“Quem canta seus males espanta”, diz aquele provérbio popular. Mas
não na Modernidade. Pelo menos não na sua forma de manifestação como
mistificação das massas: a Indústria Cultural. Ao mercantilizar a cultura,
impôs à sociedade uma “vida inautêntica”.
Para além da aparência metafísica heideggeriana que envolve esse
conceito (a tecnologia que alienaria o ser humano) ou das leituras desse mesmo
conceito que supostamente Theodor Adorno teria feito (como a massificação da
cultura destruiria o indivíduo e a cultura espontânea), “vida inautêntica”
certamente é o efeito mais deletério da mercantilização da cultura: a cisão ou
contradição entre a teoria e a prática, entre a fala e a ação, entre as ideias
que apoiamos e aquilo que efetivamente nós fazemos.
Por exemplo, posso ser um avido comprador de vinis e CDs de rock
grunge ou indie. Ir a shows e confraternizar com slogans críticos ao sistema e contra
a hipocrisia da sociedade. Enquanto tenho uma perfeita vida pequeno-burguesa,
dessas das famílias em tons pasteis de comerciais de margarina ou produtos
matinais. Para mim, sonoridade e letras das músicas tornam-se mera “atitude” ou
“estilo”. Não importa se as letras das músicas denunciem a própria hipocrisia
da minha vida. Tudo vira apenas uma questão de se entreter com músicas “cabeça”,
“críticas”.
Hebert Marcuse acreditava que essa vida inautêntica era decorrente
de uma característica bem especial de um sistema econômico organizado em torno
da primazia do mercado: a “tolerância repressiva”. O capitalismo tolera que eu professe, defenda
ou acredite em qualquer ideia, mesmo contra ele próprio. Mas desde que essa
“ideia” seja convertida em mercadoria e seus crentes sejam “consumidores”.
Mas essa cisão entre teoria e prática da vida inautêntica cobra um
preço: o mal-estar psíquico, a consciência culpada, a sensação de alienação ou
inautenticidade. Que, por sua vez (por que não?), pode virar matéria-prima para
a Indústria Cultural promover novas mercadorias musicais.
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Nesse caso, quem canta NÃO MAIS espanta seus males. Os transforma
em atitude e estilo cujo valor vai ser especulado no mercado cultural.
Esse é o tema do paradoxal filme Hurry Up Tomorrow: Além dos
Holofotes (Hurry Up Tomorrow, 2025). Paradoxal porque a produção
coloca como tema essa alienação da vida inautêntica, enquanto o próprio filme
faz parte de um projeto multimídia do cantor pop norte-americano The Weeknd
(também conhecido como Abel Tesfaye) que inclui um álbum lançado em janeiro
passado e o filme que o acompanha, dirigido por Trey Edward Shults. Mais
uma tentativa do cantor transpor para a telona as letras das suas músicas. Mas
com um resultado, até aqui, apenas autoindulgente.
The Weeknd vem desejando
sua autoaniquilação há anos. Ouça praticamente qualquer faixa ou álbum do astro
pop (que já amealhou discos de platina pelas vendagens) e você encontrará
letras detalhando angústia, desespero, autodestruição e hedonismo como uma
forma de punição divina. Ele está sempre tentando se destruir e se refazer em
algo novo.
E em Hurry Up Tomorrow (título homônimo do seu último
álbum) não é diferente: ele literalmente quer incendiar a persona de The Weeknd
– ele acaba conhecendo a fã errada: uma garota que, sim, acredita que as letras
das músicas devem corresponder a ações reais de quem as canta. The Weeknd
fascina seus fãs porque, para eles, o astro deve ser, acreditar ou vivenciar
aquelas experiências ou resoluções que professa nas letras.
E a fã não gosta nada quando descobre que o ídolo é tão perdido e
vazio quanto a própria vida dela.
Histórias de estrelas pop autodestrutivas não são novidade no
cinema, desde o clássico melancólico e profundo Nasce uma Estrela. Mas esse
filme é paradoxal e irônico: enquanto Abel Tesfaye pensa estar expondo sua alma
para os fãs com o projeto multimídia "Hurry Up Tomorrow", o filme
inadvertidamente revela as profundezas de sua autoilusão, construindo um
projeto de vaidade longo e sem objetivo, destinado a lançar uma nova fase de
sua carreira, mas que só satisfará quem já decidiu acreditar que vai gostar do
filme por causa de uma suposta afiliação existente com o artista.
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O filme é um óbvio veículo para o astro pop. Mas a soberba
performance da atriz Jenna Ortega (Wandinha) como a fã que vê no ídolo
uma resposta e saída para sua vida familiar despedaçada, dá um sentido
verdadeiro a um projeto mercadológico: coloca os holofotes sobre o tema da
inautenticidade da música pop.
O Filme
O filme começa com uma narração de correio de voz de uma namorada
desconhecida, que manda a última mensagem antes de deixá-lo: "Uma boa
pessoa não teria feito isso com alguém que ama."
Essas são as circunstâncias dadas em que Tesfaye está se metendo,
enquanto ele continua em uma turnê exaustiva que está testando sua saúde
mental, sua paciência e suas cordas vocais (cujas metáforas sobre um artista
perdendo e depois recuperando sua voz são as dominantes). Mas ele não consegue
se concentrar em nada disso, porque o término catastrófico da relação amorosa
está mexendo com sua mente e ele afoga suas mágoas em pílulas, bebida e sexo casual.
Não importa que o roteiro não nos dê nenhuma maneira de vê-la, ou a
esse relacionamento, além das explosões possessivas de The Weeknd; ela é uma
abstração, como todas as outras mulheres que passam em sua vida.
A única companhia constante que ele realmente tem é Lee (Barry
Keoghan), seu empresário e motivador, que é ao mesmo tempo um anjo e um demônio
em seu ombro. "Você não é humano!", Lee enfatiza, enquanto tenta
convencer Abel a subir no palco para mais um show, mesmo com a voz embargada e
em crise.
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Aliás, a preparação de The Weeknd nos camarins para o show mais se
assemelha ao aquecimento para uma luta em um ringue de UFC – ele até esmurra
Lee num equipamento para sparing e se exercita com alteres diante do espelho.
Dando uma visão da personalidade egoísta e narcísica do artista pop.
Enquanto isso, uma jovem chamada Anima (Jenna Ortega) despeja
gasolina no que se presume ser a casa de fazenda de sua família, no interior, e
a incendeia. Pouco sabemos sobre ela, além de descobrirmos ao longo do filme do
pai que foi embora e a relação nada boa com a mãe. E também vermos um ingresso
para um show de Weeknd em seu celular.
Abel fica cada vez mais inconsolável com o término amoroso, ao
mesmo tempo em que insiste que está com dores na voz que podem exigir uma
interrupção em sua turnê internacional. Um médico insiste que a aflição do
cantor é puramente psicossomática e que tudo o que ele precisa é de repouso,
mas na próxima parada da turnê, ele tem um colapso espetacular ao cantar a
primeira música, cancelando o show na hora após perder a voz.
O filme foi inspirado em um evento real em um show do cantor em
2022 – ele realmente teve a voz colapsada, pediu desculpas à plateia e
abandonou o palco.
Culpando o empresário Lee por não ter atendido adequadamente às
suas necessidades, Abel foge dos camarins e encontra nos bastidores Anima, a fã
com quem trocou olhares na multidão durante o colapso.
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Os dois saem para se divertir e jogar conversa fora em um calçadão
à beira-mar antes de se refugiarem em um hotel para escapar de Lee cada vez
mais em busca frenética do artista. Na manhã seguinte, Abel parece ter saído do
pânico, mas Anima não está preparada para o fim do tempo que passaram juntos.
Uma discussão se inicia e Abel rapidamente percebe que a jovem que lhe deu
conforto e segurança em seu momento de fraqueza não está apenas lutando contra
um passado conturbado, mas acredita que um futuro imaginário, juntos, é a
solução para os problemas que cada um enfrenta.
Ortega se lança energicamente em uma virada de narrativa no
terceiro ato em direção à violência que evoca descaradamente projetos de
Stephen King como "O Iluminado" e "Misery"; ela é a fã
obcecada que lhe explica, sem fôlego, suas próprias músicas, o que elas
significam para ela e por que eles deveriam ficar juntos para sempre.
Tudo o que Anima espera é que Abel seja tudo aquilo que as letras das músicas que ele canta informam. Definitivamente, The Weeknd escolheu a fã errada para afogar as mágoas de um fracasso amoroso. Claro que ela descobrirá a inautenticidade e o vazio do seu ídolo, cujas letras a ampararam em sua pequena vida frustrante e medíocre.
O problema é que Anima tem um péssimo hábito de destruir com fogo
aquilo que rejeita...
À primeira vista, e com razão, podemos avaliar que Hurry Up
Tomorrow incorre na enésima vez no clichê “os caprichos da fama” ou "estrelas
são humanas também, têm problemas como todo mundo", isto é, o lamento de
sua estrela sobre como é difícil ser famoso e ter o coração
partido, e espera que seu público se curve com cada ferida auto infligida.
Nesse aspecto, o filme é insípido, sinuoso e insistente em sua
própria profundidade como a história de um artista tendo problemas para lidar
com a fama. Não fosse a presença energética de Ortega.
Como todos os fãs, buscam no ídolo a autenticidade que a vida lhes
nega. Procuram um sentido para preencherem o vazio da própria vida inautêntica.
E o personagem de Ortega, Anima, magistralmente expressa isso.
Não foi por menos que, desde o episódio do assassinato de John
Lennon em 1980 pelo próprio fã Mark Chapman, as relações entre ídolos e o
público mudaram: deixaram de ser mais próximas para receber uma mediação mais
distante e profissional.
O negócio dos ídolos pop pode se tornar perigoso. Afinal, um fã
pode querer interpretar a letra de uma música na literalidade.
Ficha Técnica |
Título: Hurry Up Tomorrow:
Além dos Holofotes |
Diretor: Trey Edward Shults |
Roteiro: Reza Fahim, Trey Edward Shults, The Weeknd |
Elenco: The Weeknd, Jenna Ortega, Barry Keoghan |
Produção: Lionsgate, Manic Phase |
Distribuição: Paris Filmes |
Ano: 2025 |
País: EUA |