sexta-feira, abril 08, 2016

"Samorost 3": gnosticismo em um jogo eletrônico, por Claudio Siqueira


Vamos falar de um game saído do forno há poucos dias. Oriunda da República Checa, a equipe Amanita Design brindou o mundo com seus Point-and-Click Games no estilo Adventure, divulgando produtos e serviços através de um processo conhecido como “Gameficação”, utilizando-se da ferramenta para fins de publicidade. Como não poderia deixar de ser, o game é repleto de influências gnósticas embora os próprios criadores talvez não se deem conta disso. Prova de que o Inconsciente Coletivo reverbera em toda a esfera terrestre.

Samorost 3 é o terceiro longa da equipe, e, como o próprio nome indica, é a continuação aparentemente desnecessária dos dois antecessores. Nele, o protagonista deve derrotar um estranho vilão (semelhante ao Gargamel do desenho Smurfs mas numa versão muito mais macabra) que monta um dragão mecânico de três cabeças.

Para quem não sabe, game é o jargão utilizado para designar jogos eletrônicos, sejam eles de videogame ou computador. A asserção Point-and-Click designa os games a serem jogados com o mouse, geralmente se aplicando a games de estratégia ou RPG. Adventure é um estilo de RPG presente apenas em jogos eletrônicos, ao passo que o RPG (Role-Playing Game) pode ser jogado em mesa, com tabuleiro, ou no estilo Live Action, com os jogadores interpretando os personagens, como num teatro ou filme.


O Game, passo a passo


O game começa quando uma corneta dourada cai no quintal do protagonista, sendo apanhado por seu cachorrinho de estimação, que é sequestrado no segundo game da série. Desde o primeiro game, o protagonista habita um pequeno asteroide, o que o assemelha bastante ao Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry.

Ao ser acordado pelo cachorrinho latindo, o protagonista sai de casa e pega a corneta. Ela possui o dom de ouvir a “música da natureza”, permitindo ao protagonista que toque a melodia certa para entender o que os objetos “precisam”. É algo como “entender a língua dos motores”, do clássico Se Meu Fusca Falasse (The Love Bug, no original).


O protagonista então ouve o apelo de um cogumelo gigante que diz ser capaz de se tornar uma espaçonave. Ele precisa então coletar os itens necessários para o intento de ambos.

Os Mundos do Game


A questão é que cada mundo para o qual o protagonista viaja representa uma Sephira da Cabala Judaica, também conhecida como Árvore da Vida. Para quem desconhece, Sephiroth (o plural de sephira) são as esferas que compõem a cabala propriamente dita. Cada uma possui um título e até subtítulo, e atribuições concernentes às mesmas.

Malkuth, Lar do Protagonista


O primeiro mundo, lar do protagonista, remete à décima sephira, Malkuth, que representa a Terra, e a fase justifica tal comparação pelas referências à terra (elemento), já que o protagonista auxilia outro personagem à colher cogumelos e o puzzle (quebra-cabeça) que este oferece dramatiza a luta da humanidade primitiva para se consolidar no planeta.


Yesod, a Mudança de Rumo


Ao conseguir montar a nave e alçar voo, a primeira aterrissagem se dá em uma pequena lua cujo único objetivo é encontrar uma chave que não reside no satélite. A lua representa a nona sephira, Yesod, a esfera do sonho. Isso se justifica pelo inseto adormecido que se encontra no interior do satélite.

Hod, o Cinocéfalo de Toth


O planeta seguinte à pequena lua representa a oitava sephira, Hod, regida pelo planeta Mercúrio. Sendo Mercúrio uma versão romana para o deus grego Hermes, o mesmo equivale ao deus Toth da mitologia egípcia. Toth ostentava um pequeno macaco sobre um de seus ombros e é exatamente uma dupla de símios que representa a fase.


Netzach, a Raiz do Amor


O próximo satélite é um tronco de árvore seco que orbita um pequeno planeta vulcânico. Num dos puzzles, o personagem precisa combinar o DNA de diferentes flores através da polinização. A flor é um dos símbolos de Vênus, planeta relativo à sétima sephira, Netzach. Ao fim da fase, a combinação de flores resulta em uma mandrágora. A palavra mandrágora tem sua raiz etimológica no hebraico, no radical da palavra amor (Vênus), além de atribuir-se a ela propriedades afrodisíacas.


Tiphareth, A Viagem ao Centro do Ego


O planeta vulcânico ao redor do qual orbita o tronco de árvore representa tanto Tiphareth, a sexta sephira, quanto Geburah, a quinta. O planeta é vermelho, cor atribuída à Marte, que rege a quinta sephira, Geburah.

O objetivo da fase é desgrudar a lua que orbitava ao seu redor e acabou incrustada na superfície do planeta por obra do vilão do game. Para isso, o protagonista deve descer ao interior magmático do planeta e realizar uma operação alquímica: transformar chumbo em ouro, ou seja, a Sombra (elucidada por Jung) no verdadeiro Eu (o Self), ou, no caso, a mandrágora numa bomba.


Geburah, A Bomba


Através da explosão, o satélite se desprende do planeta. A explosão representa perfeitamente o planeta Marte, além do cenário repleto de magma, claro.

Chesed, a Roda Volta a Girar


Ao se soltar do planeta vulcânico através da bomba criada a partir da mandrágora, o satélite volta a orbitar o planeta e serve de trampolim para que o protagonista, com sua nave, atinja um nível mais elevado. A quarta sephira da cabala é atribuída ao planeta Júpiter, que por sua vez é atribuído à carta do Tarô A Roda da Fortuna. Tal representação fica evidente no fato de o satélite voltar a orbitar (rodar) em torno de seu próprio planeta.


Daath, a Incógnita


É dito que a Cabala possui uma sephira invisível que representa o Nada, a vacuidade em si. Este satélite representa tal asserção através da interrogação gravada em seu meio. Neste satélite ficava guardada a misteriosa pérola negra (roubada pelo vilão) que dá vida ao cavaleiro robô que irá enfrentar o dragão mecânico no final do game.

Binah, a Circunspecção


A terceira sephira da cabala é regida por Saturno, regente de Capricórnio, signo mais circunspecto, e é este mundo, embora arborizado, que serve de lar para o vilão do game, um carrancudo personagem que acabou com a alegria do universo que exploramos até agora. Após resolver o principal desafio da fase, o protagonista faz com que o vilão desperte o dragão mecânico e voe para fora de sua base, permitindo ao personagem recuperar a pérola negra que jaz na mesa de jantar do antagonista.


Chockmah, O Despertar da Força


A segunda sephira da cabala é regida por Netuno, planeta dos sonhos e do inconsciente. Nela, o robô gigantesco jaz adormecido com sua espada cravada no solo. Sendo Binah uma sephira feminina, Chockmah, sua contraparte, é necessariamente masculina, o que fica evidente pelo símbolo fálico que é a espada.

Kether, Assim na Terra como no Céu


Chegamos à primeira sephira, Kether, o ponto mais alto da Cabala, que seria o equivalente ao “céu”. Ao fim do game, o protagonista se senta com os monges que conheceu na fase relativa à Binah e todos tocam suas cornetas douradas em cima da torre que era lar do vilão.


Sendo cada caminho da Cabala equivalente a uma letra do alfabeto hebraico, o caminho mais baixo, que liga a décima sephira à nona é a letra Tau, que serve como marco de fundação, mastro, cetro, totem ou torre. Não por acaso, o topo da casa do vilão serve de palco para representar a última/primeira sephira, onde os personagens confraternizam.

As referências a São Jorge e o Dragão e a Belerophonte e a Quimera


Ao colocar a pérola negra (que poderia muito bem representar um fragmento da Caaba, pedra negra mística reverenciada pelos árabes) no cocuruto da cabeça do robô, este acorda e o protagonista lhe incumbe da missão de destruir o dragão.


Assim como elucidado no artigo de São Jorge e o Dragão (clique aqui), passando por suas várias releituras, a batalha entre o robô gigante e o dragão mecânico lembra muito a epopeia do mito católico romano, bem como o grego. Na lenda popular, o Dragão tenta devorar a Lua e em muitas cidades do interior do Brasil, quando há um eclipse, as pessoas saem de casa para bater panelas ou o fazem mesmo sem sair de suas residências. Esse “panelaço” tem como objetivo, o impeachment do Dragão. Segundo a mesma lenda, São Jorge, após matar o Dragão, passou a “residir” na Lua.


Essa lenda advém da estória que deu origem ao mito de São Jorge: a de Belerophonte e a Quimera. No mito, após derrotar a Quimera, Belerophonte tenta subir ao Olimpo, mas é interceptado por uma vespa enviada por Zeus que pica o Pégaso fazendo com que ambos caiam. Atena torna o chão macio para o animal, mas o herói se machuca, passando a mancar para sempre. Nosso robô gigante não tem cavalo, mas está caído ao chão e, para despertar, necessita de uma “fonte de poder”, significado do nome “Belerophonte”. Seu adversário é um dragão que, assim como o antagonista mitológico, também possui três cabeças. 

Claudio Siqueira é Estudante de Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como os panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.

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