraste entre o imaginário
pulsante, enérgico e desafiador da era psicodélica e a narrativa amarga e
pessimista da trilogia final da banda. A perda da dimensão épica do rock
psicodélico cujas armas eram o surrealismo e o “non sense”. No lugar se impôs o
desmoronamento do ego diante do princípio de realidade: o indivíduo que,
impotente, só lhe resta a vitimização, auto-indulgência e dó de si mesmo.
Ficha Técnica
Título: PinK Floyd The Wall
Direção: Alan Parker
Roteiro: Roger Waters
Elenco: Bob Geldof, Christine Hargraves, James Laurenson, Eleanor David
Produção: Goldcrest Films International, Metro Goldwyn Mayer (MGM)
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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