Trabalhando
desde 2002 na Pixar, o animador espanhol Rodrigo Blaas resolveu em 2009 colocar
em prática algumas ideias pessoais que não podiam se encaixar nas produções
comerciais do estúdio. O resultado é o curta “Alma” que trás para uma animação
aquilo que a assepsia comercial da Pixar retira dos seus produtos: o Estranho e
o Gótico, a essência do fascínio humano pelos bonecos, marionetes e,
modernamente, androides, robôs e animações. Blaas devolve ao universo infantil
dos bonecos e brinquedos o seu arquétipo central: a rememoração das relações homem/Deus – através da brincadeira e do jogo a rememoração da
própria condição humana prisioneira em um universo onde alguém nos manipula.Curta sugerido pela nossa leitora Luiza Hernandez.
Rodrigo Blaas é um artista
gráfico espanhol que trabalha nos estúdios da Pixar desde 2002, animando
personagens como a Dory em Procurando
Nemo, a dupla Luigi e Guido em Carros,
as cenas de ação em Os Incríveis e a
sequência final da luta do capitão da nave Axion contra o piloto automático em Wall-E. Depois de muito trabalho em equipe
e aborrecido em ter muitas ideias que não podiam ser encaixadas nas produções
de um estúdio mainstream, resolveu
reunir alguns colegas para fazer um curta.
O resultado é Alma (2009), com uma protagonista
infantil com olhar doce e um visual que lembra o estilo da Pixar. Mas as
semelhanças param por aí: há algo de estranho, tão sinistro quanto a atmosfera
dos episódios da clássica série de terror e mistério Além da Imaginação - veja o curta abaixo.
A história é simples em seus
breves cinco minutos: Alma é uma jovem que caminha por uma calçada coberta com
neve até ter sua atenção atraída para uma boneca que se parece exatamente com
ela na vitrina de uma loja. Com uma fachada sinistra em art nouveau, a loja parece ter também dezenas de outros de bonecos.
Surpresa e procurando uma explicação para aquilo, Alma percebe que a porta está
trancada. Irritada por não conseguir abri-la, joga uma bola de neve. Quase indo
embora, a porta de repente abre-se.
Ao entrar, percebemos um outro boneco tentando furiosamente
escapar, sem sucesso, batendo contra a parede enquanto percebe que sua boneca
réplica moveu-se para trás dificultando que Alma a alcance. Alma terá que fazer
um grande esforço para alcança-la, mas a curiosidade e cobiça infantil a
empurrarão para uma sinistra consequência que o espectador verá.
O mundo maniqueísta dos bonecos da Pixar
Rodrigo Blaas |
A Pixar recriou um universo maniqueísta de
bonecos e brinquedos dividido eentre mocinhos e bandidos: as crianças devem
temer os bonecos maus que serão derrotados pelos bonecos bons como o Woody ou o
robozinho solitário Wall-E. Mas jogou para debaixo do tapete o fascínio
assustador e milenar por fantoches, bonecas e suas metamorfoses atuais em
replicantes, robôs, androides e seres autômatos. A sombra desse arquétipo vem
sendo melhor explorado pelos filmes do gênero terror e ficção científica com
narrativas sobre bonecos assassinos, fantoches que ganham vida e dominam seus
próprios criadores e androides e replicantes que caçam seres humanos.
Podemos dizer que no curta Alma, Rodrigo Blaas dá um tempo ao mundo
de positividade e boa vontade comercial da Pixar para se jogar de cabeça no
estranho arquétipo infantil que envolve bonecos e as próprias miniaturas.
O fascínio por bonecos e autômatos
Pesquisadores como Victoria Nelson em seu
livro The Secret Life of Puppets
mostraram como a cultura popular do século XX registrou um aumento do fascínio
por bonecos e autômatos: o surgimento do conceito da marionete-mestre (humana
ou divina) que estaria por trás de fantoches ou robôs. Filmes e livros de
terror e sci fi exploram as relações homem/autômato ou homem/Deus como a
reprodução da própria condição humana prisioneira em um universo onde algum
Demiurgo nos manipularia.
Para a pesquisadora, esse fascínio expressaria
a própria maneira como secretamente nós mesmos avaliamos a nossa própria
experiência humana, como prisioneiros em um cosmos hostil. Esse imaginário é
construído desde Platão nos diálogos As
Leis e em A República: a metáfora
de cada ser vivo como um fantoche ou o jogo de sombras que os prisioneiros veem
na parede da caverna como fosse a própria realidade.
Talvez o fascínio infantil pelos shows de
fantoches seja a reafirmação dessa verdade sobre a realidade humana – cada ser
vivo poderia ser um joguete nas mãos de algum mestre dos fantoches que a tudo
observa e manipula.
O Gótico e o Estranho
Rodrigo Blaas explora no curta aquilo que
Freud certa vez chamou de O Estranho (“Uncanny”): pulsões inconscientes que
inesperadamente afloram, medos que foram por muito tempo reprimidos. O Estranho
é a própria essência de qualquer conto Gótico: a ambiguidade de ao mesmo tempo
fascinar e aterrorizar. Bonecos e estátuas que repentinamente ganham vida nos
causam terror, mas ao mesmo tempo é fascinante – são como fossem miniaturas de
nós mesmos. Contariam sobre a nossa própria condição, revelariam um verdade
secreta que todos nós queremos esquecer.
A estranha loja com fachada em Art Noveau
(estilo artístico do século XIX que parece ser a nova estética gótica em muitos
filmes de mistério atuais como The
Strange Color of Your Body’s Tears (2014) ou Lost
River, 2014) internamente tem um evidente appeal da Alegoria da Caverna de Platão – como se todos nós
fossemos bonecos presos no interior de um loja cujo proprietário está ausente.
O mistério do Duplo
Mas Rodrigo Blaas parece ir ainda mais fundo
em seu argumento: explora também o fascínio de ver a si mesmo – o mistério do
Duplo. Em muitas culturas ver a si mesmo em uma réplica ou imagem como um
espelho sempre foi considerado um evento misterioso. Como, por exemplo, todo o
medo e o misticismo que envolveu a fotografia em seus primórdios – o medo de
ter a alma roubada, por exemplo.
Ver o seu duplo pode ser uma experiência
terrível e às vezes ser o próprio prenúncio da morte. Dos bonecos de vodu como
réplicas das pessoas para que desejamos o mal a ver seu próprio corpo em uma
projeção astral são, novamente Freud, eventos estranhos – ao mesmo tempo
produzem terror e fascínio, medo e curiosidade. Certamente o mesmo sentimento
da pequena Alma no curta de Rodrigo Blaas.
E ainda o fascínio pelos bonecos e marionetes
têm suas origens ocultas na Teurgia (theoi, “deuses” + ergon, “obra”) que
surgiu no mundo helenístico grego: a primeira forma de manipulação da matéria
(mais tarde seria a Alquimia) onde, assim como Deus, poderíamos dar alma e vida
a uma forma material inferior. Com isso poderíamos reproduzir o mesmo percurso
divino da criação e nos fazer reencontrar como nossas origens divinas.
Deus nos criou e agora poderíamos criar
coisas como Ele. Bonecos, fantoches e... animações.
A simbologia da Espiral
Rodrigo Blaas demonstra em Alma que conhece bem simbologias: o
salto final da protagonista para o Estranho ocorre em um tapete cujo desenho é
o de uma espiral. No simbolismo oculto a espiral representa a auto-evolução, a
alma ascendente da matéria ao mundo espiritual. Forma complexa por ser
logarítmica: cresce de forma terminal sem modificar a forma total – ícone ao
mesmo tempo da temporalidade e permanência, do ser espiritual que permanece o
mesmo apesar das mudanças.
Dessa maneira o curta Alma é uma pequena joia de cinco minutos: mostra como um
funcionário de um grande estúdio industrial como a Pixar tem que, às vezes,
cair fora de tanta assepsia e positividade do mundo das animações comerciais.
Estúdios como a Pixar querem explorar o
fascínio de velhos arquétipos para divertir crianças e adultos, mas extraindo
do seu interior tudo que é Estranho e, por isso, que possa representar risco
comercial.
Embora explorem situações tristes e até
cruéis (o temor dos brinquedos de serem abandonados pelo seu dono como em Toy Story ou a solidão do robozinho
Wall-E), deixam de ser contos góticos porque O Estranho freudiano é eliminado
em lindas histórias com moral e boa vontade.
Porém, o mundo infantil é mais gótico do que
podemos imaginar.
Ficha Técnica |
Título: Alma
(curta)
|
Diretor:
Rodrigo Blaas
|
Roteiro:
Rodrigo Blaas
|
Música: Mastretta
|
Produção:
Nina Rappaport, Cecile Hokes, David Lacruz
|
Distribuição:
on line
|
Ano: 2009
|
País: Espanha/EUA
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