Do mito do Golem
do misticismo judaico, passando pelo robô Maria do clássico “Metrópolis” de
1927 até chegar ao computador HAL 9000 de “2001” de Kubrick, a Inteligência
Artificial (IA) é vista como ameaça ou realização máxima do homem, mas nunca
sua superação por supostamente faltar nela a essência da humanidade: a consciência
ou alma. Mas o filme inglês “The Machine” (2013) insere a discussão da IA em
outro patamar, desenvolvido no cinema desde os personagens dos replicantes
de “Blade Runner” (1982) de Ridley Scott: o do “pós-humano”. “The Machine” acrescenta
a essa novo enfoque da IA um componente místico que estaria motivando a agenda
tecnocientífica atual: o tecnognosticismo - a
ambição de nos livrarmos da carne e do orgânico através da transcendência espiritual
possibilitada pela tecnologia. Encontrar a imortalidade da alma através de upload
final para um banco de dados, “nuvem” de bits ou rede eletrônico-neuronal.
A Inteligência
Artificial (IA) é um dos grandes arquétipos do imaginário contemporâneo, capaz
de alimentar tanto as utopias mais luminosas quanto os maiores pesadelos
distópicos da literatura e do cinema.
Herdeiro direto
das mitologias do Golem (ser artificial associado ao misticismo judaico da
Cabala, trazido à vida através de processos mágicos), dos homunculus da Alquimia e de Frankenstein (a criação da escritora
Mary Shelley que materializou a advertência do pintor Goya de que o sono da
Razão produz monstros), a evolução da ambição tecnocientífica pela Inteligência
Artificial pode ser dividida em três etapas:
Primeira,
representada pelo filme Metrópolis de
Fritz Lang: através de uma estética cartesiana emblemática da vanguarda
artística da primeira metade do século XX apresenta a personagem robótica
Maria, comandada pelos malignos propósitos de uma elite que escraviza
trabalhadores – mas também o símbolo da necessidade do homem comandar a máquina
com o coração para mediar os conflitos entre a classe dominante e dominada. Em
si a máquina é benéfica, bastando ao homem buscar não a Razão, mas a sua
humanidade para controlá-la de forma sábia.
A segunda, marcada
pelo filme 2001: Uma Odisséia no Espaço
de Kubrick onde a máquina (o computador HAL 9000) adquire uma consciência tão
racional e lógica que o próprio fator humano deve ser eliminado da nave
Discovery como ameaça à missão – a lógica computadorizada torna-se uma ameaça
pelo fato de sua inteligência lógica superior prescindir do juízo ético e moral
humano.
E terceira e atual
fase representada pelo filme The Machine:
a IA é o “pós-humano”, versão 2.0 da humanidade, seu estágio superior na
história evolutiva da espécie que superará todos os “ruídos” humanos como a
política, diferenças ideológicas, guerras e violência. Fase com uma forte
motivação mística onde a morte é um mero upload final para uma vida pós-morte eterna – a imortalidade em pastas e
arquivos no ambiente incorpóreo dos dados digitais, longe da vida orgânica
imperfeita e frágil.
O Filme
A narrativa inicia
com uma locução em of que nos informa
que o mundo vive uma nova Guerra Fria, dessa vez entre China e o Ocidente, e
que resultou na recessão econômica mais profunda da História. Enquanto
multidões inteiras estão passando fome, os governos investem grandes recursos
em uma nova corrida armamentista focada no desenvolvimento de máquinas
inteligentes cada vez mais potentes e mortíferas.
Em um centro
subterrâneo de pesquisas tecnológicas militares no Reino Unido trabalha um gênio
médico e cientista de computação chamado Vincent (Toby Stephens) cuja pesquisa
inclui a reabilitação de soldados feridos por meio de implantes cerebrais e
próteses. Isso ocasionalmente dá errado, como acompanhamos em uma sangrenta
sequência inicial: soldados podem perder o controle e se voltarem contra os
próprios militares.
Viúvo, Vincent não
gosta de trabalhar para o Departamento de Defesa, mas mantém-se ali na
esperança de que, através das pesquisas neurocientíficas, encontre uma cura
para sua filha que sofre de um distúrbio neurológico chamado de “síndrome
vermelha”. Vincent consegue grandes avanços em processos de escanemento do
cérebro e a transposição dos processos mentais em diagramas digitais. Mas o seu
superior Thomson (Denis Lawson) tem aplicações bem menos altruístas para as
suas descobertas científicas: criar soldados híbridos cada vez mais mortíferos
cuja consciência ou livre-arbítrio tenham sido localizados na mente e
extirpados para ficarem totalmente sob controle militar.
Quando Vincent contrata
uma nova e brilhante programadora chamada Ava (Caity Lotz), eles são atacados
por um agente inimigo infiltrado, matando-a. Vincent já havia anteriormente
escaneado a mente de Ava, transferindo todos os dados para o primeiro androide
feito em laboratório chamado “The Machine”. O problema é que sempre que Vincent
vira as costas para cuidar da sua filha, Thomson tenta programar o protótipo
para que se transforme em um “pequeno anjo da morte e destruição”.
Cartografias da Mente
The Machine é mais um filme sintonizado com a atual agenda tecnocientífica para
onde convergem as neurociências, ciências cognitivas, IA e ciências da
computação: o esforço em realizar uma integral cartografia e topografia da
mente. Desde Vanilla Sky (2001), passando
por Brilho Eterno de Uma Mente Sem
Lembranças (2004), Sonhando Acordado
(2007), Ciência dos Sonhos (2006), A Origem (2010) até chegarmos em Eva ( 2011) e o atual The Machine, o cinema expressa no plano
ficcional esse esforço real de início de século em fazer um mapeamento completo
da mente para a elaboração de uma simulação, um modelo computacional, uma
interface gráfica não só para compreender a dinâmica dos processos mentais, mas
principalmente manipulação e controle.
Corresponde a
terceira e última fase da evolução do conceito de IA, só que dessa vez com um
forte componente místico de transcendência. Ao contrário das fases anteriores,
não se trata mais de criar máquinas que simulem a inteligência humana e que
possam ser facilmente descobertas através do famoso Teste de Turing que é
apresentado no filme – teste elaborado por Alan Turing em 1950 para determinar
se as máquinas seriam capazes de pensar. Um julgador humano entra em uma
conversa em linguagem natural para determinar o quanto as respostas de uma
máquina podem se aproximar das de um ser humano.
Não
se trataria mais de simulação ou imitação, mas de superação por meio da
descoberta da consciência ou “alma” que estaria entre os dados de um sistema:
como formula a Teoria do Caos, em dado momento um cenário caótico de
informações com turbulências e instabilidades podem gerar uma massa crítica
resultando num salto qualitativo. No caso da IA, o fenômeno da consciência.
Em The Machine, para o cientista Vincent
seria a salvação da sua filha através da possibilidade de um upload da sua “alma” para uma base de
dados. Para Thomson, a possibilidade de localizar a consciência para ser
extirpada, transformando os soldados híbridos em perfeitas máquinas de matar
sem culpa ou dilemas morais.
O “Pós-Humano”
Mas
a narrativa do filme The Machine vai
além dessas possibilidades de manipulação e controle, flertando com um forte
elemento místico que secretamente motiva esse esforço neurocientífico na atual
agenda científica: o tecnognosticismo – a ambição de nos livrarmos da carne e
do orgânico (supostamente a fonte de erros e ruídos que produziriam todas as
distorções humanas como guerras e violência) através da transcendência espiritual
possibilitada pela tecnologia. Encontrar a imortalidade da alma no divino céu
dos bancos de dados.
Se
nas fases anteriores da história do imaginário da IA, as máquinas podem ser
malignas por não terem aquilo que constituiria a própria humanidade (o juízo
ético e moral), em The Machine as
máquinas se mostram como o grau mais elevado da espécie humana por terem
transcendido o corpo orgânico.
Isso
fica evidente no filme com a androide The Machine (a cientista Ava ressuscitada
ao ter sua consciência codificada em forma de bites) que “nasce” tão inocente e
pura como uma criança até ser “corrompida” por Thomson que quer transformá-la
num “pequeno anjo da morte”. Ou ainda pela rebelião dos soldados com implantes
neuronais que supostamente perderam a capacidade linguística para,
secretamente, reinventarem uma nova forma de comunicação telepática,
dispensando velha linguagem fonológica humana.
Por trás do roteiro e do argumento do filme
The Machine está o discurso motivacional místico do tecnognosticismo explicitado
na sequência final onde Vincent é deixado para trás pela androide que segura uma
espécie de tablet onde se encontra a
consciência da filha do cientista morta. Perplexo, ele testemunha sua filha e a
androide criarem um laço telepático de amizade, deixando-o de lado.
Por
isso, o tecnognosticismo se torna a religião contemporânea das máquinas, como
apontam pesquisadores como o engenheiro computacional Jaron Lanier (sobre esse
tema veja links abaixo). Embora o Gnosticismo seja uma filosofia libertária que
sempre esteve no subterrâneo durante a História criticando todos os poderes constituídos,
sua roupagem atual tecnocientífica que vê na tecnologia uma forma de gnose e
transcendência transforma-se em ideologia justificadora de uma nova forma de
engenharia social.
Afinal,
se a salvação e a vida eterna estão em um upload
final da nossa alma para alguma espécie de “nuvem” de bits, banco de dados,
rede neural ou consciência coletiva, resta a questão que o tecnognosticismo
deixa de lado: quem é o dono do hardware?
Ficha Técnica |
Título: The Machine
|
Direção: Caradog W. James
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Roteiro: Caradog W. James
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Elenco: Caity Lotz, Toby Stephens, Sam Hezeldine,
Denis Lawson
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Produção: Red & Black Films
|
Distribuição: Flashstar Home Vídeo (Brasil)
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Ano: 2013
|
País: Reino Unido
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