quinta-feira, junho 07, 2012

A controvérsia dos games violentos

“Você joga games? Não? Então, como quer criticá-los”, defendem-se os usuários de jogos por computador diante das velhas e moralistas críticas de pesquisadores ainda presos a conceitos como “influência”, “comportamento” e “efeito subliminar”. Ambos os lados da controvérsia em torno dos games violentos não conseguem se desvencilhar de duas armadilhas que travam o debate: de um lado a defesa reflexa do “gosto não se discute” e, do outro, críticas ainda presas a modelos mecanicistas e comportamentais de comunicação. Uma pesquisa realizada por alunos da Escola de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (UAM/São Paulo) a partir de uma enquete feita com desenvolvedores de jogos e especialistas na área de sociologia e psicologia apontou para um enfoque alternativo a essa controvérsia: o problema dos games violentos não estaria na “influência” mas na alteração cognitiva da percepção da realidade. 

Na controvérsia em torno da suposta influência em jovens e adolescentes dos games de computador violentos, ambos os lados apresentam argumentos ou como mecanismos de defesa ou com modelos científicos defasados que ainda tentam hoje aplicar em mídias digitais e interativas.

De um lado os usuários de games. Tente articular algum pensamento mais crítico a respeito e logo ouvirá a pergunta: “Você joga games? Não! Então, como quer criticá-los”. Essa defesa reflexa faz lembrar a mesma reação que jornalistas tiveram quando o sociólogo francês Pierre Bourdieu lançou o livro “Sobre a Televisão” com precisas e cortantes críticas ao campo jornalístico: “Como Bourdieu pode nos criticar, ele não é jornalista!”, diziam a maioria dos jornalistas à época. É como se diante desse espírito corporativista fosse impossível qualquer pensamento científico ou crítico a partir de fora.

Do outro lado, os pesquisadores com os velhos modelos científicos de comunicação baseados em noções como os de “influência”, “comportamento”, “efeito subliminar” etc.


Modelos de comunicação que partem
do princípio que os receptores são
passivos e amorfos
Sabemos que esses conceitos que orientam muitas pesquisas na área de comunicação têm origem tanto na psicologia comportamental de Pavlov e Skinner como na velha “Teoria Hipodérmica” de Laswell, na década de 1930 nos EUA. Baseado na psicologia comportamental, Laswell tentava revestir de cientificidade a ideia de que os meios de comunicação “influenciam”, dentro de um rígido modelo mecanicista (estímulo/resposta) em que partia do princípio de que os receptores eram passivos e amorfos.

Embora já na época fosse contestado pelos estudos empíricos de Paul Lazarsfeld, demonstrando que os receptores eram mais ativos do que se imaginava e de que os efeitos das mídias eram demorados ou inexistentes, mesmo assim essa visão mecânica da comunicação impôs-se e persiste até hoje no senso comum, principalmente quando se trata de temas como mídia e violência.

Se esse modelo mecanicista lá tinha algum sentido quando se referia ao ambiente de meios de comunicação de massa (TV, Cinema e Rádio na sociedade de massas da “multidão solitária”), ainda hoje se persiste em aplicar esse mesmo modelo, desta vez em mídias digitais e interativas como no caso dos chamados “games violentos”.

Trocando em miúdos, esse velho modelo criaria o senso comum de que indivíduos expostos a estímulos violentos (sejam reais ou ficcionais), também se tornariam violentos por repetição.

O trabalho de conclusão da disciplina Estudos da Semiótica da Universidade Anhembi Morumbi (UAM-SP) intitulado “Jogos Violentos na Vida Real do Jogador” mostrou esses dois lados da controvérsia ao fazer uma enquete com alunos do curso de Design de Jogos do Campus Morumbi da UAM.

O grupo de alunos (Alan Dantas, Ettore Iacovella, Felipe Goldenberg, Leonardo Bacci, Rafael Shinohara e Yuri Prado) partiu de uma listagem de toda uma gama de jogos violentos que contém cenas de roubos, agressões físicas, assassinatos, consumo e compra/roubo de drogas, violências raciais, violência contra classes sociais e até mesmo abusos sexuais.

O trabalho ofereceu uma grande contribuição ao debate ao propor duas visões alternativas ao senso comum sobre jogos: a primeira psicanalítica que encara o jogo como válvula de escape ou desvio de impulsos inconscientes para objetos ficcionais, e a segunda pelo ponto de vista cognitivo onde os jogos podem alterar o imaginário e fazer o usuário perder as fronteiras entre ficção e realidade.

Jogos como sublimação
“Segundo as especialistas Adriana Prado (psicóloga clínica) e Virgínia Luz (psicóloga do Instituto Sou da Paz), esse tipo de jogo faz com que o jogador libere seus sentimentos de raiva e ódio, ou seja, aquilo que o jogador tem vontade de fazer, mas não pode, consegue, faz parte do jogo.” (“Jogos Violentos na Vida Real do Jogador”, UAM, 2012)
Capacidade da criança imitar no espaço lúdico
todas as mazelas do mundo adulto
Em seus textos clássicos sobre a história dos brinquedos e do jogo, Walter Benjamin apontava para o natural impulso mimético infantil: a capacidade da criança em imitar no espaço lúdico do jogo todas as mazelas do mundo adulto. O cruel, o grotesco e o selvagem fazem parte do imaginário infantil porque assim o mundo o é. Para além da crítica behaviorista de cunho moralmente conservador que vê em brinquedos que reproduzem armas e a violência do mundo real um incentivo ao comportamento violento, o impulso mimético trás as mazelas do mundo para o interior do jogo para subvertê-lo por meio da diversão e do distanciamento “meta”.

Tanto na Teoria da Catárse de Aristóteles (o espaço do Drama e da ficção como espaços de purgação e purificação da alma) quanto o conceito de sublimação na psicanálise da cultura de Freud apontam para essa espécie de elaboração instintual no interior da cultura onde as energias destrutivas e potencialmente anti-sociais seriam, por assim dizer, desviadas para objetos moral e eticamente reconhecidos como benéficos para a sociedade.

Se no passado esses objetos socialmente aceitos implicavam em renúncia da gratificação colocando o ponto de satisfação no futuro (operosidade, poupança, acumulação, empreendedorismo etc.), agora esses objetos são as mercadorias promovidas pela sociedade de consumo. Os games são uma delas, que preencheriam esse papel sublimatório por um lado ao desviar os impulsos destrutivos para o plano do lúdico e do virtual.

Mas por outro lado, como salientam as psicólogas Adriana Prado e Virgínia Luz, o grande problema dos games não estaria no aspecto comportamental da repetição do estímulo violento, mas no alto componente viciante, “principalmente nesses jogos em que o jogador precisa passar de fase”.

A questão cognitiva dos jogos

A socióloga e professora da Universidade Anhembi Morumbi, Irene Rodrigues, chama a atenção para um outro aspecto: o cognitivo, isto é, o aspecto da percepção da realidade através dos games. “Existem alguns jogos que contém elementos que podem alterar o imaginário. Um jovem que fica muito tempo imerso no ambiente virtual do jogo pode acabar confundindo a ficção com a realidade. Na confusão desse limite que está o perigo”.

Se no passado o jogo estava associado à dimensão lúdica, isto é, com uma dimensão distinta da realidade construída pelo impulso humano da imitação (a reprodução do real em uma escala micro seja por meio de coleções, brincadeiras, modelização etc.), agora temos a realidade virtualizada de forma “dolby stereo” onde a imersão e o realismo são virtudes maiores do que a experiência lúdica.

Irene Rodrigues dá o exemplo de atores de telenovelas que passam a ser acompanhados por guarda-costas sob a ameaça de serem agredidos por telespectadores que confundem a vilania do personagem com a própria pessoa que o representa na teledramaturgia.

Portanto, os games violentos devem ser pensados fora de noções como “influência” ou “comportamento”. 

A grande virtude do trabalho de pesquisa nos estudantes da UAM foi demonstrar a existência desses enfoques ao mesmo tempo sutis e abrangentes. Os pontos de vista psicanalíticos e cognitivo conseguem escapar da condenação moralista que cercam esses tipos de jogos ou mesmo de filmes, como no episódio do chamado “maníaco do shopping” que em 1999 invadiu uma sala de cinema no Shopping Morumbi em São Paulo durante exibição do filme “O Clube da Luta” e disparou a esmo na plateia. Imediatamente, surgiram tentativas de associação da violência do filme de David Fincher com o atentado.

O problema não é o conteúdo temático, mas o momento em que a dimensão do jogo e do lúdico se deteriora em vício, imersão e efeitos de realidade. 


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