domingo, setembro 30, 2018

Curta da Semana: "Nerd Cave" - a Caverna de Platão 2.0


“Nerd” deixou há muito tempo de ser um termo pejorativo, principalmente porque por trás deles há uma lucrativa indústria em expansão: os jogos de computadores. Alguns pesquisadores em cibercultura acreditam que se tornou até mesmo uma “categoria psicológica” motivada pelo desejo da imortalidade através da desconexão com a realidade. Principalmente quando atualmente os games adquiriram o status de esporte. O curta dinamarquês “Nerd Cave” (2017) um compulsivo gamer de jogos on line vive em sua própria “Caverna de Platão”, com a sua mãe. Até que um dia, a energia do bairro em que mora acaba e o seu mundo desmorona. Então, sua mãe tentará se reconectar com o filho, através de peixinhos num aquário. Um curta repleto de alegorias. Mas a principal é que agora vivemos a Caverna de Platão 2.0: também podemos interagir e jogar com as sombras projetadas na parede.

Na sua estreia como diretor, o ator dinamarquês Mads Reuther fez um curta metragem aparentemente despretensioso e nada inovador. Mas somos apanhados de surpresa com a sua riqueza simbólica a partir de coisas simples como um computador, aquário e peixes.

Nerd Cave (2017) é sobre um compulsivo jogador de games on line chamado Jonas (Marcus Gad Johansen). Passa os seus dias trancado no quarto de uma edícula no fundo da sua residência, com os olhos colados em duas telas de computador jogando enquanto conversa e desafia seus adversários.

Vive com a sua mãe (Michele Bjorn-Andersen), alheio ao entra e sai dela para lhe trazer café ou para pegar roupas para lavar. Até que o mundo de Jonas entra em colapso: no meio de um jogo importante (qualquer jogo é sempre importante) a energia acaba. O que forçará o filho a enfrentar tudo que ele tem negligenciado no mundo real.

A partir daí, vamos acompanhando uma série de tentativas desajeitadas de interações com a sua mãe. Reuther vai construindo o retrato de duas pessoas que, embora morem juntas, são solitárias – ela, que vive sozinha com seu filho; e Jonas vivendo um simulacro de interações, solitário em seu quarto escuro. A caverna de um nerd.

Será que os fusíveis queimaram? Essa é a primeira alegoria: trocar os fusíveis para reconectar a energia, enquanto Jonas está desconectado com o mundo real.

Em uma tentativa da mãe estabelecer algum tipo de conexão com o filho, enquanto espera a energia voltar ela passa uma simples tarefa para o filho: alimentar os peixes de um aquário. Outra alegoria do curta: por algum motivo, Jonas fica fascinado com os pequenos peixes nadando para lá e para cá presos no aquário. Ele então os alimenta, assim como a sua mãe o faz na sua caverna de games on line.


Ao conversar com sua mãe sobre peixes de aquário e qual a temperatura ideal para eles, Jonas começa a perceber, em algum nível, que existe um mundo tangível fora do jogo.

Nerd e a cibercultura


Em Nerd Cave, Reuther constrói o arquétipo do gamer, aquele que realmente vive por trás do avatar. Ou em uma “caverna”, numa óbvia alusão à alegoria da Caverna de Platão.

Já foi há muito tempo que os games de computadores era apenas um jogo, um passatempo para desocupados em seus consoles e “game boys”. Hoje movimenta uma indústria milionária, milhões de aficionados, chegando a ser considerado um esporte – figura até em programas esportivos de TV ao lado das notícias sobre futebol e Fórmula 1.

Alguns pesquisadores sobre cibercultura preocupam-se com essa “caverna nerd”. Por exemplo, o engenheiro de computadores do Vale do Silício e criador do conceito de “realidade virtual”, Jaron Lanier, chega a acreditar no surgimento de uma nova categoria psicológica: a “nerdice”.
Intelectualmente, o nerd é aquele que procura maneiras de digitalizar todas as distinções entre qualidades, sentidos, e afetos. Emocionalmente, o nerd é entregue a uma sensibilidade alienígena que quer proteção da intimidade humana e contato físico. Por que alguém tem um desejo tão insistente por apagar a barreira entre o humano e o mecânico, mesmo em sua própria personalidade? Porque uma vez que acreditarmos que podemos superar essa barreira, estaremos para além da morte. Máquinas não morrem” (ROSZAK, Theodore. From Satory to Silicon Valley – Nerds, Zombiesand flight to imortality.
McKenzie Wark em seu livro Gamer Theory (clique aqui). Fazendo uma adaptação da Caverna de Platão à teoria do jogador, Wark sugere que depois de um tempo jogando, os gamers tornam-se progressivamente desiludidos com o mundo real, ao ponto de que para eles a realidade passa a ser considerada falha, enquanto o mundo dos jogos são perfeitos. O que induz a voltar sempre para os jogos. Assim, o jogo se torna a “realidade” e o mundo real a nossa “realidade virtual”. Portanto, os ponto de vista estariam invertidos: os jogos seriam a utopia em que procuramos viver, conseguir méritos e prosperar, enquanto a realidade é cada vez menos atraente.


Jogo e Esporte


Mas hoje, os jogos de computador são mais do que simples jogos: são uma indústria esportiva. Por isso, é interessante acompanhar a distinção que Umberto Eco fazia entre jogo e esporte.

Para ele, jogo é “desperdício”. O que é profundamente saudável, por ser a própria natureza do lúdico, ao qual não podemos renunciar – exercê-lo significa que somos livres, uma alternativa à tirania do trabalho indispensável.
Se ao meu lado, atirando uma pedra, junta-se outro para atirá-la mais longe ainda, o jogo toma a forma de competição: também ela representa um desperdício de energia física e de inteligência que fornece regras do jogo, mas esse desperdício físico resulta num ganho. As corridas melhoram as raças, as competições desenvolvem e controlam a competitividade, transformam a agressividade original em sistema, a força bruta em inteligência” (ECO, Umberto. “A Falação Esportiva” In: Viagens na Irrealidade Cotidiana. Nova Fronteira: 1983, p.221-2).
Porém, desse núcleo lúdico e saudável surgem as primeiras degenerações quando o esporte se transforma num sistema industrial competitivo: o atleta se torna um ser que se hipertrofia num único órgão, o que faz de seu corpo a fonte exclusiva de um jogo. Para Umberto Eco, nesse momento o atleta torna-se um “monstro”.

E no caso do gamer, o que se hipertrofia é o órgão cognitivo. Nesse caso, a cognição não é apenas a fonte exclusiva do jogo, mas a própria prisão do jogador que passa a tomar o simulacro como a própria realidade.

Eco ainda vê alguém em uma condição ainda pior: o espectador dos eventos esportivos. Se o esporte é praticado para a saúde, o espectador nada faz – apenas goza da saúde alheia, é um voyeur.

Mas os games de computador são diferentes dos outros esportes: nele, apenas se diverte quem joga – apesar da industrialização dos games já contar com competições com plateias de torcedores que apenas assistem à perícia dos jogadores.

Podemos, portanto, afirmar que a velha Caverna de Platão foi atualizada, tornou-se 2.0 – os prisioneiros dessa caverna não mais apenas assistem às sombras projetadas na parede. Agora podem interagir e jogar com elas.


Ficha Técnica 

Título:  Nerd Cave (curta metragem)
Diretor: Mads Reuther
Roteiro: Mads Reuther
Elenco:  Marcus Gad Johansen, Michelle Bjorn-Andersen
Produção: Supersonic, Aarthus Filmaeksted
Distribuição: Iconic Film, Vimeo
Ano: 2017
País: Dinamarca

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