quinta-feira, maio 13, 2021

Mais de três décadas depois, 'Bagdad Café' revela um eterno-retorno sem solução


Assistir ao filme “Bagdad Café” (“Out of Rosenhein”, 1987), do diretor alemão Percy Adlon, nos remete a uma estranha sensação de nostalgia melancólica. É uma comédia dramática sobre encontros multiculturais e raciais num café e motel empoeirados e perdidos no meio do Deserto de Mojave. Um filme otimista sem ser agridoce sobre a possibilidade de que as diferenças culturais e raciais, num conjunto de personagens excêntricos e marginalizados pela sociedade, podem encontrar a redenção. Um microcosmo do mal-estar da subjetividade contemporânea sintetizada por personagens que representam todos nós: detetives, viajantes e estrangeiros, embalados pela música “Calling You”. Mais de três décadas depois, vemos que aqueles mesmos temas intensamente discutidos na década de 1980 continuam sem solução. E o que é pior: se transformaram em ferramentas para criar polarizações e dividir politicamente sociedades.

 

Mais de três décadas depois, Bagdad Café (Out of Rosenhein), do diretor alemão Percy Adlon (Rosalie Vai às Compras, Mahler no Divã), se tornou mais urgente e contemporâneo do que quando foi rodado em 1987. Um filme de encontros multiculturais em algum lugar perdido no deserto de Mojave chamado Bagdad, a poucas milhas de Las Vegas.

É incrível pensarmos como os temas dos encontros multiculturais e raciais, do racismo e da exclusão eram discutidos em filmes como esse na década de 1980 do governo republicano de direita do presidente Ronald Reagan. Décadas depois, nos encontramos novamente a urgência desses temas em plena Era Trump (o atual presidente Biden herda a polarização operada por Trump) e da ascensão da extrema-direita por todo o planeta. Momento em que intolerância e ódios racial e político estão rachando ao meio países inteiros.

Parecem fenômenos cíclicos, jamais resolvidos, como uma espécie de eterno retorno nietzschiano.

Bagdad Café é um filme alemão que foi rodado nos EUA e falado em inglês. Assim como outro diretor alemão como Win Wenders em Paris Texas (1984), Adlon aborda o grande símbolo mitológico fundante da cultura norte-americana: o deserto. Mais precisamente, excluídos da sociedade abandonados num vilarejo empoeirado – caminhoneiros, desempregados ou semiempregados, esperando apenas o tempo passar. Todos vivendo uma vida sem sentido ou propósito.

O grande ganhador do Oscar 2021, Nomadland, lembra bastante os temas de Bagdad Café. Porém, o espírito do tempo parece ser outro: lá em 1987, o deserto está ainda pleno de otimismo e utopia, com a sua pureza latente, longe dos centros urbanos decadentes como Las Vegas. Ao contrário de Nomadland, onde as estradas do deserto não levam para nenhuma redenção – filme analisado pelo blog, clique aqui.



Embalado pela música “Calling You”, especialmente composta para o filme por Bob Telson (o maior sucesso da sua carreira), Bagdad Café ganhou rapidamente a aura de cult com a memória afetiva do tema musical, personagens excêntricos e tão diferentes entre si (cultural, nacionalidade, personalidade, racial etc.) que os encontros e recomeços da narrativa tornam-se cheios de otimismo e esperança de que o senso de humanidade ainda é possível. Apesar das diferenças. 

Mais do que isso, a capacidade mudarmos, fazermos uma reforma interior e nos tornarmos pessoas melhores. Tudo isso pode parecer agridoce e talvez piegas, mas a dupla de roteiristas Percy Adlon e sua esposa Eleonore Adlon não leva a narrativa para lugares-comuns. Primeiro, porque o filme foi rodado em sequência (em geral os takes são gravados fragmentados e desordenados para, na pós-produção, o diretor fazer a montagem), o que resultou em performances cheias de frescor e espontaneidade em cada cena. Facilitando os atores abandonarem os estereótipos – o que seria fácil, em um filme com personagens tão excêntricos.

Mas também, e principalmente, porque o casal Adlon transformou aquele pequeno motel, posto de gasolina e café num microcosmo dos três arquétipos no qual se funda a subjetividade pós-moderna: em Bagdad, emoldurado pelo deserto, encontramos reunidos Viajantes, Detetives e Estrangeiros – os três modos de constituição da subjetividade e do mundo na cultura contemporânea.




O Filme

Bagdad Café abre em plena ação, quando começamos a acompanhar um casal de turistas alemães perdidos no Deserto de Mojave. A cena é caótica: plano de câmera inclinado, o som do carro tocando alto uma típica marcha folclórica alemã. Ela, Jasmin Münchgstettener (Marianne Sägebrecht) discute com seu marido (Hans Stadlbauer), perdidos numa viagem miserável até Las Vegas.

Em um ataque de raiva diante de um marido tão abusivo, Jasmin pega sua mala e sai andando pelo acostamento, enquanto seu marido simplesmente acelera sua Mercedes e vai embora. 

Com seu vestido de saia justa, terninho e chapéu bávaro, a roliça Jasmin arrasta sua mala sob um céu vermelho e muita poeira, até chegar a uma parada de caminhões: um posto, um decadente café e pequeno motel cujos quartos não são limpos há muito tempo.

Jasmin, suada e rosada, encontra um verdadeiro caldo multicultural: um nativo americano que é xerife; a dona do café, uma afro-americana mandona chamada Brenda (CCH Pounder) que vive às turras com seu marido Sal (G. Smokey Campbell) que sempre esquece de trazer a máquina de café do conserto; Brenda vive com seu filho e pai adolescente Salomon (Darron Flagg, fazendo exercícios de música clássica em um velho piano) e a filha Phylis (Monica Calhoun) que foge dos estudos para farrear com rapazes da região. 




Há também dois moradores fixos e solitários naquele lugar perdido: Rudy Cox (Jack Palance) ator e pintor de cenografia de estúdios de Hollywood aposentado; e Debbie (Christine Kaufmann) tatuadora e, se o programa valer à pena, prostituta. Além do balconista “chicano” do café chamado Cahuenga (George Aguilar) que apenas dorme atrás do balcão vendo o tempo passar. 

A rigorosidade germânica de Jasmin é logo confrontada com tanta sujeira, desordem e administração caótica de Brenda, sempre histérica com as brigas conjugais. Ela pega um esfregão, balde, e começa a limpar o seu quarto, enquanto os frequentadores do motel assistem maravilhados. Ela vai e volta, como algum tipo de força natural que foi colocada em movimento implacável contra a sujeira. Gradualmente, sua esfera de ação se estende a outros quartos do motel e às áreas comuns, e ela dá pequenas dicas a Brenda sobre limpeza e a importância de manter padrões elevados para o público.

Mas ela também começa a se transformar dia a dia: seus vestidos bávaros muito justos dão lugar a uma blusa que ondula do lado de fora das calças. Uma mecha perdida de cabelo escapa do spray cintilante, e então, finalmente, seu cabelo cai em liberdade varrida pelo vento. Além de se tornar a musa inspiradora para as pinturas de Rudy Cox – nos seus últimos quadros, Jasmin já está posando completamente nua...




A mágica da gnose

Como dissemos, Bagdad Café rapidamente tornou-se um filme cult, principalmente porque o casal Adlon conseguiu sintetizar nesse conjunto de personagens multiculturais e multirraciais os principais arquétipos da subjetividade contemporânea. Nesse microcosmo estão viajantes, detetive e estrangeiros.

Brenda repete diversas vezes a fala “odeio coisas que não fazem sentido!”. Ela sabe que algo não faz sentido na sua vida e naquele conjunto de personagens aleatórios que se encontraram naquele lugar perdido em uma vida sofrida e desorganizada. A chegada de Jasmin aumenta ainda mais sua sensação de estranhamento. Como um detetive, tenta encaixar as peças. Mas sem resposta.

Como uma viajante, Jasmin é a turista acidental: uma bávara rigorosa e metódica que, de repente, foi jogada num verdadeiro “rolê aleatório”. Como se a providência a jogasse numa viagem para que ela seja transformada. Para que alcance a redenção e perca todos os estereótipos com que ela vê aquela estranha cultura – quando Jasmin chega no Bagdad Café e conhece a afro-americana Brenda, malvestida e cabelos desgrenhados, logo se imagina nua sendo cozida em um caldeirão prestes a ser devorada por uma tribo de canibais.




O restante dos personagens é composto por estrangeiros : vivem num estado de alienação e estranhamento como excluídos da sociedade que foram parar numa estrada para Las Vegas que não leva a parte alguma – como nos informa a música “Calling You”.

O tema-chave de Bagdad Café é “encontros e recomeços” na busca por redenção. E Jasmin vai encontrar a ferramenta dessa gnose dentro da mala que trouxe por engano (sem saber, pegou a mala do seu marido): uma caixa de objetos para shows de mágica. Bela metáfora gnóstica: tudo do que precisamos já está dentro de nós. Como se a mala que Jasmin abriu fosse o seu próprio eu mais profundo.

Os shows de mágica que Jasmin fará (tornando o café mais atraente para os caminhoneiros do que os shows de Las Vegas) é a metáfora da transformação interior que muda tudo ao redor – a superação do mal-estar existencial da condição de viajantes, detetives e estrangeiros.

Bagdad Café é um filme otimista de uma época em que os temas do racismo, multiculturalismo e tolerância já eram intensamente discutidos e acreditava-se que o mundo que estaria perto de uma solução. Assistir a esse filme, mais de três décadas depois, parece nos proporcionar uma melancólica nostalgia de tempos mais otimistas. 

Nenhum daqueles temas colocados pelo casal Adlon em 1987 foram resolvidos. Pelo contrário, só pioraram. Acabaram sendo explorados como ferramentas de guerra híbrida para criar polarizações e dividir sociedades.


 

Ficha Técnica 

Título: Bagdad Café

Diretor: Percy Adlon

Roteiro: Percy Adlon e Eleonore Adlon

Elenco: Marianne Sägebrecht, CCH Pounder, Jack Palance, Christiane Kaufmann, Monica Calhoun

Produção: Pelemele Films

Distribuição:  Amazon Prime Video

Ano: 1987

País: Alemanha

 

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