A gameficação chegou a Hollywood com o sucesso estrondoso de “Minecraft Movie”. Porém, uma coisa é a adaptação fílmica de jogos eletrônicos. Outra coisa é a cultura mashup que resulta em filmes como “Until Dawn: Noite de Terror” (Until Dawn, 2025): baseado no popular videogame para PlayStation 4, lançado em 2015, com dinâmica slasher que tinha como fontes "Evil Dead II" e "Poltergeist", e de jogos como Resident Evil e Silent Hill, que já haviam sido adaptados para o cinema. Total mashup: um filme baseado em um jogo baseado em filmes, alguns dos quais baseados em jogos. O efeito é uma espécie de amnésia social: em um suporte de alta tecnologia, conteúdos mashups a partir de tudo que a velha mídia produziu são exibidos com aparência de novidade para uma geração cada vez mais nativa digital. Mas cumpre uma função social antiquíssima do ritual de passagem: jovens oferecidos em sacrifício para sofrerem mortes cada vez piores com uma moral da história: o destino pune exemplarmente aqueles que ousarem a desafiar a ordem moral.
A certa altura, no ápice do caos e desespero do casal de protagonistas
que foge da morte certa perpetrada por monstros mitológicos em um complexo
subterrâneo, perplexa a garota pergunta para uma cientista interpretada por Sigourney
Weaver: “Por que nós?” (eles apenas faziam parte de um grupo de adolescentes
que iriam passar um final de semana de bebida, festa e sexo em uma cabana
remota). “Porque vocês são jovens!”, responde enfaticamente.
Esse é uma linha de diálogo metalinguístico do filme O Segredo
da Cabana (The Cabin in the Woods, 2011) que, como tantos outros desde o
seminal filme de Sam Reimi, “A Morte do Demônio” (Evil Dead, 1981) repetem o
plot prototípico de todos os chamados “slash” ou “exploited movies”: jovens em
uma remota cabana tomada por demônios em uma floresta fogem de assassinos que
surgem do nada para atacar um grupo com requintes de tortura, sadismo e
perversão sexual.
Rituais de sacrifícios humanos são as mais antigas formas de
idolatrar e se comunicar com divindades, segundo Sir James Frazer em seu
livro The Golden Bough – A study in magic and religion de
1890. Essa forma mágica primitiva não apenas representava essa forma de
comunicação com a dimensão mítica e do Sagrado, mas também uma forma de
submissão e conformismo através da destruição do indivíduo jovem - as vítimas, geralmente
virgens, podiam ser enforcadas, afogadas, queimadas vivas, lançadas de
penhascos etc. Quanto pior a morte, melhor...
Tudo isso para impor o medo e terror aos jovens como ritual de
passagem ao mundo adulto da Ordem e Tradição míticas.
![]() |
Com a religião essas formas pagãs ou foram reprimidas ou
sublimadas como no ritual do sangue e do corpo de Cristo convertidos em hóstia
e vinho. E agora revivem no cinema e audiovisual atual na indústria do
entretenimento, nos filmes de terror Slash.
O filme O Segredo da Cabana era um exercício autoconsciente
e satírico dos arquétipos por trás desses clichês do terror adolescente.
O que não é o caso do filme Until Down: Noite de Terror (Until
Down, 2025), o terror sobre o massacre de jovens da temporada. A produção do
diretor David Sanderberg pretende se levar a sério, apesar de ser uma flagrante
mistura de O Segredo da Cabana com O Feitiço do Tempo - cinco
estudantes universitários presos em uma casa na floresta que parece situada
numa espécie de Twinlight Zone, presos em um loop temporal em que morrem nas
mãos de terríveis monstros ou assassinos seriais, para acordarem no início, no momento
em que chegam quela casa e que, sabem, morrerão de formas cada vez mais “criativas”:
explodidos, despedaçados, furados, cortados, espancados etc.
Para tudo recomeçar depois que um estranho mecanismo vira uma ampulheta
que reinicia a contagem de tempo.
Until Dawn é baseado no
popular videogame para PlayStation 4, lançado em 2015. A narrativa original do
jogo foi criada pelo cineasta cult Larry Fessenden, em parceria com Graham
Reznick. Os dois extraíram a dinâmica slasher do jogo, com foco em casas de
ghouls, de fontes como "Evil Dead II" e "Poltergeist", e de
jogos como Resident Evil e Silent Hill, que já haviam sido
adaptados para o cinema.
O que significa que Until Dawn é um mashup completo:
baseado em um jogo baseado em filmes, alguns dos quais baseados em jogos. Nessa
cultura mashup pós-moderna em que plataformas e suportes se misturam até
perderem suas especificidades estéticas e narrativas, diretores e público
começam a querer levar a sério alguma coisa que já é uma colcha de retalhos de
referências e clichês. O que faz esse humilde blogueiro lembrar daquela piada de
humor negro sobre o lado positivo de ter Mal de Alzheimer: poder assistir ao
mesmo filme como fosse uma estreia...
![]() |
O engenheiro computacional Jaron Lanier é um dos maiores críticos dessa “cultura mashup de segunda ordem” – segundo ele, o material mais original que pode ser encontrado na rede é, com muita frequência, um conteúdo mais baixo de produção proveniente do “mundo controlado antiquado e protegido” da velha mídia. O efeito é uma espécie de amnésia social: em um suporte de alta tecnologia, conteúdos mashups a partir de tudo que a velha mídia produziu são exibidos com aparência de novidade para uma geração cada vez mais nativa digital - Leia LANIER, Jaron. Gadget - Você não é um aplicativo, Saraiva, 2010.
Nem podemos considerar que Until Down tenha uma narrativa.
É uma completa colcha de retalhos de todos os clichês do terror na cabana da
floresta. Mas, pelo menos mantém um elemento narrativo para manter as
aparências – como toda história que está sendo contada, tem que passar no final
a moral da história. Que é a mais conservadora possível: quem deseja quebrar a
ordem moral e familiar será duramente punido pelo destino.
Dessa maneira, apesar de todo mashup, o filme mantém a
função social desse subgênero do terror: entregar jovens ao sacrifício ritual como
um entretenimento que mascara a antiquíssima necessidade de a sociedade criar
rituais de passagem para os jovens se tornarem adultos que não saem da linha.
O Filme
Clover (Ella Rubin) é a líder de um quinteto de amigas que viajam
a um vale remoto em busca de sua irmã Melanie (Maia Mitchell), desaparecida há
um ano. Ela é acompanhada por um ex que espera reatar, chamado Max (Michael
Cimino), sua boa amiga Nina (Odessa A'zion), seu namorado Abel (Belmont Cameli)
e uma garota com poderes psíquicos (pelo menos aparenta ter) chamada Megan
(Ji-young Yoo).
Embora role alguma tensão sexual em alguns casais, diferente do cânone
dessa vez o interesse não é festa e orgia, mas reencontrar a irmã perdida da
amiga. Mas cerca de 15 minutos depois de Until Dawn começar para
surgir a primeira cena clássica: um funcionário assustador de um posto de
gasolina avisa ao grupo que "muitos desaparecem mais adiante na estrada".
Enquanto eles partem em direção a uma cabana prototípica na floresta. É difícil
não se deixar levar pela atmosfera de O Segredo da Cabana.
![]() |
Logo se dirigem sob a chuva em direção a um vale misterioso onde ficarão
presos em uma casa. Quando a turma percebe que está em um loop temporal, eles
fazem alusão, mas não se referem diretamente, a outros filmes com premissas
semelhantes. Enquanto tentam descobrir como escapar de sua situação, Until
Dawn se torna menos um filme de terror forte por si só e mais como uma casa
mal-assombrada de parque de diversões. Cada sala pode ter como tema um clássico
diferente do subgênero, mas são imitações pálidas das coisas reais.
Até o título em português do filme ironicamente faz referência a
uma antiga atração do extinto Play Center, em São Paulo: o evento “Noite do Terror”.
Na casa, Clover e seus amigos encontram um cartaz de
"Desaparecida" de Melanie, juntamente com cartazes de
"Desaparecida" de vários outros jovens. Mas nada disso adianta muito.
Na primeira noite, os personagens são ameaçados por um Hulk careca
de macacão, usando uma máscara de palhaço com a boca (incluindo os dentes)
esmagada. Isso é simplesmente assustador, mas ele é basicamente tão genérico
quanto um slasher pode ser. Na rodada seguinte, eles são possuídos por
"espíritos", o que significa que seus corpos saem voando. Ainda estão
por vir uma bruxa, um fantasma flutuante, um quarto gótico vitoriano repleto de
bonecas e cabeças de bebê, um berço velho e uma cadeira de balanço com um
palhaço de pelúcia, além de um encontro com zumbis rangentes.
O jogo Playstation original no qual se baseia o filme é um jogo de
terror bastante comum: um bando de adolescentes em uma cabana para um fim de
semana de diversão, com cabeças inevitavelmente rolando. A graça do jogo reside
na autonomia do jogador — você é lançado em um filme de terror e tem que ver se
suas escolhas salvam todos (ou ninguém) com vida.
A resposta do filme é abandonar completamente essa estrutura e
introduzir sua própria mecânica: a única maneira de escapar do ciclo
vicioso do Feitiço do Tempo é sobreviver até o amanhecer. É
uma ideia bacana. Cada noite traz novos monstros e horrores, um conceito
repleto de potencial criativo... que o filme prontamente desperdiça.
![]() |
O roteiro de Blair Butler e Gary Dauberman até tenta reformular o Feitiço
do Tempo. A graça do formato "Feitiço do Tempo" é ver o herói
gradualmente mudar os eventos para assumir o controle de seu destino. Mas o
filme não pretende operar nesse nível de engenhosidade. Na casa, que é
assombrada por todos os tipos de assassinos loucos e fantasmas de pesadelo das
últimas três décadas, uma ampulheta vira de cabeça para baixo, e quando a areia
acaba (leva cerca de 20 minutos de tempo de tela), significa que uma noite se
passou. Nesse ponto, todos os personagens terão sido mortos. Mas então um
conjunto de engrenagens vira a ampulheta, e a noite seguinte começa, e os
personagens acordam e começam tudo de novo.
Só que eles não repetem a noite com variações
complexas. A noite seguinte é só... mais uma matança aleatória. Com diferentes
assassinos e demônios clichês. E esse é o filme inteiro. Os personagens lutam
por suas vidas, mas mesmo que morram, não estão realmente mortos. O resultado é
que não há absolutamente nada em jogo.
Percebemos que Until Dawn quer trilhar seu próprio caminho,
separado do material original. Ironicamente, ao tentar ser diferente, acaba se
tornando mais clichê do que nunca.
Um mashup com moral da história (Alerta de spoiler)
Mas, pelo menos entrega uma moral da história para manter as
aparências de que acompanhamos uma narrativa e não uma adaptação malsucedida de
um jogo eletrônico.
Desde a era da “Espantomania” do terror (Hora do Pesadelo,
Sexta-Feira 13 etc. dos conservadores anos 1980 de Ronald Reagan e Margareth
Thatcher, a moral da história sempre foi a da “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem”
– quem quebra a ordem moral, política, familiar etc. será exemplarmente punido.
O jovem que faz sexo, experimenta um baseado ou desobedece a um aviso de
advertência da mãe, será punido por Jason, Fredy Kruger e outros assassinos
seriais.
Logo descobrimos que a irmã de Clover, Melanie, desapareceu e ficou
prisioneira naquela casa da noite eterna por ter rompido a ordem familiar:
queria sair de casa para não ficar o resto da vida preso a uma cidade pequena.
Buscava uma vida diferente em Nova York. Por isso foi punida, tornando-se prisioneira
temporal e tornando-se mais um dos monstros naquele verdadeiro parque temático de
aberrações.
Essa é a moral da história que transforma Until Dawn em
ritual de passagem e um conto de advertência: tenha muito cuidado com aquilo
que você deseja!
Ficha Técnica |
Título: Until Dawn: Noite de
Terror |
Diretor: David Sandberg |
Roteiro: BlairButler, Gary Daunberman |
Elenco: Ella Rubin, Michael Cimino, Odessa D´zion, Ji-young
Yoo, Peter Stormare |
Produção: Screen Gems, PlayStation Products |
Distribuição: Sony Pictures |
Ano: 2025 |
País: EUA |