Por trás da inocência de uma animação infantil podem estar antigas mitologias que ainda repercutem em nossos corações e mentes. “Uma Aventura Lego” (“The Lego Movie”, 2014) já foi interpretado como uma grande comercial de 100 minutos do brinquedo Lego ou uma sátira metalinguística da cultura pop atual que faz uma mistura maluca de “Matrix”, “Toy Story” e “Os Simpsons”. Mas na verdade é um evento religioso: um evangelho gnóstico pop onde é apresentada uma crítica mordaz às noções de Verdade, Deus e Salvação. Um tirano controla todos os mundos Lego passando-se como o único construtor daquele universo. Mas a resistência secreta formada pelos “mestres construtores” sabe que “o cara lá de cima” enviará um Salvador: Emmet, um operário comum com a cabeça tão vazia que, somente ele com seu "silêncio" interior, poderá ouvir a voz da Verdade.
Com as férias
escolares esse humilde blogueiro tem a oportunidade de acompanhar os filhos ao
cinema e exposições assistindo a uma série de curtas e animações, como os leitores devem já ter
percebido nas últimas postagens do Cinegnose. E assistindo a esse conjunto de
audiovisuais não dá para passar despercebido como cada vez mais produções
atuais voltadas, a princípio, para o público infanto-juvenil são baseadas em argumentos filosóficos e/ou místicos.
Uma Aventura Lego (The Lego Movie, 2014) é mais um
exemplo desse mix de entretenimento com viés gnóstico que, de início, parece
ao espectador como alguma coisa entre o non-sense e o surreal. A melhor
primeira impressão que a animação pode passar foi dada por Susan Wlosczyna no
site de crítica de cinema Roger Ebert. com:
“imagine Toy Story feito por
Mel Brooks depois de comer cogumelos mágicos enquanto lia 1984 de George Orwell”.
Essa surreal
animação digital em 3D pode ser interpretada inicialmente de duas formas: ou é
um gigantesco comercial de 100 minutos
dos blocos de montar Lego, ou então uma brincadeira metalinguística da atual
cena pop cultural da qual o brinquedo Lego faz parte, assim como grandes ícones
como super-heróis, Coca-Cola, filmes de faroeste, Starwars etc.
Mas há algo mais: Uma Aventura Lego faz uma sátira
subversiva sobre a alienação resultante do conformismo e a submissão a rígidos
papeis sociais, exaltando o poder da imaginação e da individualidade. Mas uma
animação de 100 minutos não consegue ser bem sucedida apenas com boas gags,
perseguições de carros e naves espaciais em estilo slapstick e alusões constantes a ícones da cultura pop.
Longas, curtas e
animações devem também explorar antigas simbologias e mitologias para terem algo
a dizer aos nossos corações e mentes. E
no caso de Uma Aventura Lego, além da
sátira sociológica o filme está carregando de relevantes temas gnósticos, mas
principalmente a cosmologia gnóstica e a gnose.
Seguindo a
comparação com Toy Story sugerida
acima, podemos dizer que se na animação da Pixar os brinquedos já possuem o
conhecimento da sua condição de terem um dono, em Uma Aventura Lego acompanhamos o lento despertar da autoconsciência
dos bonecos legos: o despertar da gnose que levará à descoberta da existência
“do cara lá de cima”, a quem constantemente se referem os personagens.
O Filme
Um velho profeta
sábio chamado Vitruvius (Morgan Freeman) é derrotado por um vilão com
interesses corporativos chamo Sr. Negócios (Will Ferrell), que lhe toma a super-arma
do mal chamada Kragle (na verdade um tubo de cola). O vilão planeja
literalmente colar todas as peças para que a espontaneidade e a individualidade
não estraguem a sua criação, os diversos mundos construído com blocos Lego – Cidadópolis,
Velho Oeste, Zelândia Média, Terra dos Vikings, Piratas, Cavaleiros etc. Mas
antes da derrota Vitruvius anuncia uma profecia: um dia aparecerá o “Especial”,
aquele que libertará todos os mundos Lego da tirania.
E o Salvador
Especial é Emmet, um boneco operário comum da construção civil que tem nos
manuais de instruções as regras claras que deve seguir para que tudo funcione
perfeitamente: os carros estacionem ao mesmo tempo, todos se cumprimentem com
um sorriso no rosto, um mesmo episódio de série de TV seja repetido diariamente
e continue tendo graça e assim por diante.
Emmet não sabe que
é o Especial, mas no final de mais um dia igual a todos conhecerá Megaestilo
(Elizabeth Banks), militante dos “mestres construtores” que fazem resistência
ao tirano – eles querem o direito de construir livremente. Emmet fica sabendo a
profecia e começa a acreditar que, afinal, apesar de limitado deve ter algum
poder especial.
Em uma mistura
maluca de Matrix, Toy Story e Os Simpsons, o ritmo é intenso com lutas
e perseguições onde impressiona o cuidado com os detalhes – até as ondas,
fumaças e nuvens são feitos em tijolinhos Lego. A técnica é animação em 3D que
simula stop motion.
Na medida em que o
filme avança, acumulam-se alusões de que não estamos diante de uma animação
qualquer: o profeta sábio e cego; os diversos mundos onde um não sabe a
existência do outro, separados por cenários com instruções estritas de não
poderem ser ultrapassados; a questão sobre quem é “o cara lá de cima” que teria
escolhido Emmet para ser o Salvador; o treinamento de Emmet para esvaziar sua
mente (no caso dele seria mais fácil por ser praticamente um Homer Simpson)
para, dentro de si, encontrar uma conexão com “o cara lá de cima”; o Sr.
Negócios que supostamente teria criado tudo, mas é questionado pelos mestres
construtores que acreditam que há “o cara lá de cima” superior a ele.
Lego Gnóstico? Aviso: spoilers à frente
Grosso modo, o
Gnosticismo foi um conjunto de seitas e escolas iniciáticas do início da Era
Cristã que se opuseram ao Cristianismo ortodoxo ao defenderem que a Salvação já
estava presente no interior de cada um de nós, revelada através da gnose. Ao
invés de acreditarem que o mundo foi uma construção perfeita e que nós humanos
estragamos tudo por meio do livre-abrítrio (optamos pelo pecado), os gnósticos
se recusavam a acreditar que o mundo era perfeito. O cosmos foi criado por um
deus menor que se passa como fosse um deus verdadeiro – no Evangelho Apócrifo de Judas
ele é mencionado como “Saklas”, o “tolo”. Depois de construir todo o cosmos,
Saklas reivindicou ser o único e verdadeiro Deus.
Em Uma Aventura Lego, a grande revelação é
que há um “cara lá de cima” (o pai e o filho – Will Ferrell e Jadon Sand - que
brincam com os mundos Lego), para além do Sr. Negócios. O demiurgo construiu um
mundo imperfeito onde a fim de manter a ordem nega que todos exerçam sua
verdadeira criatividade. Ele é o deus contra quem lutam os “mestres
construtores” (os gnósticos?) que sabem que a criatividade reprimida é a gnose
que os reconectará ao “cara lá de cima”, o verdadeiro Deus.
Os
gnósticos/mestres construtores acreditavam que não era necessário um “manual de
instruções” para escapar desse mundo. Ao invés disso, bastaria encontrar a
Verdade (a criatividade) no interior de cada pessoa/boneco.
A gnose de Lego
Emmet é o verdadeiro
núcleo da Verdade em Uma Aventura Lego:
ele é um operário comum, confrontado com a oportunidade de ser “Especial”.
Assim como um Cristo, é anunciado pelo profeta Vitruvius como o Salvador. Mas o
interessante é que a Profecia no filme é uma mentira. O próprio profeta anuncia
ser tudo uma farsa porque “dá uma boa rima”. Mas é precisamente isso que redime
Emmet é o faz se sacrificar por todos – seu sacrifício prova que não existe
essa coisa de “Especial”.
No entanto, a
profecia é verdadeira, mesmo sendo inteiramente falsa! A salvação é a
criatividade que já está presente no interior de todos – é o processo gnóstico
de auto-divinização.
O que vemos no
filme é um evento religioso, ironicamente anunciado pelo profeta Vitruvius em
seu ateísmo total – em Lego tudo é inventado, tudo fabricado, artificial.
Qualquer um pode ser Deus e montar o que quiser. Ele nos mostra que o mundo é
cheio de estruturas onde nada é o que parece.
Uma Aventura Lego aproxima-se ainda mais do Gnosticismo
ao mostrar o processo de gnose de Emmet – aproxima-se do estado alterado de
consciência que o filósofo gnóstico Basilides chamava de “suspensão”: o
esvaziamento da mente, a busca do grau zero de negação total da linguagem.
Emmet segue os passos do protagonista do gnosticismo pop que chamamos de “O
Viajante”: aquele que, apesar de estar integrado e bem sucedido em um mundo
falso, de repente é forçado a cumprir uma jornada (o Jogo) que o obrigará a
realizar uma reforma íntima.
Ironicamente, o
vazio da mente comum de Emmet (ele apenas repetia como um mantra o manual de
instruções do mundo Lego) é que possibilitou a gnose – o sacrifício e o contato
final com o “cara lá de cima”.
Por isso Emmet e o
protagonista Neo de Matrix são idênticos – a todo momento o filme parece
procurar essa analogia. Tal como Neo, Emmet retorna da sua presumível morte com
a capacidade de visualizar os códigos e estruturas do Lego. Torna-se um
super-construtor, passando a mensagem que todos podem ser igual a ele.
Na inocência de um
jogo de criança esconde-se a gnose: Sim! Podemos todos construir.
Ficha Técnica |
Título: Uma
Aventura Lego (The lego Movie)
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Diretor: Phil Lord, Christopher Miller
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Roteiro: Phil Lord, Christopher Miller
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Elenco: Will Ferrell, Morgan Freeman, Elizabeth Banks, Alison Brie, Will Arnett,
(vozes)
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Produção: Warner Bros. Village Roadshow
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Distribuição: Warner Bros.
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Ano: 2014
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País: EUA
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