quinta-feira, novembro 14, 2019

O que Roland Barthes diria sobre Lula versus Bolsonaro?


Dentro da guerra simbólica, a libertação de Lula foi semioticamente perfeita: refez de maneira inversa o trajeto que o levou à prisão do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo a Curitiba no ano passado. Mas enquanto Lula falava para os convertidos, a grande mídia começou a contra-atacar para a maioria silenciosa, no seu habitual modo alarme: analistas começaram a alertar para os perigos da “radicalização” e “polarização” que representa a volta de Lula ao jogo. Está no início a criação de uma cilada simbólica que o semiólogo francês Roland Barthes chamava de “mitologia da crítica Nem-nem” ou “ninismo”. Colocar Bolsonaro e Lula num mecanismo de dupla exclusão – reduzir a realidade histórica a uma polaridade simples, quantificar o qualitativo em uma dualidade e equilibrar um com o outro, de modo a rejeitar os dois. Qualificar ambos através de palavras com culpabilidade prévia. Mas também está em início uma revolução semântica nos telejornais para despolitizar a política, preparando a chegada da conclusão do silogismo “Nem-nem”, depois que as premissas Bolsonaro e Lula mutuamente se excluírem: o paradigma Luciano Huck.

Lula está livre. Não sem antes o presidente do STF, Dias Toffoli, entrar na saia justa do voto de Minerva, dando a ressalva de que o Congresso Nacional poderia voltar a deliberar sobre o assunto (prisão em condenação de segunda instância) sem ofender a Constituição... Será que Lula poderá voltar para a prisão? 
Toffoli propositalmente deixou em suspense para incendiar a imaginação das camisetas verde-amarelas.
Quando foi preso no ano passado, este humilde blogueiro argumentou que a entrega de Lula aos cárceres de Curitiba foi sob um preço semiótico muito baixo para seus algozes: ao invés de se valer da estratégia do empate (encastelar-se no sindicato dos Metalúrgicos do ABC e vender sua inevitável prisão a um custo simbólico muito alto), Lula se entregou não só para a PF, mas também para a grade horária da Globo cujo ápice foi a decolagem do prisioneiro em Congonhas para Curitiba, em pleno no Jornal Nacional. Com um Chico Pinheiros com a voz embargada dando a notícia em rede nacional – clique aqui.
Mas dessa vez, o seu retorno foi semioticamente perfeito: refez, de trás para frente, o caminho que o levou à prisão em 07/04/2018 – saiu caminhando do prédio da PF de Curitiba, fez um discurso na Vigília Lula Livre e (não existe coincidência em política) voltou para São Paulo em um jato de propriedade de Luciano Huck e que pertence à frota da Icon Taxi Aéreo. 
Huck já é incensado como um dos candidatos à presidência para 2022, criando outra saia justa, dessa vez para o apresentador – Huck teve que fazer uma ginástica retórica para se explicar nas redes sociais que nada tinha a ver com a “gentileza”.

O gancho semiótico do helicóptero

Em São Bernardo, Lula escolheu fazer seu primeiro discurso oficial em frente ao Sindicato, num palanque, num mesmo sábado igual ao do ano passado, diante de uma massa inflamada naquela mesma rua estreita. 


Um helicóptero da Globo sobrevoava o local, e Lula aproveitou o momento para aproveitar o gancho semiótico e produzir uma alegoria: a da poderosa emissora monopolista que sobrevoa “para falar merda de novo do Lula”.
Depois, foi levado pelos braços do povo. Dessa vez, para dentro do Sindicato, o mesmo de onde saiu para a prisão em 2018.
Até aqui tudo bem. Um discurso para a militância. 
A questão é que enquanto Lula falava para convertidos, a grande mídia já bombardeava para a maioria silenciosa uma narrativa da qual tirasse algum proveito simbólico depois da invertida que tomou do STF: “Lula livre representa um risco, porque o País não precisa de radicalizações e polarizações, justamente nesse momento em que as reformas farão a economia crescer e o emprego voltar...”, começou a entabular em quase uníssono colunistas, analistas e “informações de pauta” dos telejornais.
 O discurso de reposicionamento da grande mídia ficou cristalizado no quadro do Fantástico “Isso a Globo Não Mostra” desse último domingo: “Afinal, de que lado ela está?”, perguntava a atriz Lilia Cabral depois de serem mostradas imagens de arquivo de Bolsonaro e Lula atacando a Globo, exibindo no mesmo segmento o personagem de Marcelo Adnet “militante revoltado”, um histérico e estereotipado esquerdista sempre acusando a emissora de manipuladora.

A mitologia “Nem-nem”

Se estivesse vivo, o semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980) certamente encontraria nessa estratégia semiótica midiática uma confirmação de uma mitologia retórica que ele próprio definiu como “crítica Nem-nem” ou simplesmente “ninismo”.


Em seu célebre livro Mitologias de 1957 o pesquisador francês empreendeu uma verdadeira engenharia reversa da retórica dos meios de comunicação de massa, cristalizada no que chamou de “mitologias”- forma de fala que não nega uma realidade, mas a torna inocente, despolitizada, ao esconder as conotações (as saturações ou canastrice das significações) dando-lhes um significado natural, eterno, imobilizando o mundo ao retirar dele a História e a contingência.
A crítica nem-nem decorre de um mecanismo de dupla exclusão – reduz a realidade histórica a uma polaridade simples, quantifica o qualitativo em uma dualidade e equilibra um com o outro, de modo a rejeitar os dois. 
Segundo Barthes, é a Justiça como uma operação de pesagem. E a balança só pode confrontar o mesmo com o mesmo. De uma maneira mágica, foge-se de uma realidade intolerável (porque múltipla, contingencial, histórica), reduzindo-a a dois contrários para depois serem pesados e rejeitados.
No campo semiótico da sociedade, nesse momento a grande mídia tenta agendar essa mitologia (no sentido dado por Barthes) “Nem-Nem” sob o termo “polarização”. E como em toda construção de um discurso mitológico, o propósito é exorcizar da cena pública de debates a História e a contingência.
Mas não apenas isso. A retórica do “nem-nem” busca na verdade excluir os contrários para tentar mostrar que ambos são iguais e simétricos na suposta radicalidade, e que a única solução é o “bom senso” – mito burguês no qual se baseia a forma moderna de liberalismo. A Justiça como uma operação de pesagem. 

Dissimular a contingência histórica

Mas qual contingência histórica está sendo dissimulada nesse bom senso promovido pela mitologia do ninismo? Quem dá a pista é o cientista político Vitor Marchetti, professor da Universidade Federal do ABC:
A gente não vive uma polarização efetivamente, mas vive de um lado um projeto político que se coloca e que tem muita dificuldade em conviver com o ambiente democrático e todos os protocolos que o sistema democrático pressupõe”, afirma Marchetti. “Na realidade, a radicalização que existe hoje no país nem é consequência da polarização, mas da existência de um grupo político que é um grupo de direita que chegou ao Palácio do Planalto e não pactua com as regras democráticas. Ou seja, a polarização não é o problema, mas a radicalização da existência desse grupo que não pactua com as regras da democracia. (Rede Brasil Atual – clique aqui).
Para a grande mídia a guerra híbrida brasileira (na qual mergulhou de cabeça como verdadeiro partido de oposição) trouxe duas consequências inesperadas: primeiro, a perda do controle do jogo da polarização que ela própria incitou – a polarização PT-PSDB, desde o momento que Aécio Neves não aceitou a derrota em 2014 e o PSDB questionou os resultados e a confiabilidade das urnas. 


Convertida em partido de oposição, a grande mídia açodou todo submundo do “Brasil Profundo” (ódio, racismo, preconceito etc.) que encontrou a sua expressão política perfeita no atual governo miliciano de extrema-direita. Perdido o controle, ao jornalismo corporativo passou a semioticamente naturalizar um governo que, afinal, punha em prática a agenda neoliberal defendido pela banca e mídia rentista.
E segundo, a volta de Lula ao jogo político. Sem mais o que fazer a respeito (porque sabem  que, com base nos elementos objetivos do direito brasileiro – princípio de anterioridade, prescrição etc. – Lula jamais será preso outra vez, clique aqui), incontinente a mídia corporativa colocou em ação a retórica do “ninismo”. Para quê? Para reavivar a alternativa do “bom moço”, o apresentador global Luciano Huck.
Contando com organizações como o “Agora!” (oferecendo suporte técnico e intelectual ao apresentador) e o “Renova BR” (fábrica de políticos que oferece bolsa e educação para novatos que queiram migrar para a carreira política), Huck lustra a sua imagem de Playboy para reinventar-se: “a chance de conhecer um Brasil profundo, diferente daquele que a gente conhecia”, usando o alcance de uma emissora de rede nacional para “inspirar as pessoas”, festejou no balanço das mil edições do “Caldeirão do Huck”. Numa explícita campanha eleitoral. 
Aliás, desde a redemocratização política, nunca especulações eleitorais começaram tão cedo. 
A mitologia do Nem-Nem precisa esconder uma contingência histórica bem específica: Bolsonaro só está no poder para colocar em prática a agenda de neoliberal que dá a licença para cassar direitos sociais. 
Por isso, nas últimas semanas acompanhamos no jornalismo corporativo a tentativa de descolar (inclusive espacialmente, na escalada das notícias dos telejornais e cadernos dos jornalões) a figura de Bolsonaro da de Paulo Guedes – enquanto Bolsonaro está às voltas com o assassinato de Marielle, milicianos e crise no PSL, Guedes está negociando as Reformas com o Congresso e o presidente da Câmara Rodrigo Maia. Que repentinamente ganhou ares de racionalidade iluminista.


 Dessa forma, na balança da Justiça da mitologia do Nem-nem, tanto Bolsonaro quanto Lula são referenciados com palavras que já carregam culpabilidade prévia. Bolsonaro: milicianos, assassinato, misoginia, intolerância, preconceito etc.; Lula: PT, partido, militância, sindicato, política etc. E o que os torna iguais, a ponto de poderem ser pesados? – porque a balança só pode confrontar o mesmo com o mesmo: radicalismo e críticas à TV Globo os uniria. 
E Marcelo Adnet dá o auxílio luxuoso com o seu personagem “O Militante Revoltado”, como já havia dado uma mão à guerra criptografada do clã Bolsonaro com o vídeo “A Vila Militar do Chaves” – sobre esse conceito, clique aqui.

Paradigma Huck e a revolução semântica

Mas para que Luciano Huck seja a conclusão do silogismo do Nem-nem (a conclusão resultante da anulação das premissas anteriores por mútua exclusão), é necessária uma revolução semântica: a substituição daqueles termos que carregam culpabilidade prévia por palavras isentas, porque sob a aparência de “tecnicidade”. Mas que na verdade é um mecanismo maroto de despolitização.


O linguajar dos telejornais já está iniciando essa revolução semiótica: problemas sociais e desigualdade são “desafios”; iniciativas para o combate a essas mazelas são “boas práticas” ou “soluções” avaliados por critérios como “eficiência” ou “produtividade”. E seus idealizadores são figurados como alguma coisa entre o “empreendedorismo” e o “ativismo social” – militância, ideologia e Estado são termos proibidos.
Nas últimas eleições, o candidato João Amoêdo (do NOVO) foi uma mera caricatura, na qual mais parecia um candidato a CEO em uma corporação do que postulante à presidência.
Huck é a versão light do CEO neoliberal, um versão populista-midiática – o apresentador vive rodando o País no seu “Caldeirão do Huck” para mostrar “boas práticas”  e “soluções”.
A grande mídia agora fala muito sobre os perigos da polarização e radicalização. Mas quem partirá para a radicalização (dessa vez semiótica) será a própria mídia: transformar Bolsonaro e Lula em signos intransitivos. Isto é, com valores puramente distintivos (um excluindo o outro), definido não positivamente pelo conteúdo ideológico de cada um, mas negativamente por suas relações de exclusão nessa armadilha do ninismo.
E como Lula e as esquerdas poderão escapar dessa cilada semiótica, cujo conclusão desse silogismo deverá ser Luciano Huck ou qualquer outro personagem equivalente?
Pensando junto com o semiólogo francês Roland Barthes, Lula deverá buscar a transitividade, a relação natural entre significante e significado. Qual seja: a repolitização do debate e o discurso político econômico. 
Não é Bolsonaro versus Lula, mas Desemprego versus Lula, Arrocho versus Lula, Neoliberalismo versus Lula e assim por diante.
Fugir da guerra cultural à qual propositalmente Bolsonaro convoca: guerra à Globo, aos globalistas, às causas identitárias, o politicamente correto etc. Isso faz parte da guerra criptografada de informações contraditórias, diversionistas. 
Fora da mitologia da crítica Nem-nem Bolsonaro e Huck tornam-se idênticos: produtos midiáticos com a função estratégica diversionista da despolitização e dissimulação do núcleo duro da agenda neoliberal: o saco de maldades de socializar os prejuízos e privatizar os lucros no setor financeiro.  

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