Uma das mais estranhas
sci fi dos últimos tempos, o filme canadense “Beyond The Black Rainbow” (2010) do
estreante Panos Cosmatos explora dois paradoxos: primeiro de ser uma ficção
científica que não é ambientada nem no futuro ou passado, mas em uma espécie de
“futuro do passado” envolta em uma atmosfera kubrickiana de “2001” e nos
mistérios metafísicos dos filmes do russo de Tarkovsky; e segundo ao mostrar
como uma jornada espiritual pode se converter em um pesadelo autoritário. Com
isso Cosmatos faz um acerto de contas com a chamada geração “baby boomer” que
teria fracassado em buscar a espiritualidade em “ocultas e sombrias regiões”.
“Ela abriu estranhas
portas que nunca mais se fecharam”
(David Bowie, “Scary
Monsters” - 1980)
Lançado em 2010 “Beyond The Black Rainbow” (passou por
alguns festivais na Europa e no ano passado teve sua premier no Tribeca Film
Festival nos EUA) é um sci fi paradoxal: retro e ao mesmo tempo futurista, uma
espécie de “futuro do passado”. Grande parte da narrativa se passa em um “futurista”
ano de 1983 e em uma estranha e opressiva clínica onde um estranho homem
realiza estranhas experiências com uma garota.
A narrativa procura desvendar os mistérios do Instituto
Arboria onde uma bela jovem chamada Elena (Eva Allan) com poderes psíquicos é
mantida prisioneira por um cientista chamado Barry Nyle (Michael Rogers)
envolvido em uma complexa experiência psicológica. Nyle tem um objetivo
místico-espiritual: a busca da “paz interior” por meio de uma delirante e
alucinógena jornada em estilo LSD controlada por uma sinistra tecnologia à base
de drogas.
O filme é a estreia do diretor e roteirista Panos Cosmatos
(filho de George P. Cosmatos, diretor de filmes na década de 1980 como “Rambo:
First Blood”, “Stallone Cobra” e “Tombstone”), onde cuidadosamente reproduz a atmosfera
futurista de Kubrick em “2001” com salas e corredores sinistramente brancos e
assépticos, o design clean e geométrico de clássicos futuristas como “THX 1138”
e referência aos enigmas metafísicos dos filmes sci fi do russo Tarkovsky
(“Solaris” e “Stalker”). Isso sem falar nas referências do lado terror do
filme: Cronenberg, Argento e John Carpenter.
O filme é intrigante tanto na forma quanto no conteúdo: é um
filme do gênero sci fi, porém não é ambientado nem no futuro e nem no passado,
mas em uma espécie de “futuro do passado”. Parece que estamos vendo imagens de
como seria imaginado a década de 1980 a partir do ponto de vista dos anos 60.
O filme começa como se assistíssimos a alguma fita promocional
VHS do Instituto Arboria (a proporção da imagem do filme inicia em 4:3): vemos
o mentor que deu origem a todo o experimento, o sinistro Dr. Mercurio Arboria
(Scott Hylands), explicando seus planos de revolucionar a espécie humana ao
criar uma fórmula baseada em “farmacologia benigna, terapia sensorial e
manipulação de energias” para ser alcançada a “pura felicidade”.
Portanto, Cosmatos reúne a imagerie emblemática das décadas de 1960-70 (LSD, visão mística das
drogas, autoconhecimento por meio de jornadas lisérgicas misturado com a
estética futurista) e a paranoia Guerra Fria da era Reagan dos anos 80:
sinistros laboratórios e experiências secretas com drogas em uma implícita
referência ao chamado “Projeto Montauk” bem conhecido pelos teóricos de
conspirações a partir dessa década – teria
sido um projeto secreto empreendido pela inteligência militar dos EUA com
experiência de intervenção psíquica por meio de drogas e equipamentos
eletrônicos para fins de espionagem e interrogatórios. Mas o efeito colateral
seria a descoberta da possibilidade da viagem no tempo através da inconsciência.
Qual o propósito
de Cosmatos com esse bizarro mix de referências e imageries? Por que Cosmatos quis ambientar a estória (um projeto
aparentemente com propósitos humanísticos que se transforma em pesadelo) em um futuro
do passado?
Tecnologias do Espírito e Tecnognose
Em entrevista o diretor
afirmou que o argumento do filme foi motivado inicialmente depois de rever filmes
da infância. Ele não queria revê-los com um olhar nostálgico, mas “de uma forma
sombria”. A morte de seus pais e sua posterior experiência com um psicólogo
budista para lidar com essa fatalidade familiar acabaram sendo determinantes: “acho
que todo psicoterapeuta – em geral vários deles – tem um lado estranho,
sociopata”.
E no final,
perguntado se era pessimista em relação à humanidade respondeu: “acho que
expressei uma atitude cínica em relação aos “baby boomers”, mais do que em
relação à humanidade. Essa coisa do ocultismo veio provavelmente da geração dos
anos 60. Os “baby boomers” tentaram encontrar espiritualidade em ocultas e
sombrias regiões. Seus ideais acabaram sendo corrompidos” (veja “Journey ‘Beyond The Black Raimbow’ with Director Panos Cosmatos”).
Dessa forma, “Beyond
The Black Raimbow” parece se tratar de um acerto de contas que o diretor faz
com a geração de seus falecidos pais, os “baby boomers” ( expressão
para designar a geração de filhos nascidos após a segunda guerra mundial
durante uma explosão populacional que se seguiu ao conflito bélico). E esse acerto volta-se para um dos principais
produtos de uma geração obcecada pela busca do prazer e da felicidade: as
chamadas “tecnologias do espírito”.
Essas verdadeiras tecnologias tecnognósticas (onde ciência
e misticismo se encontram para a eliminação do corpo e a virtualização da
subjetividade onde solipsismo e alienação confundem-se com espiritualidade) têm
suas origens na área de autoajuda e autoconhecimento, isto é, autênticas formas
de auto-divinização: a partir de técnicas análogas às tecnologias
computacionais (interação, simulação, rede, recursividade etc.), o ser humano
se autoconheceria (na verdade se auto-reprogramaria) para libertar-se das
limitações corpóreas e existenciais, tornando-se motivado, positivo e vencedor.
É a chamada jornada espiritual de autoconhecimento.
Para pesquisadores como Victoria Nelson (veja NELSON,
Victoria, “The Secret Life of Puppets”, Cambridge: Havard UP, 2001) vivemos
ainda consequências do despertar místico dos anos 1960 caracterizado pela busca
de uma espécie de auto-divinização através de um encontro pessoal com o Sagrado:
o despertar místico e religioso norte-americano originado nas utopias
primitivas e tribais do acid rock e psicodelismo dos anos 60. Uma peculiar
leitura Zen-Taoísta de um misticismo da natureza combinado com o impulso
transcendentalista das viagens alucinógenas e estados alterados de consciência.
Mas parece que
toda uma geração que buscou o Sagrado e a transcendência por meio de uma
jornada interior por meios químico não compreendeu a advertência do “papa do
LSD”, o psiquiatra norte-americano Thimoty Leary, em seu livro “A Experiência Psicodélica - Um Manual Baseado no
Livro Tibetano dos Mortos”:
“a droga não produz a experiência transcedental. Ela apenas age como chave química – ela abre a mente, liberta o sistema nervoso de seus padrões e estruturas ordinários. A natureza da experiência depende quase inteiramente do arranjo e do cenário.” (LEARY, Thimothy. “The Psychedelic Experience: A Manual Based on the Tibetan Book of the Dead”. NY: Kensington Publishing Corp., 1995, p. 11).
Um
Atalho para o Nirvana
Acreditando que nas drogas
encontrariam o atalho para o Nirvana, a cultura psicodélica se esvaiu em
overdoses, “bad trips” e pesadelos encontrados no mergulho no interior da
própria inconsciência.
“Beyond The Black
Rainbow” descreve essa irônica jornada de como a busca da Verdade, do Sagrado e
da Transcendência por meio do autoconhecimento resultou em um pesadelo
autoritário. O Instituto Arboria é a síntese do pesadelo em que se transformou
a busca obsessiva da felicidade por meio do um atalho das drogas de “farmacologia
benigna”: a busca da Iluminação espiritual sem disciplina ou ascese, rápida e
prazerosa. Na verdade, o Instituto torna-se uma prisão para a jovem Elena que se
transforma em uma nova Alice que cai em um buraco de coelho, na verdade uma
sinistra armadilha.
O resultado atual é a criação de toda a cultura midiática
e indústria farmacêutica que empreendem uma verdadeira repressão da melancolia,
da tristeza e demais agitações da alma para expulsá-las do sistema como fossem
meramente lamentos de um paciente neurótico. Um fármaco-conservadorismo criado
como efeito colateral de todas as “drogas da felicidade”, que criaria um fenômeno
comportamental chamado de “efeito zumbi”, caracterizado pelo mix de euforia, apatia, perda da capacidade crítica
e sensação de irrealidade.
Nessa perspectiva
compreende-se essa estranha ficção-científica narrada no futuro do passado: o
ano de 1983 descrito tal como o Dr. Mercurio Arboria (o nome já é irônico por
remeter à Alquimia) estaria imaginado que fosse quando inicia o seu projeto
químico para “revolucionar a humanidade” no anos 1960.
Dessa maneira, Panos
Cosmatos faz uma alegoria do lado sombrio de uma geração que, em nome da busca
da felicidade e auto-realização, criou verdadeiras tecnologias de cunho
tecnognóstico e autoritário: a “transcendência espiritual” patrocinada por
poderosas corporações – os diversos institutos Arborias que prometem a
felicidade em pílulas.
Ficha Técnica
- Título: Beyond The Black Rainbow
- Diretor: Panos Cosmatos
- Roteiro: Panos Cosmatos
- Elenco: Michael Rogers, Eva Allan, Scott Hylands e Marilyn Norry
- Produção: Chromewood Productions
- Distribuição: Elephant Eye Films
- Ano: 2010
- País: Canadá
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