sábado, fevereiro 25, 2012

Uma Jornada Espiritual Vira Pesadelo no Filme "Beyond The Black Rainbow"

Uma das mais estranhas sci fi dos últimos tempos, o filme canadense “Beyond The Black Rainbow” (2010) do estreante Panos Cosmatos explora dois paradoxos: primeiro de ser uma ficção científica que não é ambientada nem no futuro ou passado, mas em uma espécie de “futuro do passado” envolta em uma atmosfera kubrickiana de “2001” e nos mistérios metafísicos dos filmes do russo de Tarkovsky; e segundo ao mostrar como uma jornada espiritual pode se converter em um pesadelo autoritário. Com isso Cosmatos faz um acerto de contas com a chamada geração “baby boomer” que teria fracassado em buscar a espiritualidade em “ocultas e sombrias regiões”.

“Ela abriu estranhas portas que nunca mais se fecharam”
(David Bowie, “Scary Monsters” - 1980)

Lançado em 2010 “Beyond The Black Rainbow” (passou por alguns festivais na Europa e no ano passado teve sua premier no Tribeca Film Festival nos EUA) é um sci fi paradoxal: retro e ao mesmo tempo futurista, uma espécie de “futuro do passado”. Grande parte da narrativa se passa em um “futurista” ano de 1983 e em uma estranha e opressiva clínica onde um estranho homem realiza estranhas experiências com uma garota.

A narrativa procura desvendar os mistérios do Instituto Arboria onde uma bela jovem chamada Elena (Eva Allan) com poderes psíquicos é mantida prisioneira por um cientista chamado Barry Nyle (Michael Rogers) envolvido em uma complexa experiência psicológica. Nyle tem um objetivo místico-espiritual: a busca da “paz interior” por meio de uma delirante e alucinógena jornada em estilo LSD controlada por uma sinistra tecnologia à base de drogas.

O filme é a estreia do diretor e roteirista Panos Cosmatos (filho de George P. Cosmatos, diretor de filmes na década de 1980 como “Rambo: First Blood”, “Stallone Cobra” e “Tombstone”), onde cuidadosamente reproduz a atmosfera futurista de Kubrick em “2001” com salas e corredores sinistramente brancos e assépticos, o design clean e geométrico de clássicos futuristas como “THX 1138” e referência aos enigmas metafísicos dos filmes sci fi do russo Tarkovsky (“Solaris” e “Stalker”). Isso sem falar nas referências do lado terror do filme: Cronenberg, Argento e John Carpenter.

O filme é intrigante tanto na forma quanto no conteúdo: é um filme do gênero sci fi, porém não é ambientado nem no futuro e nem no passado, mas em uma espécie de “futuro do passado”. Parece que estamos vendo imagens de como seria imaginado a década de 1980 a partir do ponto de vista dos anos 60.

O filme começa como se assistíssimos a alguma fita promocional VHS do Instituto Arboria (a proporção da imagem do filme inicia em 4:3): vemos o mentor que deu origem a todo o experimento, o sinistro Dr. Mercurio Arboria (Scott Hylands), explicando seus planos de revolucionar a espécie humana ao criar uma fórmula baseada em “farmacologia benigna, terapia sensorial e manipulação de energias” para ser alcançada a “pura felicidade”.

Portanto, Cosmatos reúne a imagerie emblemática das décadas de 1960-70 (LSD, visão mística das drogas, autoconhecimento por meio de jornadas lisérgicas misturado com a estética futurista) e a paranoia Guerra Fria da era Reagan dos anos 80: sinistros laboratórios e experiências secretas com drogas em uma implícita referência ao chamado “Projeto Montauk” bem conhecido pelos teóricos de conspirações a partir dessa década – teria sido um projeto secreto empreendido pela inteligência militar dos EUA com experiência de intervenção psíquica por meio de drogas e equipamentos eletrônicos para fins de espionagem e interrogatórios. Mas o efeito colateral seria a descoberta da possibilidade da viagem no tempo através da inconsciência.

Qual o propósito de Cosmatos com esse bizarro mix de referências e imageries? Por que Cosmatos quis ambientar a estória (um projeto aparentemente com propósitos humanísticos que se transforma em pesadelo) em um futuro do passado?

Tecnologias do Espírito e Tecnognose

Em entrevista o diretor afirmou que o argumento do filme foi motivado inicialmente depois de rever filmes da infância. Ele não queria revê-los com um olhar nostálgico, mas “de uma forma sombria”. A morte de seus pais e sua posterior experiência com um psicólogo budista para lidar com essa fatalidade familiar acabaram sendo determinantes: “acho que todo psicoterapeuta – em geral vários deles – tem um lado estranho, sociopata”.

E no final, perguntado se era pessimista em relação à humanidade respondeu: “acho que expressei uma atitude cínica em relação aos “baby boomers”, mais do que em relação à humanidade. Essa coisa do ocultismo veio provavelmente da geração dos anos 60. Os “baby boomers” tentaram encontrar espiritualidade em ocultas e sombrias regiões. Seus ideais acabaram sendo corrompidos” (veja “Journey ‘Beyond The Black Raimbow’ with Director Panos Cosmatos”).

Dessa forma, “Beyond The Black Raimbow” parece se tratar de um acerto de contas que o diretor faz com a geração de seus falecidos pais, os “baby boomers” ( expressão para designar a geração de filhos nascidos após a segunda guerra mundial durante uma explosão populacional que se seguiu ao conflito bélico).  E esse acerto volta-se para um dos principais produtos de uma geração obcecada pela busca do prazer e da felicidade: as chamadas “tecnologias do espírito”.

Essas verdadeiras tecnologias tecnognósticas (onde ciência e misticismo se encontram para a eliminação do corpo e a virtualização da subjetividade onde solipsismo e alienação confundem-se com espiritualidade) têm suas origens na área de autoajuda e autoconhecimento, isto é, autênticas formas de auto-divinização: a partir de técnicas análogas às tecnologias computacionais (interação, simulação, rede, recursividade etc.), o ser humano se autoconheceria (na verdade se auto-reprogramaria) para libertar-se das limitações corpóreas e existenciais, tornando-se motivado, positivo e vencedor. É a chamada jornada espiritual de autoconhecimento.

Para pesquisadores como Victoria Nelson (veja NELSON, Victoria, “The Secret Life of Puppets”, Cambridge: Havard UP, 2001) vivemos ainda consequências do despertar místico dos anos 1960 caracterizado pela busca de uma espécie de auto-divinização através de um encontro pessoal com o Sagrado: o despertar místico e religioso norte-americano originado nas utopias primitivas e tribais do acid rock e psicodelismo dos anos 60. Uma peculiar leitura Zen-Taoísta de um misticismo da natureza combinado com o impulso transcendentalista das viagens alucinógenas e estados alterados de consciência.

Mas parece que toda uma geração que buscou o Sagrado e a transcendência por meio de uma jornada interior por meios químico não compreendeu a advertência do “papa do LSD”, o psiquiatra norte-americano Thimoty Leary, em seu livro “A Experiência Psicodélica - Um Manual Baseado no Livro Tibetano dos Mortos”: 
“a droga não produz a experiência transcedental. Ela apenas age como chave química – ela abre a mente, liberta o sistema nervoso de seus padrões e estruturas ordinários. A natureza da experiência depende quase inteiramente do arranjo e do cenário.” (LEARY, Thimothy. “The Psychedelic Experience: A Manual Based on the Tibetan Book of the Dead”. NY: Kensington Publishing Corp., 1995, p. 11).
Um Atalho para o Nirvana
Acreditando que nas drogas encontrariam o atalho para o Nirvana, a cultura psicodélica se esvaiu em overdoses, “bad trips” e pesadelos encontrados no mergulho no interior da própria inconsciência.

“Beyond The Black Rainbow” descreve essa irônica jornada de como a busca da Verdade, do Sagrado e da Transcendência por meio do autoconhecimento resultou em um pesadelo autoritário. O Instituto Arboria é a síntese do pesadelo em que se transformou a busca obsessiva da felicidade por meio do um atalho das drogas de “farmacologia benigna”: a busca da Iluminação espiritual sem disciplina ou ascese, rápida e prazerosa. Na verdade, o Instituto torna-se uma prisão para a jovem Elena que se transforma em uma nova Alice que cai em um buraco de coelho, na verdade uma sinistra armadilha.

O resultado atual é a criação de toda a cultura midiática e indústria farmacêutica que empreendem uma verdadeira repressão da melancolia, da tristeza e demais agitações da alma para expulsá-las do sistema como fossem meramente lamentos de um paciente neurótico. Um fármaco-conservadorismo criado como efeito colateral de todas as “drogas da felicidade”, que criaria um fenômeno comportamental chamado de “efeito zumbi”, caracterizado pelo mix de euforia, apatia, perda da capacidade crítica e sensação de irrealidade.

Nessa perspectiva compreende-se essa estranha ficção-científica narrada no futuro do passado: o ano de 1983 descrito tal como o Dr. Mercurio Arboria (o nome já é irônico por remeter à Alquimia) estaria imaginado que fosse quando inicia o seu projeto químico para “revolucionar a humanidade” no anos 1960. 

Dessa maneira, Panos Cosmatos faz uma alegoria do lado sombrio de uma geração que, em nome da busca da felicidade e auto-realização, criou verdadeiras tecnologias de cunho tecnognóstico e autoritário: a “transcendência espiritual” patrocinada por poderosas corporações – os diversos institutos Arborias que prometem a felicidade em pílulas.

Ficha Técnica

  • Título: Beyond The Black Rainbow
  • Diretor: Panos Cosmatos
  • Roteiro: Panos Cosmatos
  • Elenco: Michael Rogers, Eva Allan, Scott Hylands e Marilyn Norry
  • Produção: Chromewood Productions
  • Distribuição: Elephant Eye Films
  • Ano: 2010
  • País: Canadá


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