domingo, janeiro 08, 2017

Em "Don't Blink" podemos ser apagados como fotogramas em um filme


À primeira vista, “Don’t Blink” (2014) é mais um filme sobre um grupo de jovens que se hospeda em uma cabana em algum lugar remoto para serem punidos por seus vícios e pecados, por algum serial killer. Mas estamos no terreno do horror independente e nada é o que parece: sem explicações um a um começa a desaparecer assim que o grupo tem a atenção desviada ou simplesmente fecha os olhos. Mais um filme inspirado no misterioso desaparecimento, sem deixar qualquer rastro, de uma colônia inteira no início da colonização dos EUA em 1587. Filmes como “O Mistério da Rua 7” e adaptações de Stephen King como “A Tempestade do Século” e “A Fenda no Tempo” (“The Langoliers”) também exploraram esse misterioso acontecimento, cada um com sua própria interpretação. “Don’t Blink” discute as consequências morais (o que você faria, sabendo que desapareceria nas próximas horas?) e deixa uma série de pistas narrativas para o espectador montar sua própria explicação. De uma hora para outra poderíamos ser arbitrariamente apagados como se a realidade fosse um conjunto de fotogramas, assim como o cinema? Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Um incidente histórico marcou o início da colonização norte-americana: o misterioso desaparecimento de 113 colonos na ilha de Roanoke (hoje parte da Carolina do Norte) em 1587. Nenhuma pista sobre o paradeiro dos colonos foi encontrada, a não ser a inscrição “Croatoan” em uma árvore. Segundo as lendas, a inscrição “Croatan” seria a designação de uma entidade demoníaca indígena.

Stephen King se inspirou nesse histórico episódio para escrever o livro “A Tempestade do Século” (foi feita uma adaptação cinematográfica em 1999) no qual ficcionalmente sugere que todos os colonos foram levados por um demônio como forma de castigo pelos pecados. 

Em 2007, o filme O Mistério da Rua 7  reatualizou essa antiga lenda – quando a noite cai (e as noites vão ficando cada vez mais longas) pessoas desaparecem em meio a vozes e vultos na escuridão. Seres de origem desconhecida esperam que as luzes apaguem para levar as vítimas. Um típico filme de terror com sustos, mortes e entidades sombrias explícitas, espreitando as próximas vítimas - sobre o filme clique aqui.

Don’t Blink é mais uma narrativa inspirada no insólito desaparecimento dos colonos de 1587. Mas, dessa vez, com o tom do horror metafísico ao melhor estilo da antiga série Além da Imaginação, sem vilões identificáveis, entidades, serial killers ou explicações plausíveis. Isso, o espectador terá que buscar nas poucas pistas aqui e ali no filme.


Horror metafísico


Em primeiro lugar, Don’t Blink é uma didática oportunidade para diferenciar o terror e o horror no cinema. Enquanto no terror tudo é feito para arrancar sustos (medo = sustos), no horror é mobilizado aquilo que Freud chamava de uncanny (o “estranho”) – a possibilidade de a qualquer momento sermos “apagados” da face da Terra, sem qualquer razão plausível. Pior que a morte, ódio ou vingança de alguma entidade (Jasons, Fred Krugers etc.) é o desaparecimento, a banalidade e a indiferença.

E o horror metafísico – aquilo que contraria a Natureza por acontecimentos banais – o desaparecimento.

E segundo, o filme revela o característico sabor gnóstico da desconstrução do próprio tecido da realidade, tal como em outros filmes de horror indie como O Segredo da Cabana (2011 – clique aqui e Resolution (2012 – clique aqui). Como veremos, Don’t Blink sugere uma instigante analogia entre frames ou fotogramas do cinema e audiovisual como a própria natureza da realidade: entre um fotograma e outro (no cinema, 24 por segundo) podemos ser arbitrariamente apagados.

E novamente Stephen King: em certos aspectos, Don’t Blink lembra o mesmo argumento do livro/minissérie Fenda no Tempo (The Langoliers, 1995) – um voo noturno que acaba preso em um lugar interdimensional entre um segundo e outro do tempo.


O Filme


O filme inicia quando acompanhamos dez jovens divididos em quatro carros dirigindo-se pela estrada na direção de uma remota cabana-resort nas montanhas. Pelo conteúdo das conversas, brincadeira e tipos, parece que estamos diante de mais um filme de horror em cabana na floresta com os típicos personagens estereotipados – o “garanhão”, a “piranha”, a “nerd”, o tímido, o “chapado”, e assim por diante.

O grupo acaba chegando, quase sem gasolina, ao local que está estranhamente deserto. Lá encontram as mesas com pratos postos, comida servida, os quartos como se estivessem recém-ocupados e banheiras com o banho preparado. Para onde foi todo mundo? Por algum motivo, parece que todos tiveram que sair às pressas.

O espectador habitual começa então esperar por alguma força malévola, algum serial killer à espreita. Principalmente, quando o grupo comete o erro clássico dos filmes de terror: “vamos nos dividir em grupos e depois nos encontrarmos...”. É a senha para o início do derramamento de sangue.


Mas nada disso acontece. Cada grupo encontrará anomalias na região como a ausência de pássaros e insetos, o lago congelado fora da época, a temperatura que começa rapidamente a baixar. Estamos agora nos elementos dos atuais filmes de horror indie que pagam elevado tributo à série Além da Imaginação.

De repente, cada um começa simplesmente a desaparecer em um piscar de olhos: basta desviar a atenção ou virar o rosto para que a pessoa ao seu lado desapareça em pleno ar. Há alguma força invisível e inteligente naquele lugar.

O ritmo do filme é lento e os dois primeiros atos são usados para desenvolver os personagens e introduzir os espectadores ao mistério. Há pouca tensão, concentrando-se a narrativa na criação do ambiente misterioso e claustrofóbico.

Hedonismo


Don’t Blink faz uma curiosa inversão em relação aos tradicionais filmes de terror nos quais os jovens são punidos com a morte  pela atitude hedonista em relação a vícios, sexo e traição. O filme propõe também o tema do hedonismo: que responsabilidade você teria com o seu próximo sabendo que simplesmente desaparecerá nas próximas horas? Ao contrário, os jovens tentam evitar isso em busca de uma explicação plausível para tudo o que ocorre. Em Don’t Blink não há o elemento punitivo e moralista dos filmes de terror. Há apenas o desafio em descobrir a identidade da força invisível e o seu propósito.

  A certa altura acabam encontrando um sobrevivente da rodada anterior de desaparecimentos – primeira pista para o espectador: parece que essa entidade inteligente sempre deixa um sobrevivente para atrair mais pessoas ao local. Porém, o sobrevivente está tão perdido quanto eles, sem pistas ou evidências.

De certa forma, o filme parece também se inspirar em uma ansiedade da primeira infância: o medo de que os pais, os brinquedos ou o mundo desparecerem enquanto a criança esteja com os olhos fechados ou dormindo. Por que “todos nós seremos a qualquer momento apagados”, como nos diz uma linha de diálogo do filme.

Por isso, a única forma de sobreviver é não piscar os olhos e cada um ficar olhando para o outro, até que possam encontrar um jeito de escapar dali.


Cinema e a realidade quântica


Como a maioria da atual safra de filmes indie de horror, há um latente tema metalinguístico em Don’t Blink: os personagens podem desaparecer de um segundo para outro se o espectador piscar os olhos, assim como a passagem dos 24 fotogramas por segundo criam a ilusão de movimento cinematográfico – alguém que estava em um fotograma poderá não estar no próximo.

No início do século XX o francês Georges Méliès descobriu a trucagem no cinema com a técnica de parada e substituição – a câmera era parada, o objeto era substituído e depois o dispositivo reiniciado. Numa passo de mágicas homens viravam mulheres, prédios desapareciam e pessoas surgiam do nada. A sucessão de fotogramas fragmentados criava ilusões ao transformar espaço em movimento.

Porém, realidade e cinema ainda eram bem distintos -  o real é contínuo e análogo; o cinema e audiovisual são fragmentados em fotogramas e frames. Por isso, é o reino da trucagem, efeitos especiais e da ilusão.

Mas, e se essa diferença desaparecer? Principalmente depois da mecânica quântica ter comprovado que a realidade não é assim tão analógica, aproximando-se bastante da ilusão fragmentada do dispositivo cinematográfico: no mundo das partículas subatômicas confrontamo-nos com paradoxos como pedaços de quantum binários tipo sim/não, ondas pixeladas.

No mundo das micropartículas encontramos quantum ou “pacotes” de energia, e nada é tão fluido e contínuo como percebemos a realidade no nível macro.

Isso abriu a possibilidade da hipótese dos Muitos Mundos na Física Quântica (clique aqui) ou nas teorias de que o Universo é uma gigantesca simulação de computador (clique aqui).


Desconstrução da realidade? – alerta de spoilers à frente


O vislumbre dessa descontinuidade subatômica abre a possibilidade de descontinuidades em níveis macro espaço-tempo e que vem inspirando a literatura e cinematografia sci fi recente – como por exemplo Fenda no Tempo de Stephen King, onde um avião inteiro está preso entre um segundo e outro no tempo. Desapareceu do fluxo temporal, mas está em alguma lacuna espacial.

Essa é a mesma matriz na qual se inspira Don’t Blink. O filme termina de forma aberta e, para muitos críticos e espectadores, decepcionante por não apresentar nenhuma explicação, lógica ou sobrenatural, sobre os 90 minutos de mistérios. Mas o leitor observará algumas pistas que apontam para algum tipo de experiência (governamental?) que fugiu ao controle. Algum tipo de experiência de desconstrução do tecido espaço/tempo que chamamos por realidade.

Na sequência final, a única sobrevivente (Claire) vê chegarem ambulâncias, bombeiros e policiais chegarem, além do indefectível carro negro de onde saem homens em ternos pretos e óculos escuros. Suas atitudes parecem demonstrar que sabem o que está acontecendo. Agentes do governo?

Claire os adverte: “não pisque!”. “Eu nunca pisco”, reponde ironicamente o homem de preto numa alusão de que não só sabem o que está ocorrendo como estão envolvidos em tudo.

Don’t Blink termina com um sombrio questionamento ético e moral: se todos vamos desaparecer, junto com tudo o que fizemos, nada importa?



Ficha Técnica

Título: Don’t Blink
Direção: Travis Oates
Roteiro:  Travis Oates
Elenco:  Zack Ward, Mena Suvari, Brian Austin Green, Joanne Kelly
Produção: EchoWolf Productions, Engine Film Group
Distribuição: Vertical Entertainment
Ano: 2014
País: EUA

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