domingo, junho 30, 2019

Curta da Semana: "Dolls Don't Cry" - Somos fantoches em um mundo simulado


Premiado por melhor roteiro no Festival de Animação de Ottawa, o curta-metragem em “stop-motion” canadense “Dolls Don’t Cry” (Toutes Les Poupées Ne Pleurent Pas, 2017) nos apresenta a clássica cosmologia gnóstica ao convergir duas teses: o esotérico fascínio humano por fantoches, bonecos, robôs e autômatos e a hipótese do Universo como uma gigantesca simulação. Desde a antiga Alquimia, passando pelo cinema e animação, até chegarmos aos games de computador o homem simula a criação de mundos. Como se tentasse imitar Deus, simulando vidas. Por que esse fascínio? Será que tentamos nos tornar sencientes dentro de um Universo simulado no qual somos prisioneiros?

O curta de animação canadense Dolls Don’t Cry (Toutes Les Poupées Ne Pleurent Pas, 2017, de Frédérick Tremblay) reúne duas teses já bastantes discutidas por esse humilde blogueiro: a primeira, a hipótese do Universo como uma simulação. Se somos capazes de criar mundos simulados em games cada vez mais graficamente perfeitos, isso poderia representar um processo teúrgico de meta-simulação: o impulso humano em querer criar mundos tecnologicamente simulados é o mesmo da velha Alquimia que tentava imitar Deus criando vida. O homem produz meta-simulações para um dia, tentar encontrar Deus, a divindade que criou a primeira simulação após o Big Bang.
Em outras palavras, se somos capazes de criar simulações, estão o próprio Universo em que vivemos é também uma gigantesca simulação de computador. Repetimos em nível micro simulações que tentam encontrar o caminho que nos levaria à programação macro.
E segunda tese: o nosso fascínio por manequins, fantoches, autômatos, robôs, androides e replicantes expressaria essa desconfiança gnóstica da condição humana como prisioneira de alguma criação demiúrgica. Victoria Nelson em seu livro “The Secret Life of Puppets” mostra como a cultura popular do século XX registrou um aumento do fascínio por bonecos e autômatos: o surgimento do conceito da marionete-mestre (humana ou divina) que estaria por trás de fantoches ou robôs. Filmes e livros de terror e sci fi exploram as relações homem/autômato ou homem/Deus como a reprodução da própria condição humana prisioneira em um universo onde algum Demiurgo nos manipularia.
                    Para a pesquisadora, esse fascínio expressaria a própria maneira como secretamente nós mesmos avaliamos a nossa própria experiência humana, como prisioneiros em um cosmos hostil. Esse imaginário é construído desde Platão nos diálogos As Leis e em A República: a metáfora de cada ser vivo como um fantoche ou o jogo de sombras que os prisioneiros veem na parede da caverna como fosse a própria realidade. 



Com um design de produção meticulosa, o curta Dolls Don’t Cry nos mostra uma espécie de narrativa em abismo ou recursiva: um curta de animação emstop motioncujos protagonistas também são uma dupla de animadores que está também produzindo uma animação com a mesma técnica em stop motion– pacientemente, fotografando quadro por quadro com pequenos fantoches em meticulosos cenários.
Ele anima os bonecos no período da noite. Termina o trabalho e vai dormir quando o dia amanhece. Então, ela chega ao estúdio para reparar os acessórios e fazer pequenos concertos nos fantoches até o final do dia. Para então tudo recomeçar.
 Mas, por trás da cena, escondida em um armário, está à espera uma mulher que entrará em cena. Para nos fazer cair em um abismo recursivo ainda maior de mundos dentro de mundos. De repente, a animação se transforma num meta-thriller psicológico.
O curta nos oferece uma narrativa típica “slow burning”. E bem “slooooow”! Antes da entrada em cena da personagem misteriosa, acompanhamos detalhadamente o cotidiano espartano daquela dupla de animadores. Detalhismo, paciência, disciplina – que também parece exigir o mesmo do espectador: pacientemente aguardar a grande virada do roteiro enquanto acompanha o dia-a-dia daqueles artistas.

Fantoches na cosmologia gnóstica

                  O nível meta da animação, na qual somos repentinamente jogados na esperada viragem da narrativa, parece unir as duas teses descritas acima: o exímio detalhismo e destreza do casal de animadores secretamente se une ao nível macro de um outro animador (Deus? Demiurgo? O próprio diretor da animação?) que constrói aquele mundo com o mesmo esmero e destreza. 



Mundos em stop motion dentro de outros mundos que, por sua vez, está envolvido por outro muito maior. E a constatação de que todos são fantoches, manipulados por cada mundo que se interpenetra. Dolls Don’t Cry expressa a própria cosmologia gnóstica de Basílides (professor gnóstico de Alexandria, onde ensinou entre 117-138 DC) dos 365 “céus”, como uma gigantesca cebola cósmica de mundos que se ignoram uns aos outros.
E todos os mundos habitados por fantoches que, secretamente, são animados por um mundo superior. É o que a secreta mulher que se esconde no armário vai tentar avisar para a incauta artista que concerta bonecos e cenários da animação.
O princípio alquímico de “imitar Deus criando vida” parece ser o élan que impulsiona todas as tecnologias de criação dos simulacros e simulações: das animações, a simulação do movimento no cinema pela aceleração mecânica dos fotogramas, até chegarmos aos games de computadores. Será que por trás desse ímpeto humano de criar pequenos mundos simulados está a suspeita atávica de que igualmente vivemos no interior de uma simulação?
Será que, assim como nos personagens de Dolls Don’t Cry, também estamos tentando despertar dessa simulação através do impulso aquetípico de tentarmos imitar Deus? 


Ficha Técnica 

Título: Toutes Les Poupées Ne Pleurent (Dolls Don’t Cry)
DiretorFrédérick Tremblay
Roteiro:  Frédérick Tremblay
Elenco:  animação em stop motion
Produção: Telefilm Canada
Distribuição: Vimeo
Ano: 2017
País: Canadá

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