quarta-feira, junho 16, 2021

A PsyOp militar que a crítica brasileira não entendeu no filme "Nova Ordem"



A crítica especializada brasileira simplesmente não entendeu o filme mexicano “Nova Ordem” (Nuevo Orden, 2020, disponível na Amazon Prime Video) de Michel Franco. Será que o filme descreve uma revolução? Um golpe militar? Algum fenômeno distópico como em “Uma Noite de Crime”? “Um filme que não decide qual discurso seguir”, sentencia a crítica. Ambientado em um futuro próximo, no México, vemos uma sociedade com divisões profundas entre classes sociais que, em questão de minutos, vai da ordem ao caos: a Cidade do México é sacudida por saques, violência e mortes onde massas de miseráveis invadem os bairros de elite para matar e roubar. O problema para a crítica é que Michel Franco descreve de forma seca e brutal não um golpe militar latino-americano clássico (quarteladas clichês no cinema, com generais ao estilo sargento Garcia, de “Zorro”), mas uma PsyOp militar operada como guerra híbrida que explora o demasiado humano: ódio, ressentimento e revolta. Qualquer semelhança com o Brasil NÃO é mera coincidência. 

Como sempre, a crítica especializada brasileira não entendeu nada. O filme Nova Ordem (Nuevo Orden, 2020), do diretor mexicano Michel Franco, ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de 2020. E, não por acaso, abriu a Mostra de Cinema de São Paulo 2020 em sessão com ingressos esgotados.

Porém, enquanto a crítica internacional viu em Nova Ordem a confirmação de uma tendência recente da temática da luta de classes cada vez mais ocupar as telas (O Expresso do Amanhã, Parasita, Bacurau, Os Miseráveis, Coringa etc.), no Brasil a crítica ficou no ar: “um filme que não decide por qual discurso seguir”, “exibicionismo”, “carnificina desenfreada”, “incoerente para ser avaliado pelo seu propósito inicial” (?), “tudo é desenvolvido de forma artificial”, e por aí vai.

Ambientado em um futuro próximo no México (um país atualmente arrasado pela violência do narcotráfico ocupando os espaços de um Estado ausente e desastre econômico após anos de políticas econômicas neoliberais), uma sociedade com divisões profundas e obscenas de classes sociais que, em questão de minutos, vai da ordem ao caos: a Cidade do México é sacudida por saques, violência e mortes onde massas de miseráveis invadem os bairros de elite para matar e roubar.

Os militares aparecem em cena aparentemente para tentar reestabelecer a ordem. Mas tudo indica que eles querem mesmo impor uma “nova ordem”: são corruptos e oportunistas, mais interessados em prender membros sequestráveis de famílias ricas para chantagear e exigir altas somas de resgate. E, claro, impor impiedosos toques de recolher para uma população que, prisioneira nas suas próprias casas, percebem aos poucos que a “nova ordem” não foi um bom negócio para ela.

O filme começa na bolha aparentemente segura de uma festa de casamento com toda pompa e riqueza, cujos presentes em dinheiro são guardados no cofre do closet da anfitriã. Todos estão alegres e indiferentes, enquanto no entorno daquele bairro de elite fortemente, guardado por seguranças privados, começam os primeiros sinais do caos e anarquia.

Será que estamos diante de um golpe militar latino-americano clássico, como tantos outros que foram mostrados pelo cinema? – Bananas (1971), The Battle of Chile (1975), Missing (1982), O Beijo da Mulher Aranha(1985), Luar Sobre Parador (1988), A Casa dos Espíritos (1993), O Dia que Durou 21 Anos (2013) entre outros. Filmes que descrevem o golpe militar old fashion: generais que lembram o sargento Garcia, de Zorro, como vilões que colocam milicos, tanques de guerra e artilharia pesada nas ruas para reprimir enquanto torturam e matam opositores políticos.



O que talvez deixou a crítica brasileira no ar com o filme Nova Ordem é que Michel Franco é duro, seco, implacável, no qual todos os sinais parecem estar trocados – não estão definidas as fronteiras entre “mocinhos” e “vilões”, “milicos” e “civis”: uma trama tensa e intensa que mostra uma revolução se transformando em inesperadas viradas. O que começa como uma revolução aparentemente popular vai ganhando ares de alguma outra coisa: uma estranha arquitetura dentro do caos, um terrorismo planejado e calculado por mentes militares. Por generais que não mais seguem o estereótipo de um sargento Garcia ou do general representado por Richard Dreyfuss em Luar Sobre Parador.

Na verdade Michel Franco mostra um golpe militar do século XXI. Aquele que não é televisionado porque é híbrido: as câmeras mostram apenas aquilo que é mais espetacular: uma “revolução popular” implacável, com alusões a Parasita de Bong Joon-ho e a franquia Um Noite de Crime (Purge).

Porém, articulada por uma estratégia militar híbrida: a engenharia do caos como PsyOp.




O Filme

O filme abre com imagens fragmentadas de um hospital com feridos, pessoas mortas amontoadas e em plano detalhe uma estranha água esverdeada que desce por escadas. São imagens que preparam o espectador para o que está por vir.

Depois somos levados para uma luxuosa festa de casamento de Marianne (Naian Gonzalez Norvind) e Alan (Dario Yazbek Bernal) numa grande casa de uma rica família mexicana. Logo percebemos o contraste entre essa elite branca com sobrenomes de origem europeia e empregados, seguranças e garçons com traços étnicos dos povos originários do país.

E, também, percebemos que eles serão os últimos a notar algo disruptivo que está para acontecer – representado pela água verde que de repente escorre da torneira de uma das suítes da mansão.

No meio do casamento, Rolando (Eligio Melendez), ex-empregado que trabalhou naquela mansão por anos, vem pedir dinheiro para uma cirurgia emergencial para sua esposa. Mesmo que a quantia seja pequena para aqueles milionários, todos estão mais preocupados apenas com a festança. Esquecem de Rolando. 

Menos Marianne, que decide abandonar a festa para segui-lo para lhe dar o dinheiro que precisa. Mas encontra o pior: se vê nas ruas no meio de um violento levante popular, enquanto a festa que deixou é invadida, muitos são baleados e mortos de forma impiedosa no meio do saque de bens valiosos e comida. 




 Cada vez mais Nova Ordem mergulha no caos e no horror num ritmo frenético sem o roteiro nos deixar a par do que realmente está acontecendo: é uma revolução? Um golpe militar? Algum fenômeno distópico como em Uma Noite de Crime? Ou uma anomia pura e simples?

A PsyOp do Caos Administrado – Alerta de Spoilers à frente

O mergulho definitivo no horror gore começa quando Marianne tenta voltar para casa, mas ela é sequestrada por militares que impuseram lei marcial. É levada para um campo de concentração onde estão outros sequestrados de famílias ricas para serem exigidos resgates milionários. E lá conhecerá o pior da natureza humana corrompida numa situação de total anulação da sociabilidade e empatia.

Quando então nos damos conta que os militares não entraram em cena para reestabelecer a ordem, mas para criar uma “Nova Ordem”. Começamos a intuir que o povão foi incitado a ir para as ruas como bucha de canhão para alguma estratégia mais ampla.




 Numa leitura superficial do filme, parece que Michel Franco quer de repente transformar os ricos indiferentes e vilões em vítimas da selvageria militar e da incivilidade do populacho.

Mas a “Nova Ordem” vai muito mais além do que os aspectos de horror gore que se sucedem num ritmo de perder a respiração. Logo descobriremos que há uma ordem mais ampla e invisível que está operando por trás de tudo: o caos administrado de uma guerra híbrida. Assim descreve o jornalista Andre Korybko, autor do livro “Guerra Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes”, o conceito de caos administrado:

O estudo detalhado da sociedade de um estado-alvo e das tendências gerais da natureza humana (auxiliado por pesquisas antropológicas, sociológicas, psicológicas e outras) permite construir um quadro de como é o funcionamento “natural” daquela sociedade. Armados com esse conhecimento, os praticantes da Guerra Híbrida podem prever com precisão quais “botões apertar” por meio de provocações para obter respostas esperadas de seus alvos, tudo com a intenção de perturbar o status quo por processos locais de desestabilização manipulados por forças externas. Podem ser conflitos étnicos, movimentos de protesto (“Revoluções Coloridas”) ou a exacerbação de rivalidades regionais. O ponto principal é produzir o maior efeito com o mínimo de esforço e, então, explorar a evolução dos acontecimentos e a incerteza crescente a fim de realizar os planos políticos (clique aqui).

No final de toda a barbárie, percebemos que tudo foi perpetrado por soldados com baixas patentes. Na verdade, facções militares que no meio do caos se transformaram em organizações milicianas que estão loteando a Cidade do México. Somente nas sequências finais vemos entrarem em cena generais ao lado dos bilionários que sobreviveram ao caos.




Juntos, assistem à punição pública dos soldados que subverteram a hierarquia e praticaram sequestros e pedágios nas ruas. Todos fuzilados e enforcados diante de generais e membros da elite branca mexicana.

O final é emblemático, menos para a crítica que ainda insiste em pensar o tema dentro do imaginário dos golpes militares latino-americanos de antigamente: assistimos a 84 minutos de resultados de uma operação psicológica militar que, como destaca Korybko, “apertou o botão” do ressentimento e do ódio de uma sociedade profundamente dividida pela injustiça e concentração de riquezas.

Se no passado, a formação filosófica positivista (Augusto Conte) dos militares era “Ordem e Progresso”, hoje é totalmente diferente: seria “Caos e Conquista” – como provocar e administrar secretamente uma situação de caos para, ao final, a elite militar aparecer para a nação como a salvadora. Ganhando hegemonia política e força de intervenção. É o golpe militar híbrido, nunca televisionado porque encoberto por instituições que, no final, parecem funcionar.

Pelo paradigma das operações psicológicas, o campo de atuação militar deixa de ser o cenário clássico de guerra campal, para ser o das operações naquilo chamam de “terreno humano” – pontos fracos e feridas abertas ou não cicatrizadas da sociabilidade. O humano, demasiado humano.

Dessa maneira, Nova Ordem é muito mais do que um filme distópico: ele é hipo-utópico - “Hipo” no sentido de “insuficiência”, “posição inferior” + “topia” do grego “topus”, “lugar”. Paradoxalmente, um filme ambientando em futuro próximo que se ressente de uma, por assim dizer, ausência de futuro: reflete mais as mazelas do presente e as projetam de forma hiperbólica em futuros distantes ou próximos. Na verdade, o futuro não existe, ele é apenas uma projeção hiperbólica do presente.

De forma hiperbólica, o diretor Michel Franco projeta num futuro próximo o presente latino-americano: as intensas operações psicológicas das guerras híbridas no continente nos últimos anos. 

Com militares e policiais milicianos e Exército aparecendo no final como salvadores da nação, qualquer semelhança de Nova Ordem com a realidade brasileira NÃO será mera coincidência.  


 

Ficha Técnica 

Título: Nova Ordem

Diretor: Michel Franco

Roteiro: Michel Franco

Elenco: Naian González Norvind, Fernando Cautle, Diego Boneta, Dario Yazbek Bernal

Produção: Les Films d’Ici, Teorema Films

Distribuição:  Amazon Prime Video

Ano: 2020

País: México/França

 

 

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