Centrada
na estória de uma menina que foi assassinada e observa sua família e seu
assassino do “céu” (não propriamente, mas de um limbo entre a terra e o céu), a
adaptação do romance “Lovely Bones” de Alice Sebold esquece a inteligência e a
intrincada estória do livro e confina a experiência do sagrado na célebre
fantasia-clichê hollywoodiana da “quebra-da-ordem-e- retorno-a-ordem”: quem
transgride a Ordem deve ser punido! Assim é “Um Olhar do Paraíso” (Lovely Bones, 2009)
Como
já abordamos em postagens anteriores (veja links abaixo), a chamada experiência
do Sagrado tal qual compreendida pelo mainstream
midiático da atualidade consiste numa espécie de teologia secularizada: uma
experiência que seria originada na percepção ou descoberta intuitiva súbita que
o indivíduo teria de uma conexão com uma “ordem maior”, com uma totalidade
cósmica ou divina.
Descontínuo
e marcado para morrer, para o homem a Verdade não estaria na experiência individual, mas na
liquidação de qualquer perspectiva particular em nome de uma Totalidade (“Somos
todos Um”, o totalitário slogan New Age).
Nessa
perspectiva, esse Sagrado enquanto teologia secularizada, teria duas “funções”:
adaptar de forma violenta o indivíduo às totalidades sociais (ordem
corporativa, política, moral etc.) e trazer racionalização e conforto à dor e
sofrimento individuais decorrentes dessa adaptação forçada (mostrar ao
indivíduo que ele é insignificante diante dos desígnios maiores do Cosmos).
Como
no filme Juventude
Transviada (Rebel Without
a Cause, 1955) onde o personagem de James Dean (Jim Stark) olha
para as estrelas do Planetário e diz que vem sempre para lá para, ao contemplar
a imensidão do universo, perceber como seus problemas são insignificantes.
Da
mesma forma, Um Olhar do
Paraíso confina a
experiência do sagrado a sucessivas experiências de punições dos personagens
por transgressões da Ordem. E o filme segue essa fantasia-clichê de forma
surpreendentemente rígida e esquemática no melhor estilo dos filmes que
envolvem adolescentes nos gêneros terror ou thriller. Se não, vejamos.
A
construção dos personagens da mãe e da avó da protagonista que será assassinada
(respectivamente Abigail Salmon – Rachel Weiz – e Lynn – Susan Sarandon) são
exemplares: vemos Abigail lendo na cama livros de Camus e da literatura beatnik, enquanto a avó bebe e fuma
compulsivamente e incentiva sua neta a ter suas primeiras experiências
amorosas. Tais comportamentos transgressivos merecem a punição: o assassinato
da filha/neta Susie Salmon e a desestruturação da felicidade da família.
A
sequência que antecede o assassinato de Susie é exemplar. Ela sonha com o
primeiro beijo que dará na vida. Está apaixonada (com o incentivo da sua avó
liberal) por Ray (Reece Ritchie), rapaz “misterioso” (nos filmes
norte-americanos basta ser estrangeiro – ele é inglês – para ter um ar de
“misterioso”. A típica xenofobia americana). Quebra da ordem e punição
imediata. Na próxima sequência ela será assassinada pelo serial Killer no
milharal. Os sonhos individuais devem ser abatidos pela realidade: uma das
variações da fantasia-clichê de “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”.
O milharal: transgressão e punição
Aliás,
o milharal é o local emblemático da narrativa: para lá vão os casais
apaixonados em busca das suas primeiras experiência sexuais. E lá está, também,
o serial killer, o Mal à espreita, pronto para o seu papel punitivo, de
executor da Ordem e da Totalidade.
Enquanto
os personagens transgressores vão desaparecendo na trama (a esposa Abigail
entra em depressão e sai de casa para se auto-exilar como trabalhadora rural em
uma fazenda e a avó Lynn simplesmente desaparece na últimas sequências) os
personagens mais “certinhos” ou “centrados” ganham espaço no confronto contra o
Mal, o serial killer. O pai da vítima Susie, Jack Salmon (Mark Wahlberg) decide
usar seu talento por detalhes (ele é contador) e investiga os possíveis
suspeitos e a irmã de Susie, Lindsey, (na trama caracterizada como mais
realista e pragmática do que Susie) tem a intuição correta de quem é o assassino
e consegue encontrar as evidências para entregar à polícia. A racionalidade e o
pragmatismo impõem-se diante da atitudes “porra-loucas” que apenas atraíram o
Mal.
Surpreendentemente
é o mesmo esquema dos roteiros dos filmes de terror adolescentes da chamada
“espantomania” ("Sexta-Feira 13", Freedy Kruger em "Pesadelo em Elm Street" etc.) dos anos 80.
Enquanto
isso, no “céu” ou no “limbo”, as atitudes transgressoras de Susie continuam
sendo punidas (como, por exemplo, a agressão e quase morte sofrida pelo seu pai
como causada pela insistência de Susie observar a vida na Terra e nutrir o ódio
pelo seu assassino). Ao final será enquadrada pelas outras meninas vítimas do
serial killer e adaptada aos desígnios divinos da uma Totalidade Cósmica
perfeita e harmônica.
Para
além da péssima adaptação do romance original e do esquematismo primário do
roteiro (Bem e Mal sem matizações), há algo mais sério por trás: a suposta
experiência do Sagrado vendida pelo mainstream
midiático como a renúncia do indivíduo de todo ou qualquer sonho diante dos
propósitos misteriosos da Totalidade. O filme Um Olhar do Paraíso nada mais é
do que outro exemplo do implacável ritual da liquidação do indivíduo em nome do
Universal.
O clichê da “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”
Não
importa um gênero ou tema, esse clichê está sempre presente como uma forma de elaborar
a fantasia e as espectativas do espectador: ir ao cinema para quebrar a rotina
e desprazer do cotidiano, ver de forma ritualizada a ordem (social, política
etc.) ser quebrada no filme para, ao final, prepará-lo para retornar às suas
obrigações diárias como se nada tivesse ocorrido.
Este
clichê de "quebra‑da‑ordem‑e‑retomo‑a‑ordem" é a confirmação do
desejo secreto do público de acabar com os sonhos livres demais e ao mesmo
tempo liquidar com idéias provocativas que possam incomodar a necessidade por
harmonia. Um exemplo pode ser visto no filme road‑movie Thelma
e Louise (1991) com Susan Sarandon e Geena Davis onde duas mulheres
submetidas à repressão masculina, (uma num emprego alienante de garçonete e a
outra submetida à ordem doméstica machista) rompem com tudo e fogem num carro
conversível.
Esta
fixação do desejo do público por liberdade através de imagens simbólicas (o
carro conversível, cabelos soltos ao vento num carro veloz, etc) é desenvolvido
até certo ponto para, no final, os sonhos serem abatidos dentro de um destino
trágico. Pode parecer estranho, mas felicidade demais incomoda o público. As
pessoas esperam que os sonhos sejam abatidos pela realidade dentro do clichê.
Mas, por quê? Para que a volta à realidade, após sair do cinema ou desligar a
TV, não seja tão traumática. Se Thelma e Louise não conseguiram ser livres,
tampouco eu poderei. Antes que o sonho invada a consciência do público, tirando‑lhe
a paz, o clichê abate e neutraliza.
Ficha Técnico
- Título: Um Olhar do Paraíso (Lovely Bones)
- Direção: Peter Jackson
- Roteiro: Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson, baseados em livro de Alice Sebold
- Elenco: Saoirse Ronan , Mark Wahlberg , Rachel Weisz , Susan Sarandon , Stanley Tucci
- Produção: WingNut Films / DreamWorks SKG / Film4 / Key Creatives
- Distribuição: DreamWorks SKG / Paramount Pictures
- Ano: 2009
- País: EUA, Nova Zelândia e Reino Unido
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