quinta-feira, agosto 13, 2020

Em "Coma" podemos ficar prisioneiros nas nossas próprias telas mentais

  

Num estilo semelhante ao conceito visual do filme “A Origem”, a ficção científica russa “Coma” ("Koma", 2019) apresenta um misterioso universo alternativo para onde vão as consciências de todos os paciente em estado de coma do planeta -  um mundo estruturado por redes neurais que desafiam todas as leis da física, reunindo memórias coletivas que criam um contínuo tempo-espaço que parece dobrar sobre si mesmo. Depois de um grave acidente, um arquiteto desperta nesse universo. Ele terá que compreender as leis que regem esse mundo para poder voltar ao mundo “real”. A forma como “Coma” desenvolve esse argumento aproxima-se dos clássicos temas da Teosofia (formas-pensamento no Plano Astral) e a noção de “sonho da consciência” do gnosticismo samaeliano. Principalmente como podemos nos tornar prisioneiros das telas mentais da nossa própria consciência. 

Nos últimos anos o cinema de gênero russo deu um salto internacional com filmes como o recente Sputnik (2020), Attraction (2017), The Zohar Secret (2015), Guardians of The Night (2016), Branded (2012). Filmes que comprovam que não é necessário se promoverem por trás de produções milionárias sob as estratégias mercadológicas blockbusters. Ainda não são sucessos de exportação, mas o seu público cresce continuamente.

O épico sci-fi Coma (2019) é mais um exemplar dessa safra alternativa russa que impressiona pela sua narrativa que leva o gênero sci-fi ao Fantástico com massivos efeitos em CGI. Mais impressionante, tudo com um orçamento relativamente pequeno, com algo equivalente a quatro milhões de dólares, comparado com os congêneres norte-americanos.

O diretor Nikita Argunov nos leva a uma jornada com um incrível design de efeitos especiais através de um misterioso mundo paralelo feito de memórias de pacientes em estado de coma. Um arquiteto chamado Viktor (Rinal Mukhametov), após um grave acidente de carro, desperta em um mundo fantástico porque as memórias dos pacientes em coma de todo o planeta se ramificam em uma espécie de rede neural.

Por exemplo, a ponte Golden Gate pode lhe conduzir através de canais venezianos ou talvez para mercados de rua chineses, próximo a uma fábrica russa. No meio das nuvens, como se estivesse em um palco, paira um avião como se estivesse congelado, enquanto em outro lugar jaz um submarino esquecido em um cais abandonado com cardumes de peixes nadando em volta em águas translúcidas.

São lugares e imagens incompletas, e tudo parece ameaçar desaparecer. Nesse mundo todas as leis da física são contrariadas onde tempo e espaço parecem se dobrar sobre si mesmos. O que lembra diretamente o conceito visual do filme A Origem (Inception, 2010), apenas com a diferença que não se trata mais de mundos oníricos do inconsciente – mas de uma jornada através redes neurais que se conectam formando memórias efêmeras.

Viktor está perdido nesse mundo e luta para conhecer suas leis para poder retornar ao mundo “real”. Principalmente porque do mundo “real” ele apenas tem vagas lembranças fragmentadas.


É justamente essa ambiguidade sobre o que é o real, que animava o filme A Origem, que também está presente aqui nessa produção russa. Se no mundo que chamamos de real a sua concreticidade é formada pela percepção e memória, da mesma forma o universo alternativo de Coma são as próprias memórias materializadas em uma espécie de Plano Astral.

O filme russo Branded de certa forma também abordava esse tema – como as batalhas mercadológicas entre as marcas criam uma batalha entre monstros em um Plano Astral que contamina o mundo “real”.  

Dessa maneira, Coma aborda um tema bem caro à Teosofia (as formas-pensamento no Plano Astral e sua ação no mundo físico) com reflexos no Gnosticismo, principalmente o “samaeliano” – relativo a Samael Aun Weor, fundador do Movimento Gnóstico Cristão Universal: a condição do “sonho da consciência”, a busca do sonho lúcido como forma de escapar das telas mentais que criamos.

Claro que o toque gnóstico conspiratório de um protagonista demiurgo que tenta dominar esse estranho universo de Coma põe o thriller narrativo em movimento.



O Filme

Se o escritor William Gibson (“Neuromancer”) dizia que a realidade é uma ilusão consensual, igualmente o mundo de Coma é uma ilusão consensual das memórias e percepções de todos os pacientes em estado de coma do planeta. É nesse mundo que Viktor desperta após um acidente de carro que não está muito claro como ocorreu. Tudo que ele tem são fragmentos de lembranças.

Coma já inicia em alta rotação quando Viktor percebe em meio à paisagem (mundos incompletos que se sobrepõem desafiando a lei da gravidade, conectados como redes neuronais da mente) a aproximação de grande e ameaçadoras criaturas negras e viscosas que passam a persegui-lo. Correndo desesperado e caindo de ruas e prédios que se dobram ao melhor estilo A Origem, é salvo por uma brigada underground de guerreiros que lutam há tempos contras aqueles seres.

Chegando ao esconderijo do grupo num prédio industrial em ruínas, aos poucos Viktor começa a conhecer detalhes daquele universo distópico: aquelas criaturas chamam-se Ceifeiros e a morte naquele mundo significa não mais retornar do coma no mundo físico. O grupo de lutadores, guiado por um líder carismático chamado Yan (Konstantin Lavronenko), procura uma ilha lendária que supostamente oferecerá proteção contra os Ceifeiros, seres com um aspecto que lembra algo como sombras derretidas.

   Viktor sentirá uma estranha atração por uma das guerreiras (Lyubov Aksyonova), o que o levará a uma questão essencial: todos eles não querem acordar, mas ficarem para sempre naquele mundo, nessa ilha lendária. Ao contrário dele, que tenta juntar os fragmentos das lembranças para tentar retornar à vida. E aquela garota é o elo de ligação com a sua vida anterior como arquiteto: a última coisa que lembra é de estar andando de carro para uma reunião com um cliente.



“Sonho da consciência” e tecnognose – Alerta de spoilers à frente

Seja o sono, coma ou a morte, nesses três estados entramos no estado de inconsciência onírica. Ou naquilo que Samael Weor chamava de “sonho da consciência” – criamos uma tela mental a partir das nossas lembranças, desejos, traumas, fantasias etc. E nos perdemos, fascinados por esses objetos oníricos, como se estivéssemos em situações reais. Criamos um universo inteiro – Leia WEOR, Samael Aun, Sim, Há Inferno, Diabo e Karma, Edisaw, 2011.

E no caso do filme Coma, um universo consensual de ilusões coletivas – será um inconsciente coletivo?

Enquanto o sonhador não encontrar a lucidez, a tela mental consegue plasmar potentes formas-pensamento num mundo etérico capaz de nos aprisionar por meio da fascinação e inconsciência. Isto é, cria-se uma bolha escapista, uma ilha de fantasia para a qual o líder daquele grupo underground pretende levar todos.

Esse é o elemento demiúrgico do filme; no mundo “real” ele é um cientista que descobriu esse inconsciente coletivo no estado de coma e para lá pretenderá escapar das mazelas desse mundo. Nem que seja ao custo da manipulação religiosa – acompanhamos como ele cria uma seita que arrecada uma fortuna em fundos que irão financiar sua pesquisa tecnognóstica.

Tecnognosticismo: projeto ciberutópico e místico que motiva a atual engenharia computacional que cria uma verdadeira “religião da tecnologia” - a salvação e a imortalidade por meio de um upload final da consciência para um universo alternativo digital. No caso de Coma, a ilha plasmada por formas-pensamentos.



Para o Gnosticismo, essas telas mentais plasmadas por formas-pensamento irão criar sucessivos mundos ou planos astrais – cada um deles com um Demiurgo manipulador e seus Arcontes – os Ceifeiros?

Todos eles nada mais seriam do que labirintos ou formas prisionais para nos manter em loop nesse cosmos no sucessivo ciclo de morte e reencarnação – ou a “Roda do Samsara” para o budismo tibetano.

Claro que até esse momento estamos abordando o filme Coma pelo ponto de vista do seu argumento e potencial temático. Apesar da sua temática distópica, Coma não aprofunda uma leitura política ou socialmente crítica dos acontecimentos. A estrutura ramificada da narrativa paradoxalmente permanece unidimensional, no qual as qualidades dos efeitos visuais superam o conteúdo.

Em muito momentos chegamos a uma intoxicação visual, onde as ações se assemelham a um videogame e os personagens deixam de ter o aprofundamento necessário. O que torna a narrativa em muitos momentos dispersa em seus 111 minutos. Por isso falha em sua tentativa de aproximação com os modelos clássicos de A Origem e Matrix.


 

Ficha Técnica 

Título: Coma 

Diretor: Nikita Argunov

Roteiro: Nikita Argunov

Elenco: Rinal Mukhametov, Lyubov Aksynova, Antom Pampushnyy, Konstantin Lavronenko

Produção: Big Cinema House, Big Sky Film

Distribuição:  Dark Sky Films

Ano: 2019

País: Rússia

 

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