“Every Time I Die” (“Cada Vez que Eu Morro”, 2019) confirma duas teses desse blog: primeiro, que é nos filmes independentes que estão atualmente os roteiros mais inventivos e audaciosos; e, principalmente, que os melhores filmes com temática religiosa e espiritualista são aqueles dirigidos por diretores ateus e agnósticos – o que parece garantir sinceridade e objetividade no tratamento fílmico. Dirigido pelo estreante Robi Michael, é um filme sobre obsessão, possessão e reencarnação. Quando Sam é assassinado, sua consciência começa a migrar para os corpos de seus amigos na tentativa de preveni-los do assassino. Sem ter qualquer controle ou consciência desse misterioso processo. “Every Time I Die” aborda um tema recorrente nos recentes filmes com temática gnóstica: a gnose pós-morte como forma de romper o ciclo sucessivo da morte, reencarnação e sofrimento - a rota espiritual de fuga.
Para o Gnosticismo vivemos num universo fraturado: a Criação produziu uma crise cósmica – um Demiurgo inebriado de poder aprisionou a humanidade na sua própria criação, transformando o homem num “deus em ruínas”.
A tradição da filosofia gnóstica professa que a única forma do homem escapar desse universo imperfeito criado por uma falsa divindade é através da gnose – um tipo especial de conhecimento que permitiria uma rota espiritual de fuga desse cosmos no qual somos exilados.
Muito se pergunta sobre o que é afinal a “gnose”: autoconhecimento, “insight”, epifania místico-religiosa, conhecimento que salva, saber salvífico, etc. São termos abstratos, de caráter metafísico ou de autoconhecimento espiritual, que não se concretizam: mas, afinal, o que é na prática essa “rota de fuga espiritual”?
Desde o início desse século, os filmes gnósticos vêm procurando, em termos imagéticos e narrativos, concretizar esse evento da gnose. Sempre em torno da noção de “sonho lúcido”: Vanilla Sky (o esforço de David Aymes em conquistar lucidez ou senciência dentro de um estado onírico em um sono criogênico) ou Enter The Void - inspirado no “Livro Tibetano dos Mortos”, após a morte, sob o estado alucinógeno após fumar DMT, o protagonista luta para conseguir a consciência pós-morte tentando distinguir alucinação e realidade – clique aqui.
Esses filmes gnósticos que exploram o tema da gnose parecem se alinhar a uma linha específica do Gnosticismo: a de Samael Aun Weor (1917-1977) e sua técnica diária de auto-observação em vigília (sujeito, objeto e lugar) para conseguir atingir o “sonho lúcido” dentro do sono. E, mais importante, esse sonho lúcido ser atingido também no pós-morte para o espírito não cair na armadilha do automatismo da reencarnação – e perpetuar o loop da chamada “Roda do Samsara” dos budistas: o interminável ciclo de mortes, renascimentos e sofrimento.
A produção independente Every Time I Die (“Cada Vez que Eu Morro”, 2019) é mais um filme que explora essas possibilidades da auto-observação como técnica de lucidez e gnose pós-morte como rota de fuga espiritual. Um thriller espiritual narrativamente audacioso com estreia de Robi Michael na direção. Uma inteligente mistura de obsessão, possessão e reencarnação.
Parte-se de uma premissa ambiciosa: um paramédico que, após morrer assassinado, migra para os corpos de seus amigos para alertá-los e protege-los do assassino. Porém, o mais importante, o protagonista não tem controle sobre esses eventos e luta para estabelecer sua própria identidade e consciência nesse estranho evento automático.
Mas também, Every Time I Die confirma duas teses desse blog Cinegnose: primeiro, atualmente filmes independentes e de baixíssimo orçamento são aqueles que mais oferecem os roteiros mais inventivos e audaciosos, chegando à genialidade narrativa de séries clássicas como Além da Imaginação.
E, segundo, como os melhores filmes religiosos ou espiritualistas são aqueles dirigidos por ateus ou, no mínimo, por diretores que não acreditam em fenômenos espirituais. Como no caso do diretor Robi Michael, um agnóstico convicto como se revela em diversas entrevistas, como a concedida no Cinequest Festival nesse ano – clique aqui). Essa postura parece sempre garantir sinceridade e objetividade, evitando a apologia e propaganda doutrinária.
O Filme
Na cena de abertura acompanhamos Sam (Drew Fonteiro) atordoado na cama com Mia (Melissa Macedo). Ele está apaixonado, mas algum tipo de confusão mental o acompanha, e que só piora quando vê sua própria imagem no espelho do banheiro.
Sam é um paramédico que tem como parceiro de ambulância Jay (Marc Menchaca), um cara alegre e aparentemente feliz. Mas com uma nuvem escura do passado: uma tentativa de suicídio e medicações anti-depressivas.
Mas também Sam possui uma sombra no passado. Em diversos flashbacks sabemos que na infância, sua irmã mais nova morreu afogada. E por isso, ressente-se de culpa. Sam vive atormentado por frequentes pesadelos e constantes apagões. Seu único prazer parece ser o perigoso caso que vive com Mia – ela é casada com um soldado chamado Tyler (Tyler Dash White) que está servindo há um ano no exterior, e que está retornando exatamente naquele dia.
Jay convida Sam para passar um final de semana em sua casa, juntamente com sua esposa Poppy (Michelle Macedo) e a irmã Mia. Claro que eles desconhecem a relação ilícita de Mia com Sam. Mia pede que Sam não vá, já que seu marido Tyler também estará lá. Mas Sam impulsivamente aparece, levando a tensos confrontos com a personalidade volátil de Tyler.
É claro que estamos descrevendo uma linha do tempo cronológica. Na primeira meia hora do filme, o espectador fica confuso com tantos planos de ponto de vista e flashbacks, até, aos poucos, ir juntando o quebra-cabeças da vida de Sam – a culpa pelo afogamento da irmã, a tal ponto que ele começa a agir como ela própria, a consulta com uma psicóloga que tenta minimizar sua culpa para reestabelecer sua identidade, os episódios oníricos de uma psique problemática etc.
As coisas pioram quando Tyler descobre a infidelidade de Mia, vingando-se de Sam matando-o à beira de um lago – o mesmo no qual sua irmã morreu afogada. Sam acorda no corpo de Jay logo após sua morte. Sam/Jay freneticamente tenta avisar as duas mulheres do perigo em que estão e confronta em voz alta um Tyler muito confuso quando ele retorna à casa após encobrir a evidência de seu crime. E tudo tende a ficar cada vez mais estranho.
Tela Mental e identidade – Alerta de Spoilers à frente
Tanto no sonho quanto na morte, criamos imediatamente uma “tela mental”, algo assim como uma espécie de óculos de realidade virtual, no qual imergimos como fosse a própria realidade. Desejos, fantasias e traumas são os combustíveis das nossas projeções mentais, fazendo-nos cair em um sonho confuso que nos prepara para a reencarnação – para, então, sermos capturados no loop que nos aprisiona nesse universo fraturado.
Acompanhamos todo o esforço de Sam em praticar a auto-observação para tentar estabelecer um nível meta de consciência (a própria gnose) que consiga diferenciar alucinação de realidade – contar continuamente os dedos das próprias mãos ou olhar-se no espelho.
Lembrando o filme A Origem (Inception, 2010) no qual o protagonista fazia girar um pião para diferenciar se estava no sonho ou na realidade – se o pião parasse de girar, era o mundo real.
As migrações involuntárias de Sam para cada corpo é a própria metáfora do loop morte/reencarnação. E todo esforço em finalmente conseguir a autoconsciência, afastar a tela mental de imagens de culpa e estabelecer sua própria identidade.
E que termina de forma aberta: afinal quem ele era? Sam ou a própria pequena irmã que, tal como ele, migrou para o seu próprio corpo?
Every Time I Die é um filme que apresenta todos os principais temas do Gnosticismo: prisão, esquecimento, inconsciência – e a gnose como forma de salvação, aqui no filme colocada de uma forma bem prática até a libertação final: a consciência ou gnose pós-morte consistindo numa luta por senciência e autonomia do espírito.
O que era apenas sugerido em filmes como Vanilla Skye Enter The Void, em Every Time I Die é colocado de forma bem explícita. E por um diretor totalmente descrente no conteúdo espiritual do argumento principal do filme. O que torna ainda mais notável o trabalho de Robi Michael.
Ficha Técnica
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Título: Every Time I Die
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Diretor: Robi Michael
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Roteiro: Robi Michael, Gal Katzir
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Elenco: Marc Menchaca, Drew Fonteiro, Tyler Dash White, Michelle Macedo, Melissa Macedo
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Produção: Mila Media, Invisible Films
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Distribuição: Gravitas Ventures
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Ano: 2019
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País: EUA
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