“Nerd” deixou há muito
tempo de ser um termo pejorativo, principalmente porque por trás deles há uma
lucrativa indústria em expansão: os jogos de computadores. Alguns pesquisadores
em cibercultura acreditam que se tornou até mesmo uma “categoria psicológica”
motivada pelo desejo da imortalidade através da desconexão com a realidade.
Principalmente quando atualmente os games adquiriram o status de esporte. O
curta dinamarquês “Nerd Cave” (2017) um compulsivo gamer de jogos on line vive
em sua própria “Caverna de Platão”, com a sua mãe. Até que um dia, a energia do
bairro em que mora acaba e o seu mundo desmorona. Então, sua mãe tentará se
reconectar com o filho, através de peixinhos num aquário. Um curta repleto de
alegorias. Mas a principal é que agora vivemos a Caverna de Platão 2.0: também
podemos interagir e jogar com as sombras projetadas na parede.
Na sua estreia como diretor, o ator
dinamarquês Mads Reuther fez um curta metragem aparentemente despretensioso e
nada inovador. Mas somos apanhados de surpresa com a sua riqueza simbólica a
partir de coisas simples como um computador, aquário e peixes.
Nerd Cave
(2017) é sobre um compulsivo jogador de games on line chamado Jonas (Marcus Gad Johansen). Passa os seus dias
trancado no quarto de uma edícula no fundo da sua residência, com os olhos
colados em duas telas de computador jogando enquanto conversa e desafia seus
adversários.
Vive com a sua mãe (Michele
Bjorn-Andersen), alheio ao entra e sai dela para lhe trazer café ou para pegar
roupas para lavar. Até que o mundo de Jonas entra em colapso: no meio de um
jogo importante (qualquer jogo é sempre importante) a energia acaba. O que
forçará o filho a enfrentar tudo que ele tem negligenciado no mundo real.
A partir daí, vamos acompanhando uma
série de tentativas desajeitadas de interações com a sua mãe. Reuther vai
construindo o retrato de duas pessoas que, embora morem juntas, são solitárias
– ela, que vive sozinha com seu filho; e Jonas vivendo um simulacro de
interações, solitário em seu quarto escuro. A caverna de um nerd.
Será que os fusíveis queimaram? Essa é
a primeira alegoria: trocar os fusíveis para reconectar a energia, enquanto
Jonas está desconectado com o mundo real.
Em uma tentativa da mãe estabelecer
algum tipo de conexão com o filho, enquanto espera a energia voltar ela passa
uma simples tarefa para o filho: alimentar os peixes de um aquário. Outra
alegoria do curta: por algum motivo, Jonas fica fascinado com os pequenos
peixes nadando para lá e para cá presos no aquário. Ele então os alimenta, assim
como a sua mãe o faz na sua caverna de games on line.
Ao conversar com sua mãe sobre peixes
de aquário e qual a temperatura ideal para eles, Jonas começa a perceber, em
algum nível, que existe um mundo tangível fora do jogo.
Nerd e a cibercultura
Em Nerd
Cave, Reuther constrói o arquétipo do gamer, aquele que realmente vive por
trás do avatar. Ou em uma “caverna”, numa óbvia alusão à alegoria da Caverna de
Platão.
Já foi há muito tempo que os games de
computadores era apenas um jogo, um passatempo para desocupados em seus
consoles e “game boys”. Hoje movimenta uma indústria milionária, milhões de
aficionados, chegando a ser considerado um esporte – figura até em programas
esportivos de TV ao lado das notícias sobre futebol e Fórmula 1.
Alguns pesquisadores sobre
cibercultura preocupam-se com essa “caverna nerd”. Por exemplo, o engenheiro de
computadores do Vale do Silício e criador do conceito de “realidade virtual”,
Jaron Lanier, chega a acreditar no surgimento de uma nova categoria
psicológica: a “nerdice”.
Intelectualmente, o nerd é aquele que procura maneiras de digitalizar todas as distinções entre qualidades, sentidos, e afetos. Emocionalmente, o nerd é entregue a uma sensibilidade alienígena que quer proteção da intimidade humana e contato físico. Por que alguém tem um desejo tão insistente por apagar a barreira entre o humano e o mecânico, mesmo em sua própria personalidade? Porque uma vez que acreditarmos que podemos superar essa barreira, estaremos para além da morte. Máquinas não morrem” (ROSZAK, Theodore. From Satory to Silicon Valley – Nerds, Zombiesand flight to imortality.
McKenzie Wark em seu livro Gamer Theory (clique
aqui).
Fazendo uma adaptação da Caverna de Platão à teoria do jogador, Wark sugere que
depois de um tempo jogando, os gamers tornam-se progressivamente desiludidos
com o mundo real, ao ponto de que para eles a realidade passa a ser considerada
falha, enquanto o mundo dos jogos são perfeitos. O que induz a voltar sempre
para os jogos. Assim, o jogo se torna a “realidade” e o mundo real a nossa
“realidade virtual”. Portanto, os ponto de vista estariam invertidos: os jogos
seriam a utopia em que procuramos viver, conseguir méritos e prosperar,
enquanto a realidade é cada vez menos atraente.
Jogo e Esporte
Mas hoje, os jogos de computador são
mais do que simples jogos: são uma indústria esportiva. Por isso, é
interessante acompanhar a distinção que Umberto Eco fazia entre jogo e esporte.
Para ele, jogo é “desperdício”. O que
é profundamente saudável, por ser a própria natureza do lúdico, ao qual não
podemos renunciar – exercê-lo significa que somos livres, uma alternativa à
tirania do trabalho indispensável.
Se ao meu lado, atirando uma pedra, junta-se outro para atirá-la mais longe ainda, o jogo toma a forma de competição: também ela representa um desperdício de energia física e de inteligência que fornece regras do jogo, mas esse desperdício físico resulta num ganho. As corridas melhoram as raças, as competições desenvolvem e controlam a competitividade, transformam a agressividade original em sistema, a força bruta em inteligência” (ECO, Umberto. “A Falação Esportiva” In: Viagens na Irrealidade Cotidiana. Nova Fronteira: 1983, p.221-2).
Porém, desse núcleo lúdico e saudável
surgem as primeiras degenerações quando o esporte se transforma num sistema
industrial competitivo: o atleta se torna um ser que se hipertrofia num único
órgão, o que faz de seu corpo a fonte exclusiva de um jogo. Para Umberto Eco,
nesse momento o atleta torna-se um “monstro”.
E no caso do gamer, o que se
hipertrofia é o órgão cognitivo. Nesse caso, a cognição não é apenas a fonte
exclusiva do jogo, mas a própria prisão do jogador que passa a tomar o
simulacro como a própria realidade.
Eco ainda vê alguém em uma condição
ainda pior: o espectador dos eventos esportivos. Se o esporte é praticado para
a saúde, o espectador nada faz – apenas goza da saúde alheia, é um voyeur.
Mas os games de computador são
diferentes dos outros esportes: nele, apenas se diverte quem joga – apesar da
industrialização dos games já contar com competições com plateias de torcedores
que apenas assistem à perícia dos jogadores.
Podemos, portanto, afirmar que a velha
Caverna de Platão foi atualizada, tornou-se 2.0 – os prisioneiros dessa caverna
não mais apenas assistem às sombras projetadas na parede. Agora podem interagir
e jogar com elas.
Ficha Técnica
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Título: Nerd
Cave (curta metragem)
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Diretor: Mads Reuther
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Roteiro: Mads
Reuther
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Elenco: Marcus Gad
Johansen, Michelle Bjorn-Andersen
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Produção: Supersonic,
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Distribuição: Iconic Film, Vimeo
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Ano: 2017
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País: Dinamarca
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