Coisa que ganham vida e passam a caçar seres humanos é um tema recorrente no cinema: carros homicidas, tomates assassinos, pneus que se vingam da civilização, vestidos que matam entre outros numa lista infindável. “Mergulho Noturno” (Night Swim, 2024), dos mesmos produtores de “A Freira” e “M3GAN”) acrescenta mais um objeto que ganha vida: uma piscina que engole gente em um típico subúrbio de classe média. Embora “Mergulho Noturno” siga todos os cânones do gênero, seu roteiro é uma curiosa combinação de simbologias antropológicas (a antropomorfização dos objetos e reificação da sociedade), esotéricas (o imaginário do elemento água) e urbanas (o imaginário das classes médias suburbanas e o desencantamento do mundo).
O cinema conta com uma longa tradição de filmes sobre objetos inanimados que se antropomorfizam e passam a perseguir e matar seres humanos.
Desde O Ataque dos Tomates Assassinos (1978) temos uma lista interminável: Christine, O Carro Assassino, Dolls (fantoches assassinos), Killer Condom (camisinhas que matam), Rubber (um pneu velho ganha vida e se vinga da civilização), In Fabric (sobre um vestido homicida), Killdozer (uma escavadeira é possuída e assassina operários em uma construção) etc.
Dentro da Teoria da Alienação marxista poderíamos dizer que essa recorrência temática é um sintoma da civilização que humaniza objetos através da publicidade e marketing, enquanto os seres humanos são coisificados – é o clássico conceito de “reificação”, o predomínio da coisa, do objeto sobre o sujeito, o homem.
Afastando-se do campo de análise materialista, temos também a recorrência do tema da água no cinema, que se aproxima das significações simbólicas, místicas e esotéricas desse elemento que podem ser agrupadas a três temas dominantes: fonte da vida, meio de purificação, centro de regenerescência. Esses três temas se encontram nas mais antigas tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias.
Dead Man (o fluxo do rio como simbolismo do salto espiritual do protagonista), o simbolismo do renascimento em Cidade das Sombras, um temporal com arco-íris final como símbolo da transformação de uma cidade conservadora em A Vida em Preto e Branco são alguns exemplos.
O filme de terror Mergulho Noturno (Night Swim, 2024) acrescenta mais um objeto inanimado à lista daqueles que ganham vida: uma piscina em uma ampla casa em um subúrbio de classe média engole pessoas. Como em Poltergeist, há uma história antiga por trás, muito antes do empreendimento imobiliário que fez surgir aquele bairro.
Ao lado da tradição de filmes de terror localizados em casarões suburbanos, Night Swim inova o simbolismo em torno do elemento água no cinema: dessa vez a água é um véiculo para manifestação do Mal. Embora o elemento da regeneração esteja presente: a água que enche a piscina (originada de um antigo aquífero) tem poderes termais de cura. Porém, sempre exige em troca um sacrifício humano.
Mergulho Noturno foi produzido por dois pesos pesados do gênero: Jason Blum e James Wan – A Freira e M3GAN. E dessa vez com um toque irônico numa narrativa de terror: para nós, uma piscina é tão cercada por associações com luxo e relaxamento que a ideia de associá-la com algo antropomorfizado e assassino parece ter um toque inspirado e inovador.
O fato é que o filme explora uma ideia de que na sociedade de consumo a piscina se transformou numa monstruosidade moderna: de oásis relaxante do american way of life de meados do século passado, transformou-se num complexo de dispositivos como escorregadores, tombo água, bares dentro da água, grutas, cascatas etc. Ou seja, repletas de armadilhas perfeitas para o Mal espreitar suas vítimas.
O roteirista-diretor Bryce McGuire brinca com a noção de um mal antigo e insaciável à espreita abaixo da superfície do subúrbio banal ao expandir o curta que ele próprio fez com Rod Blackhurst nesse longa-metragem de estreia.
A ideia de Mergulho Noturno não é nova; é o material de Stephen King e David Lynch. Mas McGuire estabelece tensão suficiente com o uso eficaz do design de som e dos ângulos da câmera para criar uma atmosfera persistente e inquietante.
Embora Mergulho Noturno siga todos os cânones do gênero, seu roteiro é uma curiosa combinação de simbologias antropológicas (a antropomorfização dos objetos), esotéricas (o imaginário do elemento água) e urbanas (o imaginário das classes médias suburbanas).
O Filme
Tudo começa com um flashback de 1992 mostrando uma pequena criança de cabelos trançados sendo devorada pela piscina quando ela estende a mão para tentar recuperar um barco de brinquedo que estava desaparecido.
Corta para os dias atuais. A família Waller – Ray (Wyatt Russel), Eve (Kerry Condom), Izzy (Amélie Hoeferie) e Elliot (Gavin Warren) - se mudam para uma casa com uma piscina que não é usada há mais de 30 anos.
Ray é um ex-jogador profissional de beisebol cuja carreira foi cortada devido a uma doença degenerativa. Através de um técnico que veio fazer a manutenção da piscina, Ray descobre que a água brota do fundo proveniente de um aquífero – e que, no passado, antes dos projetos imobiliários, a região era dominada por spas de águas termais e terapêuticas.
Ray começa a usar a piscina para a fisioterapia prescrita pela médica, mas parece que a água tem propriedades milagrosas: a doença começa a regredir e as perspectivas futuras tornam-se melhores.
No entanto, sua esposa Eve, e seus filhos Izzy e Elliot acabam experimentando viesões estranhas e aterrorizantes visões ao usar a piscina: apenas visões distorcidas produzidas por reflexos na água?
Depois de um incidente em que Ray e outra criança visitante em uma festa quase se afogam na piscina, Eve pesquisa e descobre que uma criança da família anterior também desapareceu na piscina.
Ela encontra uma das residentes anteriores, Kay Summers, cuja filha Rebecca foi levada pela entidade na piscina. Kay explica que a água na piscina vem de uma nascente que foi usada por séculos para conceder desejos, mas a entidade na água exige um sacrifício em troca, e Rebecca foi o sacrifício, já que Kay desejava que seu filho fosse curado de uma doença.
As coisas começam a ficar claras: seu marido está alcançando o seu grande desejo: retornar ao beisebol profissional. Mas parece que a entidade quer a vida de alguém da família em troca.
A solução poderia ser aparentemente fácil: basta enterrar a piscina com uma grande quantidade de terra. Não fosse Ray ter engolido uma substância negra que emerge do ralo da piscina. E ser possuído pela entidade maligna que o convence a fazer a mórbida troca: o afogamento de um membro da sua família em troca da sua cura definitiva.
Ray está resoluto e resiste à ideia de que exista algo de maligno e que a piscina deva desaparecer.
Assim como em Poltergeist, há uma crítica velada à velocidade da urbanização e especulação imobiliária, negligenciado a ancestralidade, a História, a magia e o misticismo. Uma crítica daquilo que certa vez o sociólogo Max Weber chamou de “desencantamento do mundo” como condição necessária para o progresso do capitalismo.
Um longo processo histórico ocorrido na civilização ocidental no qual o mundo deixa de ser concebido como habitado por forças ocultas que podem ser manipuladas através da magia. Para Weber, a racionalização das religiões foi um exemplo desse processo: a magia foi progressivamente eliminada no interior das religiões para a prática religiosa passar a ser fundamentada na ética.
O catolicismo expurgou da Terra mitos e lendas como excrescências pagãs e deixou o mundo vazio de sentido. Para depois ser explorado pela Razão, Ciência e Técnica.
Mas o inexplicável e o fantástico podem retornar para fazerem o acerto de contas contra a civilização.
Ao lado do tema do fetichismo da mercadoria e da coisificação do homem numa sociedade de mercadorias que se humanizam, a vingança do mundo desencantado parece estar na base imaginária dessa recorrência de objetos antropomórficos assassinos no cinema.
Ficha Técnica |
Título: Mergulho Noturno |
Diretor: Bryce McGuire |
Roteiro: Bryce McGuire, Rod Blackhurst |
Elenco: Wyatt Russell, Kerry Condom, Amélie Hoeferie, Gavin Warren |
Produção: Blumhouse Productions e Atomic Monster |
Distribuição: Apple TV e Amazom Prime Video (para alugar ou comprar) |
Ano: 2024 |
País: EUA |