Depois de décadas de jornalismo adversativo onde dominavam conjunções
como “mas”, “porém”, “contudo” etc. para minimizar impactos negativos e, com os
governos petistas como oponentes, inverter o sinal e as adversativas
minimizarem impactos positivos, a grande mídia dá uma virada gramatical:
adjuntos adverbiais de concessão como “apesar da crise, indústria cresce...” ou
“mesmo com a crise, setor de informática vende mais...” passam a se repetir ao ponto
de tornarem-se bordões ridicularizados em redes sociais. Por que essa virada gramatical? Depois de 12 anos em uma cavalgada suicida querendo provar que o
País está no abismo econômico detonando bombas semióticas da crise
autorrealizável, a grande mídia chegou ao limite: a presunção da catástrofe
volta-se contra ela própria, com queda de audiência e anunciantes. Depois do tiro no pé a grande mídia parece tentar sinalizar ao mercado:
“apesar da crise, anuncie aqui!”.
Lá pelo final do
século passado, em plena crise do Plano Real com as maxidesvalorizações logo
depois da reeleição presidencial de Fernando Henrique Cardoso, um helicóptero
da TV Globo sobrevoava os pátios lotados de veículos das montadoras da região
do ABC paulista. A voz ao vivo do repórter aéreo falava em pátios lotados,
crise e férias coletivas. Corta para o estúdio. E o apresentador Chico Pinheiro
contemporizou: “Mas quem ganhará é o consumidor com os descontos que as
concessionárias oferecerão...”.
Essa era ainda a
época do jornalismo adversativo. Embora o jornalismo sempre tenha vivido da
presunção da catástrofe (o acidente, o bizarro e o endêmico prendem a atenção
do espectador), a utilização das conjunções coordenadas adversativas (mas,
porém, contudo, todavia etc.) sempre tiveram duas funções primordiais.
Primeiro, a função
existencial – relativizar ou
minimizar o impacto negativo é a sua função comercial de entretenimento.
Afinal, não importa se as notícias são boas ou ruins. No todo, seja o
jornalismo televisivo ou impresso, deve ser uma experiência visual, gráfica e
informativa agradável.
Anunciantes não
querem associar subliminarmente suas marcas e serviços a experiências
desagradáveis. Por exemplo, no dia dos atentados de 11 de setembro de 2001 as
redes de TV dos EUA tiveram um prejuízo de US$ 200 milhões com a suspensão de
inserções publicitárias. Um ano depois, ao fazer reportagens especiais em
horário nobre sobre o evento, a FOX News teve mais prejuízos: anunciantes
ficaram relutantes em associar suas marcas à lembrança de um evento tão
negativo.
Segundo, a função política – desde a ditadura militar, a
grande imprensa tentava conciliar a sua função informativa com a adesão às
políticas dos governos militares e, mais tarde, o apoio e confiança irrestrita
ao Plano Real. Inflação aumentou? Mas em termos relativos diminuiu comparando-se
com o mesmo período do ano anterior... O desemprego cresceu? Porém, é a
oportunidade de criar seu próprio negócio...
Marteladas adversativas
Conjunções
coordenadas (aditivas, adversativas, conclusivas, explicativas etc.) sempre
foram retoricamente interessantes para o jornalismo: conciliavam interesses
muitas vezes contraditórios (publicitários e políticos), além de criarem uma
percepção aos leitores/espectadores de um jornalismo articulado, explicativo ou
investigativo. Parece haver isenção ao mostrar um pretenso “outro lado”. Ao
contrários das conjunções subordinadas (causa, comparativa etc.), suspeitas de
intenções ideológicas ao tentarem criar subordinações entre afirmações –
porque, do que, mais, contanto etc.
A partir de 2003 e
início da era dos governos petistas Lula e Dilma, a grande mídia manteve esse
traquejo adversativo, mas agora com o sinal trocado: deve-se agora relativizar
e minimizar o impacto positivo – O PIB cresceu? Mas o desemprego aumentou. A
economia está aquecida? Entretanto, o “gargalo estrutural” não vai permitir
escoar a produção...
Foram 12 anos de
marteladas adversativas, até chegar a um ponto onde as duas funções dessa
conjunção gramatical (existencial e política) começaram a entrar em choque:
de um lado, a experiência do jornalismo como infotenimento começou a perder o
seu lado do “entretenimento” – a experiência para o leitor/espectador tornou-se
cada vez mais desagradável, alarmista, baixo astral com alusões recorrentes de
abismos, crises, precipícios, buracos e quedas.
E do outro, a
condição que a grande mídia passou a se auto-investir de ser a única opção
viável de oposição ao Governo Federal, pautando as ações da oposição política e
parlamentar.
A crise autorrealizável
Após a transformação
diuturna de cada trepidação da Bolsa, de cada variação sazonal de preços de
hortaliças e legumes (os vilões tomate e cebola, por exemplo) ou de cada flutuação
do câmbio em sintomas de uma presumível catástrofe, finalmente explodiu a bomba
semiótica da crise econômica autorrealizável.
A crise econômica
autorrealizável lembra bastante a chamada inflação psicológica da hiperinflação
brasileira dos anos 80-90 – por ter medo da inflação e na tentativa de se
prevenir contra uma catástrofe futura, consumidores, indústria e comércio
adotavam ações que colaboravam para a expansão da própria inflação.
Com a inversão dos
sinais, o diapasão do discurso adversativo finalmente criou a percepção
(paradoxalmente em todo espectro político) de que a crise econômica chegou, a
corrupção é endêmica e o País caiu no abismo. Mas como coloca de forma simples
e irônica a charge de Duke (publicada no jornal O Tempo de Minas Gerais – veja abaixo) sobre essa dinâmica
psicológica da crise, a vitória da grande mídia pode ser um tiro no próprio pé
– ou a chamada “vitória de Pirro”.
“Apesar da crise...”
A começar, a
contradição entre a função existencial e política: assistir a um telejornal
tornou-se desagradável e chato, produzindo medo e ansiedade. Por isso, somada a
ameaça das mídias de convergência (por exemplo, a Reuters lançou um canal de
vídeos cujo slogan é: “o canal de notícias para quem não vê mais TV”),
despencam as audiências dos telejornais, repercutindo nas telenovelas e todo o
horário nobre. Os patrocinadores ameaçam debandar ou querem negociar preços
mais baixos de inserção: afinal, todos sabem, estamos em crise...
Em desespero, a
mídia vem nos últimos meses abandonando as conjunções adversativas como bem
percebeu Pablo Villaça, que em seu Facebook ironizou o abuso da expressão
“apesar da crise” pela imprensa – clique aqui. Villaça fala
que se a grande mídia não utilizasse essa expressão, ela não teria mais o que
publicar, já que os fatos econômicos insistem em contradizer as previsões dos
colunistas.
“Apesar da crise,
porto de Santos bate recorde de movimento no primeiro semestre de 2015”, informou
a TV Tribuna de Santos nessa semana ou “Apesar da crise, a indústria está
otimista com as venda na Páscoa”, informou o portal de O Globo. São amostras recentes desse repentino apego ao adjunto
adverbial de concessão, abandonando as conjunções adversativas.
Virada gramatical
Por que essa virada gramatical? Comunicadores como Jô Soares ou Serginho Groisman logo perceberam
que a mídia na sua cruzada oposicionista abriu uma espécie de caixa de Pandora
que ameaça a si própria (sobre isso clique
aqui), também a grande mídia percebe que chegou ao limite da distensão
entre as funções existencial e política, entre o infotenimento e o papel
oposicionista.
Para além do
confronto político-partidário, existe a rotina contábil de entrada e saída do
caixa, das atividades comerciais cotidianas, da necessidade do constante fluxo
de inserções publicitárias que dependem de percepções e expectativas quanto ao
futuro da indústria, comércio e serviços.
A grande mídia
começa a perceber que há anos está em uma cavalgada suicida. Por isso, o
verdadeiro bordão em que se tornou os adjuntos adverbias de concessão (apesar
de, embora, em que pese, mesmo que etc.) é o sintoma dessa desesperada
tentativa de conciliar a natureza comercial de entretenimento com o papel
conjuntural de oposição política.
E uma sutil
mensagem aos patrocinadores: sim, apesar da crise vocês podem continuar
anunciando aqui...
No caso particular
da TV Globo, a situação é ainda pior. Por muito tempo, a crise e a
hiperinflação foram aliados para sua audiência cativa: na falta de dinheiro
para ir a um cinema ou restaurante, o brasileiro ficava em casa assistindo ao
horário nobre de futebol/telenovelas/noticiário.
A explosão da
bomba semiótica da crise autorrealizável pode ter deprimido o consumo e o
ímpeto de sair de casa para se divertir. Mas diante da chatice da recorrência
de adversativas e adjuntos adverbiais de concessão, há atualmente em cada
quarto da casa de um número crescente de brasileiros algum tipo de dispositivo
de convergência (celular, ipad, notebook etc.) como a alternativa mais imediata
para abandonar a grande mídia e deixar de vez que ela paute nossas vidas.
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