terça-feira, abril 23, 2024

'Guerra Civil' alinha-se a agenda do Grande Reset Global e manda democracia às favas



Há uma urgência da destruição no cinema americano: aliens, terroristas, asteroides, zumbis etc. Mas “Guerra Civil” (Civil War, 2024), ironicamente dirigido por um britânico, Alex Garland, foi diabolicamente inteligente: dessa vez o espetáculo não é ver edifícios icônicos de Washington DC indo pelos ares. O que principalmente está indo pelos ares é a própria ideia da democracia burguesa. Mais do que isso, o que está em questão em “Guerra Civil” é o próprio fim da ilusão que perpetrou o mito da democracia americana. “Guerra Civil” é uma distopia política que faz todo o sentido Hollywood irradiar para todo o planeta. Porque reforça a mitologia da polarização política como motivo para a crise da democracia – o álibi para justificar a escalada da extrema-direita por todo o mundo no contexto do chamado Grande Reset Global do Capitalismo. 

Em postagem anterior discutíamos a questão da urgência da destruição no cinema norte-americano. O poder financeiro e tecnológico da indústria cinematográfica norte-americana parece ter uma relação direta com a escala de destruição exibida em seus filmes: de catástrofes em proporções planetárias a micro-desastres cotidianos como perseguições seguidas de explosões e choques de automóveis, destruição de bens e descartabilidade de objetos – clique aqui.

Os economistas Paul Baran e Paul Sweezy sugeriam uma relação estrutural entre a necessidade do capital pela obsolescência planejada e a obsessão generalizada pela destruição por Hollywood – incutir o imaginário da, por assim dizer, destruição criativa - leia Capitalismo Monopolista: Ensaio sobre a Ordem Econômica e Social Americana, Zahar, 1974.

Quantas vezes Nova York ou Los Angeles já foram destruídos em blockbusters por alienígenas, vulcões, asteroides, zumbis, catástrofes ambientais, climáticas, geológicas etc. Uma obsessão em mostrar edifícios ou monumentos icônicos sendo devastados.

Porém, terroristas e alienígenas parecem estar saindo de moda no imaginário norte-americano. Segundo pesquisa recente, mais de 40% acham provável ocorrer uma guerra civil no país dentro de uma década – clique aqui. Talvez ecos da invasão do Capitólio pelos trompistas em 2021.



O filme Guerra Civil (Civil War, 2024), ironicamente dirigido pelo britânico Alex Garland, parece repercutir esse imaginário crescente, alimentado pelo sensacionalismo político da “polarização política” – como se o sistema político dos EUA não fosse, desde o início, concebido para a polarização partidária. Um sistema eleitoral surgido da ordem escravocrata cujo macete é desestimular a todo custo o voto popular, para a deixar as decisões a um colegiado cujas origens estão nos mesmos proprietários de escravos.

Guerra Civil é um filme diabolicamente inteligente: dessa vez o espetáculo não é apenas ver edifícios icônicos de Washington DC indo pelos ares. O que principalmente está indo pelos ares é a própria ideia da Democracia norte-americana. 

Claro que a chamada “maior democracia do Ocidente” não passa de um sistema eleitoral indireto para dar continuidade à elite dos “Pais Fundadores”. Porém, o que está em questão em Guerra Civil é a própria incineração da ilusão que perpetrou o mito da democracia americana. A distopia política de Alex Garland é a confirmação da suspeita de que por trás de toda a mitologia fundadora da “Bill of Rights” de George Washington, Thomas Jefferson e Benjamin Franklin nada existia.

Mostrar o país em guerra fratricida não é uma novidade: clássicos como o épico racista O Nascimento de uma Nação (1915) de Griffith ou E O Vento Levou de 1939 são monumentos da supremacia branca com o mito da “Causa Perdida” do Sul. Mas ainda é sobre História, a Guerra da Secessão do século XIX.

Guerra Civil mostra essa guerra na atualidade, sem nenhuma nostalgia sobre “causas perdidas”: a América sempre foi uma farsa na qual os americanos sempre acreditaram.



Porém, não sejamos ingênuos: Alex Garland não está simplesmente rifando a ex-colônia britânica. Sabemos que sempre houve uma agenda política na indústria hollywoodiana. Talvez nada tenha deixado isso tão explícito quanto o episódio da premiação do filme Argo (2013) transmitido em link direto com a Casa Branca, com Michelle Obama abrindo o envelope com o nome do filme – um proselitismo político sobre o ardil da libertação de reféns americanos da revolução islâmica no Irã em 1979.

Colocando em perspectiva, Guerra Civil é uma distopia política que faz todo o sentido Hollywood irradiar para todo o planeta. Porque reforça a mitologia da polarização política como motivo para a crise da democracia burguesa – o álibi para justificar a escalada da extrema-direita por todo o mundo. E sabemos que historicamente todos os extremismos de direita (nazismo, fascismo etc.) são ferramentas à disposição para fazer o serviço sujo do capitalismo em meio às suas indefectíveis crises cíclicas.

Na atualidade, a crise do chamado “Grande Reset Global” do Capitalismo – a necessidade de uma nova reconfiguração do Capitalismo, tão violenta, com extrema e rápida concentração de riqueza, que a democracia (mesmo burguesa) se tornou uma camisa de força indesejável. 

Como agenda política, Guerra Civil faz parte dessa hipernormalização de uma distopia: a democracia tem que ser mandada às favas. E o respeitável público deve se acostumar com essa ideia.



O Filme

O escritor e diretor inglês Alex Garland tem um talento inegável pela estética do fim dos tempos e atmosféricas distópicas com as imagens inquietantes de uma nação sitiada. Sua câmera permanece em edifícios bombardeados, calçadas encharcadas de sangue e, em um quadro surreal, uma rodovia que se tornou um cemitério veicular, com fileiras de carros abandonados que se estendem por quilômetros. 

Plumas de fumaça sempre parecem estar subindo de algum lugar à distância, para além das zonas de conflagração 

Os personagens principais de Guerra Civil são quatro jornalistas. O filme os apresenta cobrindo um confronto na cidade de Nova York entre o que parece ser forças policiais do governo oficial e membros violentos da oposição – Garland deixa os detalhes ou os motivos da guerra vagos ou irrelevantes. 

Uma guerra de secessão fraturou os EUA em várias facções armadas e politicamente não especificadas. Apenas sabemos que o presidente (Nick Offerman) se recusou a abandonar o poder e hoje ocupa o terceiro mandato – ele dissolveu o FBI, bombardeou cidades americanas, além de fazer questão de matar jornalistas.

Califórnia e Texas se uniram e formaram o que é chamado de “Frente Ocidental”. E há também uma “Liga da Flórida” que lançou sua própria campanha separatista. Por todos os lados há racionamento de água, homens explosivos suicidas, esquadrões da morte, franco-atiradores enquanto valas-comuns são abertas, transformando aparentemente pacatas estradas rurais em ambientes tensos onde a morte parece espreitar.



 Kirsten Dunst interpreta Lee, uma lendária fotojornalista. Ela fez uma parceria com um repórter sul-americano chamado Joel (Wagner Moura). Ambos trabalham para a agência de notícias Reuters. Junto com eles está um veterano jornalista chamado Sammy (Stephen McKinley Henderson), um jornalista afro-americano mais velho que escreve para “o que resta do New York Times”, como diz.

O grupo acaba ganhando um surpreendente quarto membro, a novata Jessie (Cailee Spaeny), uma fotógrafa amadora e fã de Lee – para ela, um mito vivo do fotojornalismo. Acidentalmente ela se une ao grupo de jornalistas profissionais.

O grupo decide buscar um furo de jornalismo: fazer uma viagem arriscada através de mortais estradas rurais, de Nova York a Washington DC. As forças separatistas marcham em direção à capital. O grupo de jornalistas pretende entrevistar o presidente antes de a Casa Branca ser tomada pela Frente Ocidental.

Lee está enfurecida com a presença da novata. A sua presença ingênua e imprudente pode tornar a missão ainda mais perigosa. Lee já salvou a vida dela uma vez, de uma explosão em Nova York que deixou para trás sangue e partes mutiladas de corpos. 

Guerra Civil torna-se um road movie clássico: Lee e seus companheiros deverão fugir de emboscadas em parques temáticos abandonados e escapar de milícias que perguntam antes de atirar “que espécie de americano você é?”. 

Ao longo do percurso obsessivamente apontam suas câmeras procurando registrar as mortes e o horror das cenas de batalhas. As sequências são constantemente pontuadas pelo clique das máquinas e imagens congeladas em preto e branco.



Retórica hiper-real- Alerta de Spoilers à frente

O protagonismo dos jornalistas em Guerra Civil tem um evidente efeito retórico – tornar a guerra mais “real” (ou hiper-real), sincera e dramática, como um genuíno evento histórico.

Todo o arriscado trabalho de Lee e Jessie para conseguir excelentes fotos parece supérfluo: quais meios e plataformas Lee e seus colegas estão usando para publicar todo esse trabalho? A indústria da mídia, uma zona de desastre mesmo em tempo de paz, parece ter entrado em colapso. As conexões com a Internet são irregulares a inexistentes, e o conflito se enfurece, para o bem ou para o mal, sem as incursões e distorções das mídias sociais – as redes sociais parecem ter acabado e, como disse anteriormente o velho Sammy, pouco restou do “New York Times”.

Então, para quê todo o esforço épico em documentar com suas máquinas digitais?

Parece que Garland quer produzir um efeito retórico hiper-real: vejam os jornalistas arriscando suas vidas fotografando e testemunhando os fatos. Se eles fotografam, então tudo é real!

Esse efeito de realidade que Garland parece querer saturar no filme (o tema não é mais a guerra civil, mas jornalistas arriscando o pescoço num trabalho aparentemente inglório, numa espécie de metalinguagem autoindulgente do jornalismo) oculta a verdadeira operação psicológica da agenda hollywoodiana nesse momento em que o jornalismo real bombardeia o discurso da polarização – Trump vs. Biden; Lula vs. Bolsonaro etc.

A sequência final em que Wagner Moura finalmente consegue encontrar na Casa Branca o presidente no chão, rendido por soldados insurgentes, pronto para ser executado enquanto desesperadamente pede para que não o matem é a conclusão de um silogismo que Guerra Civil desenvolve por toda a jornada arriscada dos jornalistas.

“Seja quem for: Gaddafi, Mussolini, Ceausescu, eles acabam sendo sempre mais covardes do que pensávamos”, conclui Joel. 

Pode parecer que Guerra Civil faz uma crítica contra a política do fascismo da extrema-direita. Mas confrontado com a forma vaga como o filme recusa a explicar o que de fato está acontecendo nos EUA, o resultado é mais uma retórica de aversão ou ódio à Política da qual a própria extrema-direita se alimenta por todo o planeta: no final, foram os políticos que criaram a polarização e tragédia da guerra civil.

O resultado de Guerra Civil é a alienação do distinto público. Condição necessária para que a democracia burguesa seja mandada definitivamente às favas no atual contexto de Grande Reset Global do Capitalismo.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Guerra Civil

Diretor:  Alex Garland

Roteiro:  Alex Garland

Elenco: Kirsten Dunst, Wagner Moura, Cailee Spaemy, Stephen McKinley Henderson

Produção: A24, DNA Films

Distribuição: Diamond Films

Ano: 2024

País: EUA

 

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