segunda-feira, setembro 03, 2018

"Videodrome - A Síndrome do Vídeo": como a tecnologia controla mente e carne


Um diretor de uma TV a cabo descobre o sinal pirata de uma transmissão de “Snuff TV” (filmes que mostram violência, abusos sexuais e mortes reais) chamada “Videodrome”. Mas da pior maneira possível, ele descobrirá que é muito mais do que um show de TV: é um experimento cujas ondas catódicas provocam danos cerebrais permanentes. Arma para vencer a guerra pelo controle das mentes da América planejada por uma obscura empresa que faz óculos de baixo custo para o Terceiro Mundo e sistemas de orientação para mísseis da OTAN. Esse é “Videodrome – A Síndrome do Vídeo” (1983), clássico filme de David Cronenberg que transformou em cinema toda uma tradição de crítica à mídia e tecnologia canadense, de Marshall McLuhan a Arthur Kroker: o momento em que a tecnologia deixa de ser mera extensão do homem para se transformar em carne. E o homem se transforma num aparelho de videocassete.


“A batalha pela mente da América será travada na arena dos vídeos, o Videodrome. A tela da TV é a retina da mente. Logo, a televisão é parte da estrutura física do cérebro. Portanto, o que aparece na tela da TV surge como pura experiência para aqueles que assistem. Então, televisão é a realidade e a realidade é inferior à televisão... Acho que doses maciças do sinal do Videodrome criarão um novo desenvolvimento do cérebro humano, que produzirá e controlará a alucinação a ponto de mudar a realidade. Afinal, não há nada real, além da nossa percepção da realidade”. 
(Dr. Brian O’Blivion, "Videodrome", 1983)

O pensamento canadense possui uma sólida tradição de crítica humanista da evolução tecnológica e dos meios de comunicação. Enquanto o seu poderoso vizinho, os EUA, encara a tecnologia de uma forma pragmática e direcionada para o domínio econômico e político imediato, o Canadá faz uma intensa reflexão sobre o progresso tecnológico, contando com uma importante e influente lista de pesquisadores sobre mídia, sociedade e tecnologia: Harold Innis, George Grant, Marshall McLuhan, Arthur Kroker entre outros.

Em todos eles está presente a urgência em refletir como o desenvolvimento midiático e tecnológico do pós-guerra se transformou num vasto complexo de controle de opinião, organização, consumo e liberdade individual. Uma forma de controle tão pervasiva que não se limitaria às agências política tradicionais (partidos, Estado, Governo etc.), mas na própria forma como a tecnologia molda a cultura, a mente e a percepção humanas.

Marshall McLuhan talvez tenha sido o pesquisador canadense que mais fortemente demonstrou isso com a sua tese de que as tecnologias e os meios de comunicação seriam “extensões do homem” – próteses que estenderiam o domínio dos cinco sentidos humanos.

Mas certamente, o diretor canadense David Cronenberg é aquele que no cinema transformou em linguagem, iconografia e narração essas visões que a tradição de crítica acadêmica construiu em seu país. Porém Cronenberg é mais sombrio do que McLuhan: para ele tecnologia e mídia não se limitam a extensões humanas (próteses ou servo-mecanismos) – a tecnologia adquire textura carnal, veias saltadas, movimentos peristálticos.


A tela de TV substitui a retina humana como uma grande boca feminina em close-up como se quisesse engolir o espectador. Enquanto o homem se transforma num aparelho de vídeocassete com uma fenda no abdômen na qual será inserida uma fita cassete pulsante, transformada em carne.

Essas são as imagens da união homem/tecnologia imaginadas por Cronenberg no clássico Videodrome - A Síndrome do Vídeo (Videodrome, 1983). Duas décadas depois, em 1999, o diretor radicalizaria essas visões em eXistenZ onde revólveres são construídos com material totalmente orgânico, cujas balas são de dentes humanos obtidos em fazendas, como espécies de componentes cyborg avançado – sobre o filme clique aqui.

A mística da cultura do vídeo


Videodrome é um filme repleto loops narrativos, estados alterados de consciência, realidades dentro de realidades, incertezas (tanto para o espectador quanto para os protagonistas) dos limites da realidade com alucinações. Serão as marcas registradas do que Cronenberg faria dali para frente.

Logicamente, Videodrome é datado: mergulha na então era da cultura do vídeo – não é à toa que Debbie Harry, vocalista da banda new wave “Blondie”, foi uma das protagonistas. Na época, era uma das estrelas da então recém-inaugurada MTV, com seu sex-appeal que enchia em close as telas de TV.

Mas Cronenberg consegue figurar o impulso mais atemporal, a motivação mística que dá força a todo desenvolvimento tecnológico contemporâneo: a busca da imortalidade e a superação de tudo aquilo que nos confina na carne - finitude, senso de fragilidade e temporalidade. Das experiências interativas e imersivas com vídeos (a ansiedade em fundir a carne com os pixels da imagem) às pesquisas atuais em interfaces bio-eletrônicas (a conexão final da rede neuronal com redes de informação para fazermos o upload das nossas consciências para o “céu” digital), persiste esse “drive” tecnognóstico – alcançar a imortalidade e a iluminação não pela ascese, mas pelo atalho tecnológico.


E para Cronenberg, o preço será muito alto.

O Filme


Max Renn (James Woods) dirige um pequeno canal canadense de TV a cabo, especializado a transmitir de filmes pornô softcore à violência hardcore – algumas das atrações roubadas através de ondas capturadas por uma parabólica de um pirata tecnológico chamado Harlan (Peter Dvorsky).

Até o momento em que Harlan intercepta estranhos sinais de vídeo aparentemente originários da Malásia. Imagens que oferecem chocantes cenas realistas com homens e mulheres arrastados para frente das câmeras para serem violentados, torturados e abusados sexualmente.

Max sente ao mesmo tempo repulsa e atração hipnótica pelas imagens. Chama-se “Videodrome”. Algo que os telespectadores gostariam de ver para tirá-los da apatia e mesmice.  

Max fica determinado a localizar os produtores dos vídeos, para descobrir que são mortes genuínas, algum tipo de “Snuff TV” – considerada uma lenda urbana, filmes que mostram assassinatos reais para exploração financeira. Mas tem algo muito além: há uma obscura filosofia por trás.

Max descobre que Videodrome é uma invenção acidental de um pesquisador midiático chamado Brian O’Blivion, um personagem enigmático que se recusa a fazer aparições públicas. Apenas comunica-se por monólogos em vídeo.


Na verdade, Videodrome é uma espécie de “Cavalo de Tróia” para telespectadores fissurados em sexo e violência: há um sinal escondido que causa um tumor fatal no cérebro que, por sua vez, provoca bizarras alucinações.

O dispositivo midiático foi roubado por uma empresa chamada Spectacular Optical, cuja fachada é de uma empresa comum como descreve o presidente Barry Convex (Leslie Carlson): “fazemos óculos de baixo custo para o Terceiro Mundo e sistemas de orientação para mísseis da OTAN”.

Qual o objetivo? “A América do Norte está ficando mole, enquanto o mundo ao redor se enrijece. A TV é uma piscina na qual todos se chafurdam, nos apodrecendo por dentro. Vamos para essa podridão”, explica Convex.

Exposto ao sinal de Videodrome e com o tumor crescendo dentro dele, Max não é mais capaz de diferenciar alucinação da realidade – torna-se um joguete no jogo de poder entre Convex e a filha de O’Blivion, Bianca (Sonja Smits), que luta para impedir os planos de dominação da Spectacular Optics: usar o canal a cabo de Max para controlar as mentes da América.

O mundo de Max se desintegra, para terminar na ambígua linha de diálogo “Viva a nova carne!” – a fusão definitiva da carne com os pixels, da realidade com a tela. Mas pode ser um novo começo para Max ou o seu epitáfio.

Tecnologia e Alquimia


O quê motiva o lema “Viva a nova carne”? Certamente está muito próximo da frase bíblica “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”, referida tanto ao princípio divino que criou o mundo do nada, assim como a transformação do “Logus” (Jesus) em um ser físico.


Cronenberg nesse momento chega ao núcleo metafísico de todo impulso tecnológico moderno que paga seu tributo à chamada Teurgia e a Alquimia dos antigos: “imitativo Dei por generatio animae”, imitar Deus criando vida.

A tecnologia nada mais seria do que o encontro da ciência experimental com a prática mística: assim como na velha Alquimia, a partir de sucessivas operações que reproduzem as etapas da Criação do Verbo Divino, criar vida. Mas agora, não mais Frankenstein, autômatos, robôs ou golens. Mas transformar as tecnologias em muito mais do que extensões, mas a nossa última morada imortal: tornar-se carne imortal.

Por tudo isso, Videodrome é um filme impossível de ser categorizado: está no limite entre a ficção-científica e o horror. O argumento em si é sci-fi. Mas todo o horror vem da transmutação da tecnologia em carne e da transformação do corpo humano em suporte para a reprodução do vídeo.

Videodrome pode ser considerado o ponto de partida da reflexão cinemática de Cronenberg sobre as relações da tecnologia com a sociedade. Temas recorrentes nas produções posteriores como A Mosca (1986, a fusão mórfica tecnologia/homem/inseto), Crash (1996, a fusão carne/automóvel) ou eXistenZ (1999, a fusão da carne com o vídeo-game).



Ficha Técnica 

Título:  Videodrome – A Síndrome do Vídeo
Diretor: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco:  James Woods, Sonja Smits, Debbie Harry, Peter Dvorsky, Leslie Carlson
Produção: Film Plan International, Canadian Film Development
Distribuição: Universal Pictures
Ano: 1983
País: Canadá

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