Há algo além do ódio político-partidário no verdadeiro “freak out” dos
motoristas paulistanos e grande mídia contra a medida de redução a velocidades
das marginais Tietê e Pinheiros em São Paulo. Parece que a Prefeitura atingiu o coração ideológico e imaginário das verdadeiras “pièce de résistance” do enclave conservador em que se tornou a cidade: o automóvel e as marginais. No
automóvel, a representação da velocidade como o último símbolo de distinção e
poder; e nas marginais, os tristes portais de entrada na cidade que representam
uma modernidade fracassada na qual ainda os paulistanos nostalgicamente se
agarram.
FREAK OUT!!!
Talvez essa expressão em inglês (alguma
coisa entre “surtar”, “baratinar” ou “perder o bom senso”) seja a que melhor
sintetize a reação de motoristas paulistanos com a determinação da prefeitura
da cidade de São Paulo em reduzir a velocidade máxima nas vias expressas,
centrais e locais das marginas dos rios Tietê e Pinheiros – de 90 km/h para
70km/h ou até 50 km/h dependendo do local.
Reações indignadas
nas redes sociais postam vídeos com ciclistas ultrapassando automóveis nas
marginais: “quando bicicletas terão placas e restrição de velocidade?”,
protestam. Nas viciadas enquetes dos telejornais da grande mídia, selecionam
comentários como “vai travar o trânsito”, “vai piorar o trânsito”, “vou perder
tempo” e assim por diante – como se diariamente as principais vias da cidade já
não estivessem costumeiramente travadas, obrigando motoristas a andarem a menos
de 20 km/h.
E como determina o
modus operandi atual do
neoconservadorismo, exige-se o “retorno da ordem” por meio de ações judiciais:
a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), seccional de São Paulo, entrou na
Justiça contra a Prefeitura com uma petição com argumentos tão subjetivos como
na ação contra a construção das ciclovias na cidade: “direito de transporte
prejudicado”, “medida não proporcional” (?) ou “uma via que foi concebida para
ser expressa não pode deixar de ser expressa”.
Se em todas as
metrópoles do mundo civilizado é adotada o princípio de “acalmar o trânsito”
como filosofia de engenharia de tráfego (redução de velocidade, estreitamento
das vias, cobrança por pedágios para entrar nas regiões centrais como medidas
para desestimular o transporte motorizado individual), em São Paulo, ao contrário, essas medidas são tomadas
como uma afronta (bolivariana?) ao inalienável direito individual.
Há algo nessa
reação dos paulistanos que vai além do simples ódio político-partidário. Parece
que a medida adotada pela Prefeitura diante do crescente número de acidentes e
mortes nas pistas das marginais atinge o coração da ideologia e do imaginário
da classe média paulistana: o automóvel, a pièce
de résistance do verdadeiro enclave conservador em que se tornou a cidade.
O
neodesenvolvimentismo dos governos petistas dos últimos dez anos já estava
irritando o suficiente as classes médias, com o crescimento do crédito e
incentivos fiscais resultando em aeroportos lotados, shoppings ameaçados por
“rolezinhos” e a facilidade de aquisição de carros novos em concessionárias
outrora somente frequentadas por pessoas “de posse”.
Mas, no caso da
cidade de São Paulo, tudo ultrapassou os limites com essa medida de engenharia
de tráfego: atingiu o próprio cerne do imaginário automobilístico, para além da
propriedade – a velocidade, o fetiche de modernidade das classes médias. E também
maculou as marginais Tietê e Pinheiros, verdadeiros símbolos de uma
modernização fracassada, mas na qual ainda os paulistanos se agarram
nostalgicamente.
O “zeitgeist” do automóvel
Um carro sedan com
linhas arrojadas passa rápido por um rua vazia pelo Centro de São Paulo. O
asfalto está molhado, refletindo e destacando ainda mais o brilho da
aerodinâmica do veículo. Um motorista confiante e orgulhoso com rosto quadrado
e másculo aprecia o prazer de guiar em ruas vazias. As imagens do carro
transmitem estabilidade, segurança, rapidez e potencia.
Quantos comerciais
de TV de lançamento de automóvel de uma marca qualquer, com um argumento parecido,
o leitor já deve ter visto? Esse é a narrativa proto-arquetípica que promove
não apenas o automóvel, mas o seu “zeitgeist”: a velocidade.
Mas não a
velocidade tradicional – aquela que diminui a distância entre todos os pontos de
partida e chegada. Mas a velocidade “dromológica”, o imperativo psicológico de
consumir a velocidade apenas como um signo, já que no mundo real as vias estão
congestionadas e as estradas monitoradas por radares.
O urbanista e
pensador francês Paul Virilio chama esse tipo de velocidade de “dromológica” - um
novo imperativo cultural, disciplina, forma de dependência e submissão. O
conceito vem do grego “dromo” (corrida), mas para Virilio é um tipo de
velocidade paradoxalmente inercial porque é tomada como um fim em si mesma,
como moralmente boa, significante do desejo, capacidade, superioridade,
performance, inteligência e energia libidinal. Não é mais um meio para se
chegar a algum fim, mas gozo em si mesma.
Com o colapso dos
sistemas viários, o carro é consumido em sua virtualidade e potencialidade –
símbolo fálico de potencia, virilidade e distinção. Potencialidade nunca
realizada (onde acelerar de zero a cem em “x” segundos?), mas consumida como o
grande AGORA! – desejo de urgência, imediatismo, ansiedade como algo moralmente
bom.
Redução da
velocidade como medida de uma política pública somente poderá ser percebida
como uma afronta a um princípio sagrado numa sociedade de consumo onde se
consome cada vez menos produtos e muito mais ideias e valores: não se trata
mais de distinção de classe da propriedade do carro, mas da sobrevivência do
mito da velocidade – sem isso, o carro reduz-se a sua materialidade e, por fim,
a sua inutilidade.
A modernidade fracassada das marginais
Mas além do carro
e o seu zeitgeist, há outro símbolo
em jogo: as marginais Tietê e Pinheiros.
A retificação do
rio Tietê na década de 1930 e o Plano de Avenidas do prefeito Prestes Maia e o
rodoviarismo de uma cidade pensada em ser urbanizada a partir de perimetrais,
radiais e marginais, transformam as vias expressas Tietê e Pinheiros nos
símbolos de uma modernidade jamais realizada.
Play Center na Marginal Tietê nos anos 1970 - a nossa Disneylândia no símbolo da modernidade fracassada |
Não é à toa que
são os verdadeiros tristes portais de entrada para a cidade, desde uma época
onde nas suas laterais começaram a surgir os primeiros hipermercados (ícones do american way of life), a inauguração do
Playcenter (emulando uma Disneylândia para a nova classe média que nascia com o "milagre econômico" da ditadura militar) e toda uma
infraestrutura para carros (motéis, modernos postos de gasolina, drive-throughs, drive-ins etc.).
Até o final do
século passado, esse imaginário ainda persistia em setores das classes médias,
visível com a promoção de festas de casamento em churrascarias à beira das
marginais.
Rachas nas
madrugadas com carros tunados na marginais com filhos dessa mesma classe média
são ainda um dos ícones do simbolismo dessas chamadas “vias expressas” no
imaginário social.
A inauguração com
pompa e circunstância da ponte Otávio Frias (a chamada “Ponte Estaiada,
verdadeira bomba sincromística – sobre isso clique aqui) ligando as margens do
Rio Pinheiros e a sua transformação, juntamente com a Marginal Pinheiros, em
cenário para o estúdio dos telejornais locais da TV Globo, demonstram o quanto
ainda as marginais significam, mais de 50 anos depois do prefeito Prestes Maia. Isso sem falar que nas marginais também estão os prédios do jornal O Estado de São Paulo e da Editora Abril.
Marginal Pinheiros e Ponte Estaiada - a modernidade televisiva como farsa |
Mas se no passado
as modernidades das marginais foram uma tragédia (problemas ambientais da
ocupação das várzeas e retificação de um rio de planície como o Tietê, poluição
e deterioração urbana) hoje é vivido como farsa – chamar ainda de “via expressa”
pistas saturadas e ainda, em nome disso, tentar reverter uma tendência global
de renovação urbana.
Tudo isso talvez
explique o verdadeiro freak out de
muitos paulistanos: enquanto no Exterior medidas como essas da redução de
velocidade são saudadas como civilizatórias, aqui são interpretadas como atos
de regimes totalitários.
Se não, como
ficariam os comerciais de TV de lançamentos de carros que patrocinam
telejornais da TV Globo que figuram como cenário a Marginal Pinheiros com filas
de carros parados ao vivo?
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