Pode parecer que “O Abrigo” (“The Divide”, 2011) é mais um filme pós-apocalíptico em que, outra
vez, Nova Iorque é destruída. Dessa vez por bombas nucleares em uma guerra
indeterminada. Mas dessa vez não temos uma narrativa épica de um herói que luta
em colocar ordem no caos para salvar o dia. As coisas irão de mau a pior num
grupo de sobreviventes em um abrigo subterrâneo. A obsessão pela temática pós-apocalipse
e do fim do mundo no cinema encobre a raiz de um sintoma que “O Abrigo” revela
de maneira explícita: o freudiano “Mal-Estar da Civilização” assentado no temor
da morte, da fragilidade do corpo e no inferno que representa o outro. Por
isso, o diretor Xavier Gens vai buscar inspiração em dois clássicos da literatura
do niilismo pós-guerra: a peça “Entre Quatro Paredes” de Sartre e “O Senhor das
Moscas” de William Golding. “O Abrigo” é um filme para cinéfilos com mente e
estômago fortes. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
A Segunda Guerra Mundial, o Holocausto
e as bombas atômicas jogadas em Hiroshima e Nagasaki foram divisores de águas
na História humana: guerra total, blitzkriegs e campos de concentração parecem
ter derrubados todos os pesos e contrapesos da civilização (ética, moralidade,
diplomacia, cidadania etc.) para revelar até onde o homem é capaz de chegar – a
normalização do Mal.
Desde então o cenário cultural nunca
mais foi o mesmo. Um exemplo é a literatura. No final da guerra, o filósofo
Sartre escreve a peça de teatro “Entre Quatro Paredes” (1944): três pessoas são
enviadas ao Inferno. Mas não há demônios ou brasas. Apenas são trancadas em um
quarto e obrigadas a conviverem entre si por toda a eternidade – “o inferno são
os outros”, expressa a frase mais famosa da peça.
E em 1954, William Golding lança “O
Senhor das Moscas”: um avião lotado de crianças e adolescentes cai em uma ilha
deserta. O grupo vai progressivamente regredindo à vida dos instintos e às pulsões
da violência e morte. A disputa pelo poder é o estopim do caos, e o paraíso do “bom
selvagem” (invertendo o clássico “Robinson Crusoé” de Daniel Defoe) acaba em
carnificina.
Pois Xavier Gens (A Fronteira, 2007) une essas duas obras num microcosmo do colapso
da civilização no filme O Abrigo (The Divide, 2011). Um filme
implacavelmente cruel, onde as coisas vão sempre de mau a pior. O que começa
como uma estória clássica de sobrevivência pós-apocalipse, termina em horror
imundo e nojento – literalmente!
Em quase todas as narrativas pós-apocalípticas
o herói normalmente tropeça em um grupo, pessoas ou sobreviventes que demonstram
o quão baixo a humanidade pode chegar. Mas em O Abrigo não há um conto épico de superação e heroísmo. Há apenas
um grupo de sobreviventes que se deteriora física e psiquicamente em sangue,
brutalidade e torturas.
Definitivamente, O Abrigo é um filme para cinéfilos fortes e aventureiros. Xavier
Gens faz um verdadeiro estudo sobre o caráter sombrio em cada um de nós: como o
complexo de Deus, o esmagamento da alma pelo tédio e tristeza, fetiches
sadomasoquistas ou a violência podem destruir até a última fibra moral. E
relegar a humanidade à luta cruel pela satisfação das funções orgânicas mais básicas
– comida, sexo e excrementos.
Tanto
a obra “Entre Quatro Paredes” como “O Senhor das Moscas” foram manifestações
daquilo que Freud chamou de “Mal-Estar na Civilização” às vésperas da Segunda
Guerra Mundial, em 1930. Freud apontava que a raiz do mal-estar estava em três
sofrimentos: a
vulnerabilidade e finitude do corpo, a fúria do mundo exterior e os vínculos
com outros seres humanos.
Em O Abrigo o inferno da relação com os
outros numa situação de confinamento soma-se à morte e a ameaça da radiação
numa cenário pós-apocalipse após algum tipo de guerra nuclear. Literalmente, o
filme de Xavier Gens mostra a barbárie que se esconde no subterrâneo da
civilização – os sobreviventes estão confinados num abrigo no subsolo de um edifício
em Manhattan, ícone da civilização ocidental e alvo de uma série de destruições
(climáticas, cósmicas, extraterrestres, terroristas etc.) na história do
cinema.
O Filme
O Abrigo acompanha nove vizinhos de um
edifício residencial que fogem para um abrigo subterrâneo após Nova Iorque ser
atacada por uma série de explosões nucleares. O filme começa através dos olhos
Eve (Lauren German) que olha através de uma janela a chuva de bombas, fogo e
explosões, enquanto todos os moradores descem em desespero as escadas do prédio.
Até que Mickey (o síndico do condomínio e bombeiro sobrevivente dos ataques de
11/09 de 2001) consegue levar o grupo para um abrigo subterrâneo construído por
ele.
Paranoico
após os ataques de 2001, Mickey (Michael Biehn) transformou aquele abrigo numa
célula de sobrevivência com geradores de energia e estoque de alimentos, arma e
bebidas.
Aterrorizados
pelas advertências de Mickey sobre o envenenamento por radiação e mutações, o
grupo tenta vedar a porta e permanece preso no subsolo. Sob a ameaça não só do
machado de Mickey como também por uma ameaça desconhecida do outro lado da
porta – grupos armados vestidos com roupas antirradiação.
Minutos
se tornam dias, dias se tornam semanas e depois meses. O tempo começa a
diluir-se criando no espectador uma confusão temporal idêntica ao dos
sobreviventes. É quase impossível dizer quanto tempo estão lá, já que no abrigo
não há luz ou relógios.
Progressivamente
os personagens vão perdendo a sanidade com divisões, lutas pelo poder, líderes
que passam a se sentir como um deus sobre a vida e a morte dos outros. Tudo em
torno da posse de água, comida e bebida – a desconfiança mútua cresce, enquanto
gengivas começam a sangrar e chumaços de cabelo a cair.
A
narrativa começa a lembrar “O Senhor das Moscas”, só que com mais agressão
sexual, violência, sujeira e loucura.
Aos
poucos vamos descobrindo a vida pregressa de cada um dos personagens, que em
muitos aspectos lembrarão os personagens sartrianos de “Entre Quatro Paredes”:
uma mulher fútil com a sua filha (“a melhor parte de mim”, diz Marilyn – Rosanna
Arquette), Eve (a melhor impetuosa e ex-drogada que vivia nas ruas). Entre
outros personagens como um advogado que passa o tempo catatônico imerso em um
livro (Sam – Ivan González) ou a dupla que assume o poder de um quarto secreto escondido
por Mickey e que transforma Marilyn em escrava sexual (Bobby e Josh – Michael Eklund
e Milo Ventimiglia).
A máscara é retirada
A
performance dos atores é impressionante, na forma como conseguem representar a
degradação física e mental – o tempo inteiro cobertos de pó, sujeira, sangue e
suor em condições de atuação certamente desagradáveis. Atingindo o objetivo do
diretor Xavier Gens: mostrar como a humanidade pode trilhar o caminho de volta
aos nossos hábitos mais primais.
A
elevada carga de niilismo e desesperança tornam O Abrigo um filme pós-apocalíptico diferenciado: se é notável a recorrência
de filmes escatológicos sobre o fim do mundo desde o pós-guerra (tomando como
alvo principalmente Nova Iorque e Los Angeles), há na maioria deles a narrativa
épica e heroica que mascara o freudiano “mal-estar da civilização” – que, afinal,
é o principal motivador dessa onda pós-apocalipse.
Mas
em O Abrigo essa máscara é retirada.
Naquele subterrâneo cada fibra moral será destruída, revelando que a morte, o
outro e a fragilidade humana diante da fatalidade são aquilo que a civilização
acima daquele abrigo tentou recalcar. Sem resultado, já que todo o gênio e
racionalidade humana foram apenas capazes de criar as armas da sua própria
autodestruição.
No mundo de O Abrigo os seres humanos não têm necessariamente um lado escuro e
outro iluminado. Apenas há a escuridão (reforçada por uma corajosa fotografia
escura e uma paleta com pouquíssimos contrastes de cores), revelando que o
papel da sociedade é unicamente criar barreiras para manter essa escuridão fora
de vista.
A única
personagem que porventura poderia representar a bondade, pureza e esperança é
retirado brutalmente daquele abrigo: a pequena menina Wendy (Abbey Thinckson),
filha de Marilyn, que sempre segura um coelho de pelúcia.
Uma
boa solução do roteiro: seria insuportável demais para o espectador ver a
fragilidade infantil exposta àquele verdadeiro inferno entre quatro paredes.
Cuja saída final passa (imagine!) através de uma fossa séptica.
Realmente, O Abrigo é um filme para mentes e estômagos fortes...
Ficha Técnica
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Título: O Abrigo
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Diretor: Xavier Gens
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Roteiro: Karl
Mueller, Eron Shean
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Elenco: Lauren German, Michael Biehn, Milo Ventimiglia, Rossana Arquette, Iván
González, Michael Eklund, Ashton Holmes, Courtney Vance
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Produção: Instinctive
Film, Preferred Content
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Distribuição: Anchor Bay Films
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Ano: 2011
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País: EUA, Alemanha, Canadá
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