Um diretor de uma TV a cabo descobre o
sinal pirata de uma transmissão de “Snuff TV” (filmes que mostram violência,
abusos sexuais e mortes reais) chamada “Videodrome”. Mas da pior maneira
possível, ele descobrirá que é muito mais do que um show de TV: é um
experimento cujas ondas catódicas provocam danos cerebrais permanentes. Arma
para vencer a guerra pelo controle das mentes da América planejada por uma
obscura empresa que faz óculos de baixo custo para o Terceiro Mundo e sistemas
de orientação para mísseis da OTAN. Esse é “Videodrome – A Síndrome do Vídeo”
(1983), clássico filme de David Cronenberg que transformou em cinema toda uma
tradição de crítica à mídia e tecnologia canadense, de Marshall McLuhan a
Arthur Kroker: o momento em que a tecnologia deixa de ser mera extensão do
homem para se transformar em carne. E o homem se transforma num aparelho de
videocassete.
“A batalha pela mente da América será
travada na arena dos vídeos, o Videodrome. A tela da TV é a retina da mente.
Logo, a televisão é parte da estrutura física do cérebro. Portanto, o que
aparece na tela da TV surge como pura experiência para aqueles que assistem.
Então, televisão é a realidade e a realidade é inferior à televisão... Acho que
doses maciças do sinal do Videodrome criarão um novo desenvolvimento do cérebro
humano, que produzirá e controlará a alucinação a ponto de mudar a realidade.
Afinal, não há nada real, além da nossa percepção da realidade”.
(Dr. Brian O’Blivion, "Videodrome", 1983)
O pensamento canadense possui uma sólida tradição de
crítica humanista da evolução tecnológica e dos meios de comunicação. Enquanto
o seu poderoso vizinho, os EUA, encara a tecnologia de uma forma pragmática e
direcionada para o domínio econômico e político imediato, o Canadá faz uma intensa reflexão sobre o progresso tecnológico, contando com
uma importante e influente lista de pesquisadores sobre mídia, sociedade e tecnologia: Harold Innis, George Grant, Marshall McLuhan, Arthur Kroker entre
outros.
Em todos eles está presente a urgência em refletir como o
desenvolvimento midiático e tecnológico do pós-guerra se transformou num vasto
complexo de controle de opinião, organização, consumo e liberdade individual.
Uma forma de controle tão pervasiva que não se limitaria às agências política
tradicionais (partidos, Estado, Governo etc.), mas na própria forma como a
tecnologia molda a cultura, a mente e a percepção humanas.
Marshall McLuhan talvez tenha sido o pesquisador
canadense que mais fortemente demonstrou isso com a sua tese de que as
tecnologias e os meios de comunicação seriam “extensões do homem” – próteses
que estenderiam o domínio dos cinco sentidos humanos.
Mas certamente, o diretor canadense David Cronenberg é
aquele que no cinema transformou em linguagem, iconografia e narração essas
visões que a tradição de crítica acadêmica construiu em seu país. Porém
Cronenberg é mais sombrio do que McLuhan: para ele tecnologia e mídia não se
limitam a extensões humanas (próteses ou servo-mecanismos) – a tecnologia
adquire textura carnal, veias saltadas, movimentos peristálticos.
A tela de TV substitui a retina humana como uma grande
boca feminina em close-up como se quisesse engolir o espectador. Enquanto o
homem se transforma num aparelho de vídeocassete com uma fenda no abdômen na
qual será inserida uma fita cassete pulsante, transformada em carne.
Essas são as imagens da união homem/tecnologia imaginadas
por Cronenberg no clássico Videodrome - A
Síndrome do Vídeo (Videodrome,
1983). Duas décadas depois, em 1999, o diretor radicalizaria essas visões em eXistenZ onde revólveres são construídos
com material totalmente orgânico, cujas balas são de dentes humanos obtidos em
fazendas, como espécies de componentes cyborg avançado – sobre o filme clique aqui.
A mística da cultura do vídeo
Videodrome é um filme repleto loops narrativos,
estados alterados de consciência, realidades dentro de realidades, incertezas
(tanto para o espectador quanto para os protagonistas) dos limites da realidade
com alucinações. Serão as marcas registradas do que Cronenberg faria dali para
frente.
Logicamente, Videodrome
é datado: mergulha na então era da cultura do vídeo – não é à toa que Debbie
Harry, vocalista da banda new wave “Blondie”,
foi uma das protagonistas. Na época, era uma das estrelas da então
recém-inaugurada MTV, com seu sex-appeal que enchia em close as telas de TV.
Mas Cronenberg consegue figurar o impulso mais atemporal,
a motivação mística que dá força a todo desenvolvimento tecnológico
contemporâneo: a busca da imortalidade e a superação de tudo aquilo que nos
confina na carne - finitude, senso de fragilidade e temporalidade. Das
experiências interativas e imersivas com vídeos (a ansiedade em fundir a carne
com os pixels da imagem) às pesquisas atuais em interfaces bio-eletrônicas (a
conexão final da rede neuronal com redes de informação para fazermos o upload
das nossas consciências para o “céu” digital), persiste esse “drive”
tecnognóstico – alcançar a imortalidade e a iluminação não pela ascese, mas
pelo atalho tecnológico.
E para Cronenberg, o preço será muito alto.
O Filme
Max Renn (James Woods) dirige um pequeno canal canadense
de TV a cabo, especializado a transmitir de filmes pornô softcore à violência hardcore
– algumas das atrações roubadas através de ondas capturadas por uma parabólica
de um pirata tecnológico chamado Harlan (Peter Dvorsky).
Até o momento em que Harlan intercepta estranhos sinais
de vídeo aparentemente originários da Malásia. Imagens que oferecem chocantes
cenas realistas com homens e mulheres arrastados para frente das câmeras para
serem violentados, torturados e abusados sexualmente.
Max sente ao mesmo tempo repulsa e atração hipnótica
pelas imagens. Chama-se “Videodrome”. Algo que os telespectadores gostariam de
ver para tirá-los da apatia e mesmice.
Max fica determinado a localizar os produtores dos
vídeos, para descobrir que são mortes genuínas, algum tipo de “Snuff TV” –
considerada uma lenda urbana, filmes que mostram assassinatos reais para
exploração financeira. Mas tem algo muito além: há uma obscura filosofia por
trás.
Max descobre que Videodrome é uma invenção acidental de
um pesquisador midiático chamado Brian O’Blivion, um personagem enigmático que
se recusa a fazer aparições públicas. Apenas comunica-se por monólogos em vídeo.
Na verdade, Videodrome é uma espécie de “Cavalo de Tróia”
para telespectadores fissurados em sexo e violência: há um sinal escondido que
causa um tumor fatal no cérebro que, por sua vez, provoca bizarras alucinações.
O dispositivo midiático foi roubado por uma empresa
chamada Spectacular Optical, cuja fachada é de uma empresa comum como descreve
o presidente Barry Convex (Leslie Carlson): “fazemos óculos de baixo custo para
o Terceiro Mundo e sistemas de orientação para mísseis da OTAN”.
Qual o objetivo? “A América do Norte está ficando mole,
enquanto o mundo ao redor se enrijece. A TV é uma piscina na qual todos se
chafurdam, nos apodrecendo por dentro. Vamos para essa podridão”, explica
Convex.
Exposto ao sinal de Videodrome e com o tumor crescendo
dentro dele, Max não é mais capaz de diferenciar alucinação da realidade –
torna-se um joguete no jogo de poder entre Convex e a filha de O’Blivion,
Bianca (Sonja Smits), que luta para impedir os planos de dominação da Spectacular
Optics: usar o canal a cabo de Max para controlar as mentes da América.
O mundo de Max se desintegra, para terminar na ambígua
linha de diálogo “Viva a nova carne!” – a fusão definitiva da carne com os
pixels, da realidade com a tela. Mas pode ser um novo começo para Max ou o seu
epitáfio.
Tecnologia e Alquimia
O quê motiva o lema “Viva a nova carne”? Certamente está
muito próximo da frase bíblica “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”,
referida tanto ao princípio divino que criou o mundo do nada, assim como a
transformação do “Logus” (Jesus) em um ser físico.
Cronenberg nesse momento chega ao núcleo metafísico de
todo impulso tecnológico moderno que paga seu tributo à chamada Teurgia e a
Alquimia dos antigos: “imitativo Dei por
generatio animae”, imitar Deus criando vida.
A tecnologia nada mais seria do que o encontro da ciência
experimental com a prática mística: assim como na velha Alquimia, a partir de
sucessivas operações que reproduzem as etapas da Criação do Verbo Divino, criar
vida. Mas agora, não mais Frankenstein, autômatos, robôs ou golens. Mas
transformar as tecnologias em muito mais do que extensões, mas a nossa última
morada imortal: tornar-se carne imortal.
Por tudo isso, Videodrome
é um filme impossível de ser categorizado: está no limite entre a
ficção-científica e o horror. O argumento em si é sci-fi. Mas todo o horror vem
da transmutação da tecnologia em carne e da transformação do corpo humano em
suporte para a reprodução do vídeo.
Videodrome pode ser considerado o ponto de
partida da reflexão cinemática de Cronenberg sobre as relações da tecnologia
com a sociedade. Temas recorrentes nas produções posteriores como A Mosca (1986, a fusão mórfica
tecnologia/homem/inseto), Crash
(1996, a fusão carne/automóvel) ou eXistenZ
(1999, a fusão da carne com o vídeo-game).
Ficha Técnica
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Título: Videodrome
– A Síndrome do Vídeo
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Diretor: David Cronenberg
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Roteiro: David
Cronenberg
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Elenco: James
Woods, Sonja Smits, Debbie Harry, Peter Dvorsky, Leslie Carlson
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Produção: Film Plan
International, Canadian Film Development
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Distribuição: Universal Pictures
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Ano: 1983
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País: Canadá
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