sábado, setembro 03, 2011

Felicidade Demais Incomoda o Público

O fascinante no filme é a tensão entre a fantasia liberada e o restabelecimento da ordem. Sonhos, desejos e loucuras proibidas,são desenvolvidos nos produtos de entretenimento, mas vão até certo ponto para não incomodar a feliz adapatação do público à realidade. Felicidade e "happy ends" são neutralizados para que não coloquem em xeque o princípio de realidade do espectador

“A visão gnóstica não é inimiga de teóricos sociais como Adorno e seus seguidores. É uma aliada na grande revolução contra os demiurgos do mundo corporativo, gananciosos fornecedores de opressivas abstrações e mercadorias alucinatórias. Esta espécie de cinema é um borrão cinético que bloqueia a circulação de coisas”[1] 
Em postagem anterior discutíamos o domínio do realismo na história da narrativa cinematográfica com a ascensão das classes médias como público prioritário da indústria do entretenimento. Afirmávamos que a mentalidade pragmática desses setores médios não tolera conteúdos ou narrativas surreais, "non sense" ou absurdas, sendo absorvidas por narrativas que priorizam a verossimilhança e o efeito de realidade (veja links abaixo).

Se o realismo passa a dominar a narrativa cinematográfica, qual o destino de elementos potencialmente transcendentes (arquétipos, fantasias etc.) habitualmente explorados pela indústria do entretenimento? Se esses elementos imaginários provenientes do psiquismo e do inconsciente coletivo são potencialmente transcendentes, isto é, podem colocar em xeque a feliz adaptação da consciência do espectador ao "status quo", como a narrativa fílmica opera esse duplo vínculo contraditório: transcendência e adaptação, quebra da ordem e retorno à ordem? 


Podemos encontrar a resposta em dois caminhos críticos: a análise do gnosticismo no cinema e chamada "teoria crítica" da Escola de Frankfurt.



A análise fílmica do filme gnóstico empreendida por Eric Wilson tangencia, em muitos momentos, com as teses da Escola de Frankfurt, principalmente com as de Adorno. Principalmente quando Wilson faz uma análise de recepção: ao afirmar que dos motivos que levam o espectador a uma sala de cinema o mais poderoso talvez seja o desejo de escapar dos duros limites da vida cotidiana - a busca de outro mundo onde a experiência seja autêntica, imprevisível e atrativamente chocante. O autor sugere que por trás desse desejo aparentemente escapista e alienador escondem-se arquétipos místicos ou esotéricos, potencialmente emancipadores e que podem ser explorados como possíveis modos de transcendência. 

Empurrar o espectador para fora dos limites
e, ao mesmo tempo, reduzir o desejo a
simples fantasia escapista
Não apenas o filme gnóstico, mas a própria indústria cultural trabalharia com um duplo vínculo contraditório: alimentar o desejo que empurra o espectador para fora dos limites da realidade institucional e, ao mesmo tempo, reduzir esse desejo à simples fantasia escapista que mantém o espectador preso aos limites da mercadoria de consumo.


O Duplo Vínculo

Dentro da Escola de Frankfurt, principalmente Adorno pressentiu esse duplo vínculo na relação dos receptores com o produto cultural: o impulso por transcendência, imanente ao objeto artístico e ao receptor que o consome, e a totalidade falsa criada pela lógica da mercadoria na indústria cultural.
Em sua análise sobre música popular, Adorno descreve esse duplo vínculo que alimenta a recepção do ouvinte:
“Toda a esfera de diversão comercial barata reflete esse duplo desejo. Ela induz o relaxamento porque é padronizada e pré-digerida. Sendo padronizada e pré-digerida serve, na psicologia familiar das massas, para poupar-lhes o esforço dessa participação (mesmo de ouvir e observar), sem o qual não pode haver receptividade à arte. Por outro lado, os estímulos que ela providencia permitem uma escapadela da monotonia do trabalho mecanizado”[2]
Escapar à monotonia e poupar esforços são movimentos incompatíveis. Como afirma Adorno, a indústria cultural lida com um problema insolúvel: ao mesmo tempo oferecer produtos novos e estimulantes que façam o receptor escapar da rotina e, simultaneamente, tornar essa novidade padronizada e familiar para relaxar e poupar esforços. Nesta corda bamba equilibra-se a indústria cultural ao ter que criar um entretenimento que mantenha a ordem institucional e, ao mesmo tempo, ofereça a esperança de rompê-la. 

Para Adorno, isso significa que a noção de entretenimento como mera distração, escapismo ou alienação deve ser questionada. Há uma dimensão muito mais complexa que deve ser entendida à luz das mudanças estruturais da esfera de lazer proporcionadas pela forma-mercadoria. Para além da interpretação dominante que enfoca o pensamento de Adorno como pessimista, ele nos fornece importantes subsídios dentro da sua “teologia negativa”: a existência de elementos potencialmente transcendentes no interior das formas culturais comerciais.


Fascinação e Tédio

Dieter Prokop
Aluno de Adorno, Dieter Prokop vai aplicar em análises fílmicas do chamado “produto cultural de monopólio” essa abordagem frankfurtiana. Prokop vai analisar a repetição da “fantasia-clichê” de “questionamento e reconstrução da ordem”:
“Nos produtos de monopólio domina o esquema de questionamento e reconstrução da ordem. Os valores vigentes são desrespeitados, atacados e novamente restaurados. É um jogo necessário para a fantasia, pois repete-se todas as vezes na estrutura do produto e nas expectativas; é uma tentativa de tornar-se consciente do que custa o desvio das normas. No primeiro plano estão os papéis sexuais e da família e a questão de quão socialmente legítima e possível é a conquista individual do poder”[3]
Frequentemente os filmes de monopólio apresentam o esquema abstrato (ou seja, um esquema aplicável a qualquer gênero) de dramas que narram desvios e acomodações: o questionamento da autoridade e sua feliz re-implantação. Analisando séries televisivas dos anos 70 como Columbo e Kojak, Prokop vai encontrar o jogo de caráter sadomasoquista da rebelião contra a figura do pai onde o seu poder é questionado e ao mesmo tempo admirado para acarretar a própria submissão ao mundo e às normas. O espectador identifica-se com o policial brutal, golpeador para por em cena, de forma mais livre, o prazer pela punição de todo e qualquer desvio às normas.

Diante desse movimento pendular entre “tédio” e “fascinação” (entre a necessidade industrial do padrão e a necessidade dos receptores pela novidade), Prokop fala de uma necessidade de "harmonia" por parte da psicologia dos espectadores, uma situação onde fascinação e tédio não são mais excludentes ou problemáticos, mas onde o tédio já está dentro da fascinação:
"O tédio que surge aqui não é somente o 'estar entediado', como ocorre quando se é obrigado a participar de algo que não deseja. É um tédio dentro da fascinação ‑ e na moderação. (...) Por outro lado os telespectadores não querem se entediar. Anseia‑se por uma harmonia difusa, que é, por assim dizer, arranjada carinhosamente para o receptor. Deseja‑se encostar na poltrona e ser alimentado com imagens e sons. Neste clima fica‑se disposto a se identificar com as coisas mais estúpidas só para satisfazer a essa necessidade. O sujeito fica fixado no ver, ouvir e ler sem que lhe possam ser permitidos excessos voyeurísticos, desfrutes. A 'quebra' logo precisa ser novamente neutralizada. Ela não pode incomodar a rotina. Uma necessidade por harmonia pode ser satisfeita pelos meios de comunicação"[4]
Como já afirmava Adorno, o telespectador quer fugir da rotina do trabalho mecânico ao chegar em casa e ligar a televisão, busca algo estimulante, novo e enriquecedor. Mas, contraditoriamente, aquilo que é excessivamente novo pode trazer desordem, inquietação e exigir do receptor posicionamento, participação. Quebras de ritmo trazidas por elementos estéticos ou de conteúdos inovadores devem ser neutralizados pelo clichê. Prokop, portanto, ressalta a necessidade psicológica por harmonia através de imagens e sons, harmonia que induz ao relaxamento e novas energias para enfrentar a rotina do trabalho mecanizado do dia seguinte.


Fascínio e Tensão

"Cantando na Chuva":
 quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem
Marcondes Filho concretiza ainda mais estas observações de Prokop. Para ele, o fascinante é a tensão entre momentos de fantasia liberada e o restabelecimento do esquema de ordem (o momento do tédio). Os filmes têm como objetivo básico fascinar e fixar os interesses do público, mas de uma forma ritualizada evitando que tais necessidades sejam experimentadas em vivências reais. Sonhos, desejos, loucuras proibidas, etc são desenvolvidos nos produtos de massa conseguindo a fascinação, mas vão até certo ponto. Se passassem desse limite começariam a incomodar o público, quebrariam a necessidade psicológica por harmonia. Marcondes Filho localiza uma das origens desta ritualização do desejo no público em antigos filmes musicais como Cantando na Chuva (Singin' in the Rain,1952) principalmente na famosa seqüência onde Gene Kelly canta e dança na chuva simbolizando a alegria que rompe temporariamente com as normas sociais:
"Gene Kelly, aliás, termina de dançar, quase se desculpando, no momento exato em que aparece um guarda de rua: diante da lei, da ordem, da moral, é preciso retomar ao mundo. O ponto‑limite é aquele que faz as ações convergirem para um esquema ritualizado, isto é, fantasias emocionais do receptor (ou do espectador do cinema), que foram excitadas, terminam num esquema convencional, outras vezes no lenga-lenga viciado das canções populares: o esquema reconstrói a ordem e devolve o receptor, neutralizado, ao seu mundo"[5]
Este clichê de "quebra‑da‑ordem‑e‑retomo‑a‑ordem" é a confirmação do desejo secreto do público de acabar com os sonhos livres demais e ao mesmo tempo liquidar com idéias provocativas que possam incomodar a necessidade por harmonia. Um exemplo mais atual pode ser visto no filme road‑movie Thelma e Louise (1991) com Susan Sarandon e Geena Davis onde duas mulheres submetidas à repressão masculina, (uma num emprego alienante de garçonete e a outra submetida à ordem doméstica machista) rompem com tudo e fogem num carro conversível. 

Esta fixação do desejo do público por liberdade através de imagens simbólicas (o carro conversível, cabelos soltos ao vento num carro veloz, etc) é desenvolvido até certo ponto para, no final, os sonhos serem abatidos dentro de um destino trágico. Pode parecer estranho, mas felicidade demais incomoda o público. As pessoas esperam que os sonhos sejam abatidos pela realidade dentro do clichê. Mas, por quê? Para que a volta à realidade, após sair do cinema ou desligar a TV, não seja tão traumática. Se Thelma e Louise não conseguiram ser livres, tampouco eu poderei. Antes que o sonho invada a consciência do público, tirando‑lhe a paz, o clichê abate e neutraliza.


Esta necessidade por “fascinação” apresentada por Prokop, ou ,tão somente, o “fugir da rotina” como falava Adorno  são, em última instância, desejos de verem suas fantasias fixadas ou representadas e, ao mesmo tempo, colocadas sob controle. Aquilo que potencialmente transcende deve ser evocado para depois ser abatido.


NOTAS

[1] WILSON, Eric G., Secret Cinema: Gnostic Visions in Film. Nova York: Continuum, 2006 , p. 31.
[2] ADORNO, Theodor, “Sobre Música Popular”, In: COHN, Gabriel (org) Theodor W. Adorno, Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo: Ática,1986, p. 136.
[3] PROKOP, Dieter, “Fascinação e Tédio na Comunicação: produtos de monopólio e consciência”, In: MARCONDES FILHO, Ciro (org.) Dieter Prokop, Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo: Ática, 1896, p. 178.
[4] Ibid, p. 154­-155.

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