“Você joga games? Não?
Então, como quer criticá-los”, defendem-se os usuários de jogos por computador
diante das velhas e moralistas críticas de pesquisadores ainda presos a
conceitos como “influência”, “comportamento” e “efeito subliminar”. Ambos os
lados da controvérsia em torno dos games violentos não conseguem se
desvencilhar de duas armadilhas que travam o debate: de um lado a defesa
reflexa do “gosto não se discute” e, do outro, críticas ainda presas a modelos
mecanicistas e comportamentais de comunicação. Uma pesquisa realizada por
alunos da Escola de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (UAM/São Paulo)
a partir de uma enquete feita com desenvolvedores de jogos e especialistas na
área de sociologia e psicologia apontou para um enfoque alternativo a essa
controvérsia: o problema dos games violentos não estaria na “influência” mas na
alteração cognitiva da percepção da realidade.
Na controvérsia em torno da suposta influência em jovens e
adolescentes dos games de computador violentos, ambos os lados apresentam
argumentos ou como mecanismos de defesa ou com modelos científicos defasados
que ainda tentam hoje aplicar em mídias digitais e interativas.
De um lado os usuários de games. Tente articular algum
pensamento mais crítico a respeito e logo ouvirá a pergunta: “Você joga games?
Não! Então, como quer criticá-los”. Essa defesa reflexa faz lembrar a mesma
reação que jornalistas tiveram quando o sociólogo francês Pierre Bourdieu
lançou o livro “Sobre a Televisão” com precisas e cortantes críticas ao campo
jornalístico: “Como Bourdieu pode nos criticar, ele não é jornalista!”, diziam
a maioria dos jornalistas à época. É como se diante desse espírito
corporativista fosse impossível qualquer pensamento científico ou crítico a
partir de fora.
Do outro lado, os pesquisadores com os velhos modelos
científicos de comunicação baseados em noções como os de “influência”,
“comportamento”, “efeito subliminar” etc.
Modelos de comunicação que partem do princípio que os receptores são passivos e amorfos |
Embora já na época fosse contestado pelos estudos empíricos
de Paul Lazarsfeld, demonstrando que os receptores eram mais ativos do que se
imaginava e de que os efeitos das mídias eram demorados ou inexistentes, mesmo
assim essa visão mecânica da comunicação impôs-se e persiste até hoje no senso
comum, principalmente quando se trata de temas como mídia e violência.
Se esse modelo mecanicista lá tinha algum sentido quando se
referia ao ambiente de meios de comunicação de massa (TV, Cinema e Rádio na
sociedade de massas da “multidão solitária”), ainda hoje se persiste em aplicar
esse mesmo modelo, desta vez em mídias digitais e interativas como no caso dos
chamados “games violentos”.
Trocando em miúdos, esse velho modelo criaria o senso comum
de que indivíduos expostos a estímulos violentos (sejam reais ou ficcionais),
também se tornariam violentos por repetição.
O trabalho de conclusão da disciplina Estudos da Semiótica
da Universidade Anhembi Morumbi (UAM-SP) intitulado “Jogos Violentos na Vida
Real do Jogador” mostrou esses dois lados da controvérsia ao fazer uma enquete
com alunos do curso de Design de Jogos do Campus Morumbi da UAM.
O grupo de alunos (Alan Dantas, Ettore Iacovella, Felipe Goldenberg,
Leonardo Bacci, Rafael Shinohara e Yuri Prado) partiu de uma listagem de toda
uma gama de jogos violentos que contém cenas de roubos, agressões físicas,
assassinatos, consumo e compra/roubo de drogas, violências raciais, violência
contra classes sociais e até mesmo abusos sexuais.
O trabalho ofereceu uma grande contribuição ao debate ao
propor duas visões alternativas ao senso comum sobre jogos: a primeira
psicanalítica que encara o jogo como válvula de escape ou desvio de impulsos
inconscientes para objetos ficcionais, e a segunda pelo ponto de vista
cognitivo onde os jogos podem alterar o imaginário e fazer o usuário perder as
fronteiras entre ficção e realidade.
Jogos como sublimação
“Segundo as especialistas Adriana Prado (psicóloga clínica) e Virgínia Luz (psicóloga do Instituto Sou da Paz), esse tipo de jogo faz com que o jogador libere seus sentimentos de raiva e ódio, ou seja, aquilo que o jogador tem vontade de fazer, mas não pode, consegue, faz parte do jogo.” (“Jogos Violentos na Vida Real do Jogador”, UAM, 2012)
Capacidade da criança imitar no espaço lúdico todas as mazelas do mundo adulto |
Tanto na Teoria da Catárse de Aristóteles (o espaço do Drama
e da ficção como espaços de purgação e purificação da alma) quanto o conceito
de sublimação na psicanálise da cultura de Freud apontam para essa espécie de
elaboração instintual no interior da cultura onde as energias destrutivas e
potencialmente anti-sociais seriam, por assim dizer, desviadas para objetos
moral e eticamente reconhecidos como benéficos para a sociedade.
Se no passado esses objetos socialmente aceitos implicavam
em renúncia da gratificação colocando o ponto de satisfação no futuro
(operosidade, poupança, acumulação, empreendedorismo etc.), agora esses objetos
são as mercadorias promovidas pela sociedade de consumo. Os games são uma
delas, que preencheriam esse papel sublimatório por um lado ao desviar os
impulsos destrutivos para o plano do lúdico e do virtual.
Mas por outro lado, como salientam as psicólogas Adriana
Prado e Virgínia Luz, o grande problema dos games não estaria no aspecto
comportamental da repetição do estímulo violento, mas no alto componente
viciante, “principalmente nesses jogos em que o jogador precisa passar de
fase”.
A questão cognitiva
dos jogos
A socióloga e professora da Universidade Anhembi Morumbi,
Irene Rodrigues, chama a atenção para um outro aspecto: o cognitivo, isto é, o
aspecto da percepção da realidade através dos games. “Existem alguns jogos que
contém elementos que podem alterar o imaginário. Um jovem que fica muito tempo
imerso no ambiente virtual do jogo pode acabar confundindo a ficção com a
realidade. Na confusão desse limite que está o perigo”.
Se no passado o jogo estava associado à dimensão lúdica,
isto é, com uma dimensão distinta da realidade construída pelo impulso humano
da imitação (a reprodução do real em uma escala micro seja por meio de
coleções, brincadeiras, modelização etc.), agora temos a realidade virtualizada
de forma “dolby stereo” onde a imersão e o realismo são virtudes maiores do que
a experiência lúdica.
Irene Rodrigues dá o exemplo de atores de telenovelas que
passam a ser acompanhados por guarda-costas sob a ameaça de serem agredidos por
telespectadores que confundem a vilania do personagem com a própria pessoa que
o representa na teledramaturgia.
Portanto, os games violentos devem ser pensados fora de
noções como “influência” ou “comportamento”.
A grande virtude do trabalho de
pesquisa nos estudantes da UAM foi demonstrar a existência desses enfoques ao
mesmo tempo sutis e abrangentes. Os pontos de vista psicanalíticos e cognitivo
conseguem escapar da condenação moralista que cercam esses tipos de jogos ou
mesmo de filmes, como no episódio do chamado “maníaco do shopping” que em 1999
invadiu uma sala de cinema no Shopping Morumbi em São Paulo durante exibição do
filme “O Clube da Luta” e disparou a esmo na plateia. Imediatamente, surgiram
tentativas de associação da violência do filme de David Fincher com o atentado.
O problema não é o conteúdo temático, mas o momento em que a
dimensão do jogo e do lúdico se deteriora em vício, imersão e efeitos de
realidade.
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