sexta-feira, maio 23, 2025

Cultura mashup e gameficiação de Hollywood no filme 'Until Dawn: Noite de Terror'

 


A gameficação chegou a Hollywood com o sucesso estrondoso de “Minecraft Movie”. Porém, uma coisa é a adaptação fílmica de jogos eletrônicos. Outra coisa é a cultura mashup que resulta em filmes como “Until Dawn: Noite de Terror” (Until Dawn, 2025): baseado no popular videogame para PlayStation 4, lançado em 2015, com dinâmica slasher que tinha como fontes "Evil Dead II" e "Poltergeist", e de jogos como Resident Evil e Silent Hill, que já haviam sido adaptados para o cinema. Total mashup: um filme baseado em um jogo baseado em filmes, alguns dos quais baseados em jogos. O efeito é uma espécie de amnésia social: em um suporte de alta tecnologia, conteúdos mashups a partir de tudo que a velha mídia produziu são exibidos com aparência de novidade para uma geração cada vez mais nativa digital. Mas cumpre uma função social antiquíssima do ritual de passagem: jovens oferecidos em sacrifício para  sofrerem mortes cada vez piores com uma moral da história: o destino pune exemplarmente aqueles que ousarem a desafiar a ordem moral.

A certa altura, no ápice do caos e desespero do casal de protagonistas que foge da morte certa perpetrada por monstros mitológicos em um complexo subterrâneo, perplexa a garota pergunta para uma cientista interpretada por Sigourney Weaver: “Por que nós?” (eles apenas faziam parte de um grupo de adolescentes que iriam passar um final de semana de bebida, festa e sexo em uma cabana remota). “Porque vocês são jovens!”, responde enfaticamente.

Esse é uma linha de diálogo metalinguístico do filme O Segredo da Cabana (The Cabin in the Woods, 2011) que, como tantos outros desde o seminal filme de Sam Reimi, “A Morte do Demônio” (Evil Dead, 1981) repetem o plot prototípico de todos os chamados “slash” ou “exploited movies”: jovens em uma remota cabana tomada por demônios em uma floresta fogem de assassinos que surgem do nada para atacar um grupo com requintes de tortura, sadismo e perversão sexual.

Rituais de sacrifícios humanos são as mais antigas formas de idolatrar e se comunicar com divindades, segundo Sir James Frazer em seu livro The Golden Bough – A study in magic and religion de 1890. Essa forma mágica primitiva não apenas representava essa forma de comunicação com a dimensão mítica e do Sagrado, mas também uma forma de submissão e conformismo através da destruição do indivíduo jovem - as vítimas, geralmente virgens, podiam ser enforcadas, afogadas, queimadas vivas, lançadas de penhascos etc. Quanto pior a morte, melhor... 

Tudo isso para impor o medo e terror aos jovens como ritual de passagem ao mundo adulto da Ordem e Tradição míticas.



Com a religião essas formas pagãs ou foram reprimidas ou sublimadas como no ritual do sangue e do corpo de Cristo convertidos em hóstia e vinho. E agora revivem no cinema e audiovisual atual na indústria do entretenimento, nos filmes de terror Slash.

O filme O Segredo da Cabana era um exercício autoconsciente e satírico dos arquétipos por trás desses clichês do terror adolescente.

O que não é o caso do filme Until Down: Noite de Terror (Until Down, 2025), o terror sobre o massacre de jovens da temporada. A produção do diretor David Sanderberg pretende se levar a sério, apesar de ser uma flagrante mistura de O Segredo da Cabana com O Feitiço do Tempo - cinco estudantes universitários presos em uma casa na floresta que parece situada numa espécie de Twinlight Zone, presos em um loop temporal em que morrem nas mãos de terríveis monstros ou assassinos seriais, para acordarem no início, no momento em que chegam quela casa e que, sabem, morrerão de formas cada vez mais “criativas”: explodidos, despedaçados, furados, cortados, espancados etc.

Para tudo recomeçar depois que um estranho mecanismo vira uma ampulheta que reinicia a contagem de tempo.

Until Dawn é baseado no popular videogame para PlayStation 4, lançado em 2015. A narrativa original do jogo foi criada pelo cineasta cult Larry Fessenden, em parceria com Graham Reznick. Os dois extraíram a dinâmica slasher do jogo, com foco em casas de ghouls, de fontes como "Evil Dead II" e "Poltergeist", e de jogos como Resident Evil e Silent Hill, que já haviam sido adaptados para o cinema.

O que significa que Until Dawn é um mashup completo: baseado em um jogo baseado em filmes, alguns dos quais baseados em jogos. Nessa cultura mashup pós-moderna em que plataformas e suportes se misturam até perderem suas especificidades estéticas e narrativas, diretores e público começam a querer levar a sério alguma coisa que já é uma colcha de retalhos de referências e clichês. O que faz esse humilde blogueiro lembrar daquela piada de humor negro sobre o lado positivo de ter Mal de Alzheimer: poder assistir ao mesmo filme como fosse uma estreia...



O engenheiro computacional Jaron Lanier é um dos maiores críticos dessa “cultura mashup de segunda ordem” – segundo ele, o material mais original que pode ser encontrado na rede é, com muita frequência, um conteúdo mais baixo de produção proveniente do “mundo controlado antiquado e protegido” da velha mídia. O efeito é uma espécie de amnésia social: em um suporte de alta tecnologia, conteúdos mashups a partir de tudo que a velha mídia produziu são exibidos com aparência de novidade para uma geração cada vez mais nativa digital - Leia LANIER, Jaron. Gadget - Você não é um aplicativo, Saraiva, 2010.

Nem podemos considerar que Until Down tenha uma narrativa. É uma completa colcha de retalhos de todos os clichês do terror na cabana da floresta. Mas, pelo menos mantém um elemento narrativo para manter as aparências – como toda história que está sendo contada, tem que passar no final a moral da história. Que é a mais conservadora possível: quem deseja quebrar a ordem moral e familiar será duramente punido pelo destino.

Dessa maneira, apesar de todo mashup, o filme mantém a função social desse subgênero do terror: entregar jovens ao sacrifício ritual como um entretenimento que mascara a antiquíssima necessidade de a sociedade criar rituais de passagem para os jovens se tornarem adultos que não saem da linha.

O Filme

Clover (Ella Rubin) é a líder de um quinteto de amigas que viajam a um vale remoto em busca de sua irmã Melanie (Maia Mitchell), desaparecida há um ano. Ela é acompanhada por um ex que espera reatar, chamado Max (Michael Cimino), sua boa amiga Nina (Odessa A'zion), seu namorado Abel (Belmont Cameli) e uma garota com poderes psíquicos (pelo menos aparenta ter) chamada Megan (Ji-young Yoo).

Embora role alguma tensão sexual em alguns casais, diferente do cânone dessa vez o interesse não é festa e orgia, mas reencontrar a irmã perdida da amiga. Mas cerca de 15 minutos depois de Until Dawn começar para surgir a primeira cena clássica: um funcionário assustador de um posto de gasolina avisa ao grupo que "muitos desaparecem mais adiante na estrada". Enquanto eles partem em direção a uma cabana prototípica na floresta. É difícil não se deixar levar pela atmosfera de O Segredo da Cabana



Logo se dirigem sob a chuva em direção a um vale misterioso onde ficarão presos em uma casa. Quando a turma percebe que está em um loop temporal, eles fazem alusão, mas não se referem diretamente, a outros filmes com premissas semelhantes. Enquanto tentam descobrir como escapar de sua situação, Until Dawn se torna menos um filme de terror forte por si só e mais como uma casa mal-assombrada de parque de diversões. Cada sala pode ter como tema um clássico diferente do subgênero, mas são imitações pálidas das coisas reais.

Até o título em português do filme ironicamente faz referência a uma antiga atração do extinto Play Center, em São Paulo: o evento  “Noite do Terror”.

Na casa, Clover e seus amigos encontram um cartaz de "Desaparecida" de Melanie, juntamente com cartazes de "Desaparecida" de vários outros jovens. Mas nada disso adianta muito.

Na primeira noite, os personagens são ameaçados por um Hulk careca de macacão, usando uma máscara de palhaço com a boca (incluindo os dentes) esmagada. Isso é simplesmente assustador, mas ele é basicamente tão genérico quanto um slasher pode ser. Na rodada seguinte, eles são possuídos por "espíritos", o que significa que seus corpos saem voando. Ainda estão por vir uma bruxa, um fantasma flutuante, um quarto gótico vitoriano repleto de bonecas e cabeças de bebê, um berço velho e uma cadeira de balanço com um palhaço de pelúcia, além de um encontro com zumbis rangentes.

O jogo Playstation original no qual se baseia o filme é um jogo de terror bastante comum: um bando de adolescentes em uma cabana para um fim de semana de diversão, com cabeças inevitavelmente rolando. A graça do jogo reside na autonomia do jogador — você é lançado em um filme de terror e tem que ver se suas escolhas salvam todos (ou ninguém) com vida.

A resposta do filme é abandonar completamente essa estrutura e introduzir sua própria mecânica: a única maneira de escapar do ciclo vicioso do Feitiço do Tempo é sobreviver até o amanhecer. É uma ideia bacana. Cada noite traz novos monstros e horrores, um conceito repleto de potencial criativo... que o filme prontamente desperdiça.



O roteiro de Blair Butler e Gary Dauberman até tenta reformular o Feitiço do Tempo. A graça do formato "Feitiço do Tempo" é ver o herói gradualmente mudar os eventos para assumir o controle de seu destino. Mas o filme não pretende operar nesse nível de engenhosidade. Na casa, que é assombrada por todos os tipos de assassinos loucos e fantasmas de pesadelo das últimas três décadas, uma ampulheta vira de cabeça para baixo, e quando a areia acaba (leva cerca de 20 minutos de tempo de tela), significa que uma noite se passou. Nesse ponto, todos os personagens terão sido mortos. Mas então um conjunto de engrenagens vira a ampulheta, e a noite seguinte começa, e os personagens acordam e começam tudo de novo.

Só que eles não repetem a noite com variações complexas. A noite seguinte é só... mais uma matança aleatória. Com diferentes assassinos e demônios clichês. E esse é o filme inteiro. Os personagens lutam por suas vidas, mas mesmo que morram, não estão realmente mortos. O resultado é que não há absolutamente nada em jogo.

Percebemos que Until Dawn quer trilhar seu próprio caminho, separado do material original. Ironicamente, ao tentar ser diferente, acaba se tornando mais clichê do que nunca.

Um mashup com moral da história (Alerta de spoiler)

Mas, pelo menos entrega uma moral da história para manter as aparências de que acompanhamos uma narrativa e não uma adaptação malsucedida de um jogo eletrônico.

Desde a era da “Espantomania” do terror (Hora do Pesadelo, Sexta-Feira 13 etc. dos conservadores anos 1980 de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, a moral da história sempre foi a da “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem” – quem quebra a ordem moral, política, familiar etc. será exemplarmente punido. O jovem que faz sexo, experimenta um baseado ou desobedece a um aviso de advertência da mãe, será punido por Jason, Fredy Kruger e outros assassinos seriais.

Logo descobrimos que a irmã de Clover, Melanie, desapareceu e ficou prisioneira naquela casa da noite eterna por ter rompido a ordem familiar: queria sair de casa para não ficar o resto da vida preso a uma cidade pequena. Buscava uma vida diferente em Nova York. Por isso foi punida, tornando-se prisioneira temporal e tornando-se mais um dos monstros naquele verdadeiro parque temático de aberrações.

Essa é a moral da história que transforma Until Dawn em ritual de passagem e um conto de advertência: tenha muito cuidado com aquilo que você deseja!


 

 

  Ficha Técnica

Título: Until Dawn: Noite de Terror

Diretor: David Sandberg

Roteiro: BlairButler, Gary Daunberman

 Elenco: Ella Rubin, Michael Cimino, Odessa D´zion, Ji-young Yoo, Peter Stormare

Produção: Screen Gems, PlayStation Products

Distribuição: Sony Pictures

Ano: 2025

País: EUA

 

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