quinta-feira, abril 04, 2024

O ancestral de todos televangelistas e da hipocrisia religiosa em 'O Mensageiro do Diabo'


Depois de décadas de ascensão dos televangelistas, acompanhamos nesse século o retrocesso civilizatório da escalada global das relações promíscuas e hipócritas entre religião, política e Estado. Não faltaram alertas no campo do cinema e audiovisual, para começar na série “Handmaid’s Tale”. Esses alertas vêm de muito tempo antes, ainda no século XX, em produções como “O Mensageiro do Diabo” (The Night of the Hunter, 1955). Robert Mitchum interpreta um reverendo itinerante que, entre citações bíblicas, casa com viúvas para matá-las e roubar as economias da família em pela Grande Depressão americana. Mas filhos relutam em dizer onde seu pai verdadeiro escondeu o dinheiro fruto de um roubo. Com forte influência do filme noir e expressionismo alemão, à época foi um fracasso de público e crítica. Para ao longos dos anos acabar sendo reconhecido como uma obra-prima.

Em pleno século XXI acompanhamos a escalada das promíscuas relações entre Estado e Religião. Mesmo depois de o “pensamento das luzes”, o Iluminismo, ter mobilizado todo o esforço filosófico, epistemológico e revolucionário (como a Queda da Bastilha na França) para separar as esferas do sagrado e do laico, do religioso e do secular. 

Parece que nada disso bastou e hoje testemunhamos o retrocesso quando vemos o ex-presidente e novamente candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, vendendo uma edição da Bíblia chamada “Make America Pray Again”. Ou, aqui no Brasil, crentes e ativistas neopentecostais tomando de assalto a segurança pública (cultos de “orientação espiritual” para policiais militares em igrejas), a política (“bancada da Bíblia” no Congresso), artes e entretenimento (a chamada Teologia do Domínio que invade a música e eventos populares como o Carnaval).

Alertas não faltaram no cinema e audiovisual, sendo o mais enfático a série distópica Handmaid’s Tale (2017-) – a América dominada por um Estado teocrático fundamentalista cristão, na qual as mulheres foram subjugadas e transformadas em “servas” como aparelhos reprodutores para uma elite dominante masculina.

Muito mais lá atrás, em plena gloriosa e vitoriosa América do pós-guerra da década de 1950 em uma pujante sociedade de consumo materialista e ateia, alertas também não faltaram sobre o germe do fundamentalismo religioso que espreita.

Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter, 1955), único filme dirigido pelo ator britânico Charles Laugthon, talvez seja o alerta mais contundente e esquecido na história do cinema. Na época, foi um fracasso de bilheteria e esquecido pelos críticos. Foi tão frustrante e decepcionante Charles Laugthon nunca mais quis dirigir outra produção.

Revisto e redescoberto ao longo dos anos, Mensageiro do Diabo tornou-se uma obra-prima essencial – nesse século vem impressionando críticos e audiências, chegando a plataformas de streaming como a Amazon Prime Video.



O filme é baseado no best-seller de Davis Grubb “The Night of the Hunter” que foi inspirado em um caso real na era da Grande Depressão dos EUA na década de 1930: um serial-killer chamado “Barba Azul” Harry Powers que em plena crise econômica e pobreza matava viúvas e seus filhos para roubar as economias das famílias.

No filme, Robert Mitchum interpreta o “Reverendo” Harry Powell, um pregador itinerante da palavra de Deus que no Sul do país atingido pela pobreza num mundo de família quebradas e de desespero econômico, encontra vítimas crédulas. Gente desesperada que busca algum conforto em pregações bíblicas e fervor retórico. Mas Powell é um mitômano que mistura citações bíblicas com golpes, roubo de carros e cavalos.

O gênio de Mensageiro do Diabo é que a produção descreve o ancestral de todos os televangelistas modernos e dos pastores que criam igrejas em busca da facilidade de lavar dinheiro sujo do crime e contravenções.

A fotografia e cenografia do filme refletem a estética do expressionismo alemão e do film noir – forte contraste do preto e branco, sombras, névoas, chuvas num mundo que parece se dissolver nas aparências, cinismo e mentiras. Mas ao mesmo tempo com uma atmosfera de conto fantástico sombrio infantil fora do realismo hollywoodiano convencional que dominava o cinema naquele momento.

Ângulos estranhos nos interiores domésticos, quartos com cenografia angulosa que mais parecem criptas reforçam as referências a Fritz Lang. Por outro lado, as crianças são as protagonistas, criando cenas com uma estranha aparência de cartão postal de Natal, como se o filme quisesse retornar ao espírito cruel dos velhos contos de fadas originais dos irmãos Grimm.

“Eu venho em paz, mas com uma espada” diz sempre o pregador psicopata Harry Powell, brandindo uma lâmina de um canivete. Mostrando os dedos de suas duas mãos com as letras H-A-T-E (“ódio”) e L-O-V-E (“amor”) tatuadas nelas. Está nesse sinistro reverendo o prenúncio de Estados religiosos fundamentalistas capazes de criar guerras e genocídios, enquanto cita trechos de passagens bíblicas do Velho Testamento.



O Filme

Em uma cela de prisão, Harry Powell descobre o segredo de um condenado (Peter Graves), que escondeu US$ 10.000 em algum lugar ao redor de sua casa. Depois de ser libertado da prisão, Powell procura a viúva do homem, Willa Harper (Shelley Winters), e dois filhos, John (Billy Chapin) e Pearl (Sally Jane Bruce).

As crianças sabem onde está o dinheiro, mas não confiam no pregador. Mas a mãe é seduzida pela lábia de Harry Powell e acaba se casando com ele para tudo terminar em uma noite de núpcias em que Powell a tortura para revelar o local da pequena fortuna – numa impactante cenografia expressionista no qual o quarto vira um cruzamento de capela com cripta.

Logo Willa Harper estará morta, vista em um incrível plano de câmera ao volante de um carro no fundo do rio, com seu cabelo flutuando como fossem algas. Também logo as crianças estarão fugindo por um rio em um pequeno barco em uma atmosfera de conto infantil, enquanto o pregador as persegue implacavelmente nas margens; uma sequência lindamente estilizada usando a lógica onírica dos pesadelos, na qual não importa o quão rápido se corra, o passo lento do perseguidor sempre mantém o ritmo. 

As crianças são finalmente acolhidas por uma corajosa e estoica seguidora da Bíblia (Lillian Gish), que parece ser indefesa para defendê-las contra um assassino tão obstinado. Porém, ela é tão inflexível quanto sua fé.



Mensageiro do Diabo é marcado por imagens indeléveis: Willa Harper morta ao volante de um carro no fundo do rio; a lâmpada da rua que projeta uma sobra aterrorizante de Robert Mitchum com chapéu no quarto onde estão as crianças; o Reverendo parado diante da casa de Willa lembrando a célebre cena do padre parado sob a iluminação da rua no filme O Exorcista; a magistral sequência da fuga das crianças de barco pelo rio usando primeiros planos de sapos ou teias de aranha como se observassem tudo para sublinhar a atmosfera de contos de fadas entre outras sequências memoráveis.

Robert Mitchum, ao lado de Humphrey Bogart, sempre foi um ator notável em filmes policiais noir. Em Mensageiro do Diabo, Mitchum dá o tom certo de cinismo e crueldade necessárias para o personagem do Reverendo. 

Trazida para Hollywood por uma geração de cineastas que fugiram da guerra e do nazismo (Fritz Lang, Billy Wilder, Robert Siodmak, por exemplo) a estética expressionista da vanguarda artística europeia se converteu na estética do film noir. Ou mais do que isso, um senso de fatalismo e da denúncia de injustiças ao mostrar protagonistas arruinados e pessoas comuns oprimidas.



Esse senso crítico trouxe para o Novo Mundo a desconfiança, niilismo e paranoia numa América pujante e vitoriosa. Somente essa tradição underground noir permitiria esse olhar de alerta para o germe da hipocrisia do fundamentalismo religioso dentro da sociedade norte-americana – e que nesse século espalha-se através de uma rede de extrema-direita política global.

Porém, apesar de tudo e em última instância, Mensageiro do Diabo é um produto hollywoodiano de entretenimento. Sua narrativa é o maniqueísmo clássico da luta do Bem contra o Mal – o filme abre com uma interpretação da passagem bíblica sobre o alerta para falsos profetas. Que, no caso, é o Reverendo psicopata.

O filme termina com o clássico retorno da harmonia no clichê clássico de quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem. A indômita temente a Deus enfrenta corajosamente a invasão em sua residência do possesso Harry Powell querendo colocar a mão no casal de crianças que conhece o local em que o dinheiro está escondido.



Mensageiro do Diabo é um dos filmes precursores daquilo que se tornou um subgênero em thriller e comédia: os dramas de invasão do lar como Esqueceram de Mim ou Cabo do Medo – o Mal que invade o lar e a luta da família para manter-se unida.

  A crente derrota o falso profeta (que termina ameaçado de ser linchado pela multidão, enquanto a polícia o leva para a prisão) e tudo termina com uma espécie de reconfortante cartão postal de Natal. Ela junto com seus filhos adotados trocando presentes e a lição final de moral dita para a câmera: “as crianças obedecem e resistem!”. 


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Mensageiro do Diabo

Diretor:  Charles Laughton

Roteiro:  Davis Grubb, James Agee, Charles Laughton

Elenco: Robert Mitchun, Shelley Winters, Lillian Gish, Billy Chapin

Produção: Paul Gregory Productions

Distribuição: Amazon Prime Video, United Artists

Ano: 1955

País: EUA

 

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