Indicado ao Oscar de Melhor Animação, “Anomalisa”(2015)
é uma estranha pequena obra-prima de Charlie Kaufman, roteirista de filmes como
“Quero Ser John Malkovich” e “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”. Uma
realista animação em stop motion sobre um palestrante autor de livros sobre
comunicação motivacional que ironicamente passa uma noite solitária e infeliz
em um hotel na cidade onde dará um seminário no dia seguinte. “Anomalisa”
explora o paradoxo onde, apesar de vivermos em uma sociedade centrada numa
variedade de tecnologias de comunicação, a solidão e alienação continuam a ser
a principal fonte de mal estar. Talvez porque de todas as formas possíveis de
comunicação (poética, emotiva, metalinguística etc.), exercitamos no trabalho e
nas redes de relações pessoais e profissionais a forma mais pobre de
comunicação: a fática.
Dentro da sua extensa cinematografia, certa vez um
dos personagens interpretados por Woody Allen afirmou que a vida poderia ser
reduzida a três episódios mais significativos: nascimento, sexo e morte.
O filme Anomalisa
do diretor e roteirista Charlie Kaufman trata de sexo e morte para abordar a
profunda crise existencial do protagonista. Porém, acrescenta mais um elemento
significativo na vida de um ser humano: a comunicação. Mais precisamente a
impossibilidade da comunicação, paradoxalmente na sociedade que mais investe em tecnologias comunicacionais na história.
Nos comunicamos o tempo inteiro tanto por
dispositivos tecnológicos (e-mail, redes sociais etc.) quanto por contatos
através de networkings profissionais – clientes, amigos de trabalho, chefes,
patrões etc. Mas, como nos informa a linguística e a semiótica, a comunicação é
muito mais complexa e dotada de uma variedade de linguagens maior do que podemos imaginar:
pode ser referencial, emotiva, apelativa, fática, poética ou metalinguística.
O problemas é que, dessas seis formas de se
comunicar, a atual sociedade privilegiou apenas uma delas: a fática,
considerada a mais pobre das funções da linguagem – é apenas um mero teste de
canal para checar se há contato. O mais importante não é o que se fala nem como
se fala, mas sim o contato entre emissor e receptor.
Nos esforçamos para causar boa impressão, produzir
impacto, falar coisas certas no momento certo, chamar a atenção de todos à
nossa volta sobre a nossa existência. O contato é mais importante do que o
conteúdo, comunicar é mais importante do o quê comunicar.
Esse é o
paradoxo do filme Anomalisa: a
solidão em meio ao êxtase da comunicação que experimentamos na atualidade. Como
um protagonista, especialista e autor de livros de motivação e satisfação de
clientes para corporações, entra na crise da meia idade e descobre-se solitário
e vê no sexo a única possibilidade de tentar um contato real com alguém.
O Filme
Em primeiro lugar, Anomalisa é um filme protagonizado por bonecos animados pela
técnica stop motion. Mas eles se
movem de uma forma tão realista e natural (reforçado por uma fotografia que
ressalta texturas e com uma luminosidade difusa) que muitas vezes esquecemos
que estamos assistindo a uma animação.
Charlie Kaufman parece ter uma fixação com
fantoches e marionetes desde o filme Quero
Ser John Malkovich, roteirizado e escrito por Kaufman. Passando ainda por Sinédoque, Nova York onde as marionetes
são substituídas por atores dirigidos por um protagonista que vê a própria vida
como uma peça de teatro.
Marionetes e fantoches são simbólicos para ele: é a
própria condição humana gnóstica – prisioneiros pelos cordões de algum destino
ou demiurgo.
Vendo Anomalisa,
podemos perceber que se a estória fosse contada em live action com atores reais, não teria o mesmo efeito de
distanciamento que Kaufman quer arrancar de nós. Um distanciamento que em si
quer provocar em nós reflexão e não identificação.
Todo o filme gira em torno de Michael Stone (voz de
David Thewlis), um homem claramente descontente com o seu trabalho, casamento e
mesmo seu filho. Ele parece sempre desconectado de si mesmo e do mundo. Sua
indiferença é tão grande com todos ao redor que o filme usa o recurso de as
vozes masculinas e femininas serem interpretadas pela mesma voz de Tom Nooman -
com exceção de Lisa, a “Anomalisa” do título.
Seu avião pousa em Cincinatti para mais uma
palestra que fará para profissionais de atendimento ao consumidor de uma
empresa qualquer, onde poderá promover mais um dos seus livros motivacionais.
As longas primeiras sequências quando chega na
cidade, pega o táxi e chega ao hotel são marcadas por comunicações fáticas
(falar sobre o tempo, sobre o chilli dos restaurantes da cidade ou sobre os
animais em extinção do zoológico). Meras conversas esparsas, apenas para manter
contato em relações meramente de prestação de serviço.
Amor e “anomalia”
O problema de Michael Stone é que essa comunicação
vazia continua com todos aqueles que atravessam sua vida: o antigo amor deixado
na cidade (uma mulher chamada Bella – voz de Jennifer Jason Leigh) que tem a
oportunidade de reencontrar, as conversas ao telefone com sua esposa e
finalmente as duas mulheres, fãs de seus livros, as quais impulsivamente
convida para alguns drinks no bar do hotel.
Inexplicavelmente sente-se atraído por uma delas,
Lisa, que o tempo inteiro usa o cabelo jogado para um lado para esconder a
cicatriz. É amor à primeira vista, ou Michael pensa que é. Ele parece ver em
Lisa uma figura redentora, alguém que vai tirá-lo do buraco existencial em que
vive.
De tanto Michael idealizá-la, considera Lisa uma
“anomalia” em sua vida... “Anomalisa”.
Como em todos os roteiros adaptados por Spike Jonze
(Quero Ser John Malkovich), Michel
Gondry (Brilho Eterno de Uma Mente Sem
Lembranças e Human Nature), os
trabalhos de Charlie Kaufman sempre resultam de interessantes combinações de
humor mordaz, poesia, sonhos e uma linguagem inspirada na psicanálise.
Também em Anomalisa tem um momento “John Malkovich”
quando dorme depois de uma noite sexo com Lisa: um sonho transforma-se em
pesadelo, e vê-se cercado de dezenas de funcionários do hotel, todos dizendo
“eu te amo” de forma sombria e ameaçadora.
O medo do “demasiado humano”
O leitor
perceberá que essa sequência é a chave de compreensão do filme: desconectado do
mundo, alienado e vivendo apenas em comunicações fáticas, Michael Stone quer
apenas um amor para quebrar a solidão.
Mas assim como os relacionamentos anteriores (a
esposa e Bella, com a qual nutre culpa por tê-la abandonado no passado),
Michael idealiza suas mulheres para logo depois entrar em pânico ao perceber
nelas seus “demasiado humanos” – defeitos, pequenas manias etc.
Michael padece desse mal estar contemporâneo da
ansiedade e solidão: a maior parte do tempo travamos relacionamentos fáticos no
trabalho e amizades, como se a todo momento disséssemos “alô”, “viu?” ou
“câmbio”. Sempre estamos apenas de passagem – não é à toa que toda a narrativa
passa-se em um hotel, lugar onde todos estão apenas de passagem.
O pânico pelo compromisso
Por isso, sexo e amor são idealizados como as
últimas oportunidades para encontrarmos relações “verdadeiras” e “autênticas”.
Essa super expectativa faz negarmos o “demasiado humano” presente nos outros –
por isso entramos em pânico ao tentar criar qualquer relacionamento mais sólido
e durável por que o dia-a-dia acaba revelando que o outro é tão humano quanto
nós. Intoleráveis, nos tornamos sós. E no final, a comunicação fática passa a
ser uma forma de defesa para evitar envolvimento e decepção. É a fobia e o
pânico diante do menor sinal de que estamos criando algum tipo de compromisso.
Está claro que, de fato, para Michael todos são
marionetes. Michael ouve de todos o mesmo tom de voz monocórdica, os mesmos
olhos, bocas e narizes. Tudo insípido, sem graça, como um menu de serviços de
um quarto de hotel.
Um dos momentos mais bizarros do filme (além da
cena do pesadelo) é quando Michael está olhando para fora da janela e vê um
homem do edifício em frente se masturbando diante de um computador. Solitários
e incomunicáveis, vemos no sexo a única forma de afastarmos o horror. Ou não.
Ficha Técnica |
Título: Anomalisa
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Diretor: Charlie Kaufman, Duke Johnson
|
Roteiro: Charlie Kaufman
|
Elenco: David Thewlis, Jennifer Jason
Leigh, Tom Nooman
|
Produção: Starburns Industries
|
Distribuição:
Paramount Pictures
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Ano: 2015
|
País: EUA
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