Depois da experiência da direção do filme “O Rei da Comédia” com um amargo Jerry Lewis e um esquizofrênico Robert De Niro, Martin Scorsese mergulhou de cabeça na paranoia e ansiedade em “Depois de Horas” (After Hours, 1985). O filme tornou-se o paradigma de um curioso subgênero da década de 1980, o “Desconstruindo o Yuppie” onde um protagonista certinho e bem sucedido é vítima de uma sequência de eventos em cadeia exponencialmente perigosos. Forma e conteúdo do filme coincidem com a própria experiência estética do espectador que caracteriza o cinema: o “deixar se perder” no fluxo da edição e montagem. Porém, “Depois de Horas” não consegue transformar-se em “cinema acontecimento”, limitando-se a um terapêutico “cinema recuperativo” que nos prepara a voltar para a realidade quando são acesas as luzes do cinema.
A vivência da experiência estética de produtos ficcionais do
cinema ou da TV é totalmente distinta do assistir um telejornal, da leitura da
imprensa escrita ou do radiojornalismo. O jornalismo estaria no campo do
profano, dos discursos racionais, enquanto os produtos ficcionais estariam no
campo do sagrado (festas e envolvimento coletivo e emocional) onde os
participantes consentem em se “perder”.
Desde o primeiro cinema o perigo, a ansiedade, a paranoia, a
vertigem e a perseguição se constituíram na essência de uma mídia onde a
sensação de desorientação e quebra da ordem passou a ser o elemento definidor
da experiência estética – não é à toa que o primeiro gênero de sucesso popular
no cinema foi o filme de perseguição com o “The Great Train Robbery” de 1903.
Talvez um dos filmes que melhor exemplifique essa natureza
da experiência do cinema seja “Depois de Horas” de Martin Scorsese. Nele
acompanhamos um protagonista em uma situação tal e qual Alice de Lewis Carroll:
ele irá escorregar por um buraco urbano que o fará encontrar um submundo onde “após
a meia-noite as leis mudam”, como afirma um dos alucinados personagens que ele
encontrará em sua jornada.
Paul Hacket (Griffin Dunne) é um entediado programador de
computadores que vive uma vida de conformidade e conforto no East Side de
Manhattan. Tudo é rotina e previsibilidade, representado pela ordem perfeita da
música dos créditos de abertura do filme – a Sinfonia em D Maior de Mozart, um
contraste irônico para o que ocorrerá com o herói. Em um café no Centro é
atraído por uma jovem chamada Marcy (Rosana Arquette) que lia “Trópico de
Câncer” de Henry Miller enquanto brincava com uma xícara de café.
Uma mulher atraente e
misteriosa. A partir de um papel com um telefone, Paul é atraído pelo coelho/Marcy
e vai para o exótico SoHo onde mergulhará de cabeça em uma exótica Wonderland
de escultores excêntricos, artistas, garçons e garçonetes potencialmente
suicidas, ladrões e loucos solitários.
Tudo poderia ser uma busca de diversão para um jovem entediado,
não fosse uma viagem de táxi de arrepiar: sua única nota, 20 dólares, voa para
fora da janela dando o início a uma noite de coincidências e sequências de
eventos em cadeia que farão Paul, a certa altura do desespero, cair de joelhos
na calçada e gritar para o céu “O que você quer de mim? Sou apenas um
programador?”
“Depois de Horas” tornou-se o paradigma de um curioso subgênero
que prosperou na década de 1980: o “Desconstruindo o Yuppie”. “Procura-se Susan
Desesperadamente”, “Totalmente Selvagem”, “Férias Frustradas”, “Antes Só do Que
Mal Acompanhado”, “Crazy People” etc., são filmes onde um protagonista
certinho, careta e financeiramente bem sucedido tem a sua rotina quebrada por
uma figura feminina ou sequência descontrolada de eventos que o desorienta e o desconstrói.
Foi nessa década que a chamada geração X (os filhos da
geração “baby boomer” pós-guerra) produziu a sua autoimagem mais bem acabada: o Yuppie.
Derivação da sigla YUP (jovem profissional urbano), esses jovens executivos do
setor financeiro e de serviços se beneficiaram do crescimento econômico
conduzida por políticas neoliberais de desregulamentação e diminuição de
impostos nos EUA e Inglaterra. Ao contrário dos hippies do passado, sua
ideologia era focada no indivíduo, materialismo (o sonho de juntar seu primeiro
milhão de dólares – e seu primeiro Prozac - antes dos 30 anos) e na
flexibilidade ética e amoralidade.
"Depois de Horas" de Scorsese e "Alice" de Lewis Carroll
Scorsese vinha da
experiência na direção do filme “O Rei da Comédia”, onde um amargo Jerry Lewis
contracenava com um esquizofrênico Robert De Niro. Depois dessa tragicomédia
esquizoide, Scorsese mergulhou ainda mais na ansiedade e paranoia com “Depois
de Horas” onde vemos desfilar uma galeria de personagens com personalidades
divididas onde nada é o que aparenta ser.
O paralelo entre
a Alice no País das Maravilhas e Paul em “Depois de Horas” termina na forma
como o protagonista é conduzido para o submundo. Se a Wonderland de Lewis
Carroll é o mundo vitoriano representado de forma invertida como em um espelho
(as linhas de diálogo mostram sempre como a lógica racional conduz para o seu
oposto), o SoHo de Scorsese é representado mais como um parque temático para um
yuppie: pessoas cheias de estilo e descoladas, mas potencialmente perigosas e
homicidas. Enquanto em Carroll temos a anarquia e subversão (os princípios da
lógica são virados logicamente do
avesso), em Scorsese temos uma combinação entre ansiedade e resignação:
passivo, Paul resiste, tenta fugir, cai de joelhos, clama para o céu para, no
final, retornar à ordem entediante da qual o coelho/Marcy o retirou no início.
“Depois de Horas”
é uma pequena fábula fascinante, pois forma e conteúdo coincidem com a própria
natureza do cinema: o deixar se perder no fluxo da edição e montagem, entrar no
cinema para quebrar a rotina e esquecer a vida lá de fora, assim como o
protagonista Paul ao cair em um submundo do qual acha que jamais será
encontrado.
O problema de “Depois
de Horas” é que o underground do SoHo
se encaixa confortavelmente com o mundo real yuppie de onde Paul Hacket veio. Femmes Fatales e loucos homicidas
descolados e artistas são personagens de uma jornada de um yuppie ao Inferno
que não renovam ou transformam o protagonista. Paul Hacket acaba largado, no
início da manhã, em frente ao local de trabalho, tentando recompor-se para mais
um dia de trabalho após uma madrugada alucinante.
Cinema de Recupração e Cinema Acontecimento
Jason Horsley no
livro The Secret Life of Movies –
Schizophrenic and Shamanic Journeys in American Cinema qualifica o subgênero
“Desconstruindo o Yuppie” como mais um exemplo da tendência “recuperativa” do
cinema nas décadas de 1980-90: após as incursões no “cinema esquizo” em filmes
como “Blow Up”, “Perdidos na Noite”, “Easy Rider”, “Um Estranho no Ninho”, “Taxi
Driver” etc. (novo realismo
misturado com desespero, cinismo e paranoia política onde os protagonistas são retratados
não mais como heróis convencionais, mas, agora, potencialmente psicopatas,
esquizoides, alienados e revoltados), a partir da década de 1980 vemos um “cinema
de recuperação”: o mal estar da sociedade é enquadrado em narrativas com
violência sadística, exibicionista onde medo e paranoia são convertidos em ansiedade. A ansiedade como um mal que
pode ser controlado, terapeutizado para o retorno à ordem e rotina.
Pois a Wonderland do SoHo não consegue desafiar o mundo do
yuppie Paul Hacket, ao contrário da Wonderland de Carroll. Tudo termina como
fosse uma incômoda ressaca que logo será esquecida.
Se a hipótese da experiência
estética do espectador do “deixar se perder” no cinema (para além do
entretenimento, a secreta motivação do espectador seria romper com o mal estar
da rotina do cotidiano) for verdadeira, teríamos dois tipos de cinema: o cinema recuperativo, isto é, aquele que
oferece o clichê da quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem onde toda transgressão ou
promessa de realização onírica é punida com o retorno à ordem para tranquilizar
o espectador quando as luzes forem acesas e voltar à realidade; e o cinema acontecimento, uma narrativa onde
forma e conteúdo não se resolvem, não há o retorno esperado à realidade e onde,
de fato, o espectador perde-se, desorienta-se, não conseguindo mais retornar à
vida real como nada tivesse acontecido. Como na Alice de Lewis Carroll.
Em certa altura
do filme, surge a atriz Teri Garr fazendo uma garçonete engraçadamente brega,
porém deprimida e com tendência suicida. Paul, desorientado e exausto em uma
lanchonete, recebe da garçonete um bilhete onde se lê “Eu odeio esse trabalho”!
Todos os
personagens de “Depois de Horas” sofrem, são deprimidos, insatisfeitos e com um
passado de perdas e dor. Porém estão conformados, passivos, contidos e melancólicos,
apesar da narrativa vertiginosa de acontecimentos em cadeia que se sucedem em
sincronismo assustadoramente inexplicável.
Portanto,
facilmente poderíamos enquadrar “Depois de Horas” como um “cinema de
recuperação”. Embora com uma narrativa fascinante e envolvente que, de fato,
nos faz se perder junto com Paul Hecket, resta um mal estar no final: parece
que nada aconteceu, não houve transformação, renovação. É a desconstrução do
yuppie como um porre após mais um estressante dia de trabalho.
Ficha Técnica
- Título: Depois de Horas (After Hours)
- Direção: Martin Scorsese
- Roteiro: Joseph Minion
- Elenco: Griffin Dunne, Rosanna Arquette, Verna Bloom, Linda Fiorentino e Teri Garr
- Produção: Geffen Company, Double Play
- Distribuição: Warner Home Video
- Ano: 1985
- País: EUA
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