O poder financeiro e tecnológico
da indústria cinematográfica norte-americana parece ter uma relação direta com
a escala de destruição exibida em seus filmes: de catástrofes em proporções
planetárias a micro-desastres cotidianos como perseguições seguidas de
explosões e choques de automóveis, destruição de bens e descartabilidade de
objetos. Em um pequeno insight solto em uma frase do livro clássico “Monopoly
Capital” de 1966 os economistas Paul A. Baran e Paul M. Sweezy sugerem uma conexão
entre essa verdadeira cultura da destruição fílmica e a chamada obsolescência
planejada, estratégia dos oligopólios e monopólios de propositalmente fabricar
e distribuir produtos que em pouco tempo ficarão obsoletos ou não-funcionais,
forçando o consumidor a adquirir uma nova geração de produtos evitando, assim,
a estagnação dos mercados. Poderiam as destruições em série no cinema ser a
proto-narrativa que naturaliza e torna aceitável essa descartabilidade
generalizada de bens? Ou seria apenas a expressão de um “espírito de época”?
Em uma curtíssima passagem que
mais parece um insight inserido no final de uma frase, os economistas Paul
Baran e Paul Sweezy no livro “O Capitalismo Monopolista” fazem uma surpreendente
conexão entre a necessidade de o capital criar obsolescência e descartabilidade
dos produtos nos seus esforços por vendas e a obsessão do cinema
norte-americano em explorar o tema da destruição generalizada em muito dos seus
filmes. Os autores jogam no ar a sugestão de um interessante sincronismo entre
um fato econômico e a verdadeira cultura da destruição que marca os filmes
norte-americanos: filmes-catástrofes, perseguições que terminam em colisões e
explosões, incêndios, desmoronamentos, monstros ou aliens que destroem cidades,
sinistros de todas as espécies que levam a destruição de bens e propriedades em
larga escala etc.
Cenas de destruição ou
descartabilidade generalizada de bens como roupas e automóveis são inseridas em
narrativas dos mais diversos gêneros cinematográficos desde formas explícitas
(os filmes-catástrofes sobre o fim do mundo) ou formas mais sutis: para onde
vão as roupas “civis” do homem-aranha e do super-homem após as suas
transformações em becos e cabinas telefônicas? Não importa o gênero de filme:
sempre estará lá uma cena de colisão de automóveis, um incêndio, a
descartabilidade ou perda de objetos ou bens como automóveis, roupas e casas
que parecem não incomodar muito os personagens. Tudo parece que poderá ser
reposto ou reconstruído rapidamente.
A destruição generalizada no cinema seria a expressão de categorias de pensamento mais gerais da sociedade? |
Poderia essa conexão sugerida en passant por Baran e Sweezy significar
uma estratégia subliminar do cinema em naturalizar a obsolescência ou
descartabilidade, marca, segundo eles, do capitalismo monopolista? Ou
simplesmente o cinema seria uma expressão de categorias de pensamentos mais
gerais criadas por imposições de um modo de produção determinado?
A hipótese desse sincronismo
ainda ganha força com a afirmação do historiador Marc Ferro de que todo filme é um documento porque
representaria o imaginário de uma determinada sociedade ou período histórico: "o imaginário é tanto história quanto História,
mas o cinema, especialmente o cinema de ficção, abre um excelente
caminho em direção aos campos da história psicossocial nunca atingidos pela
análise dos documentos" (FERRO, Marc. Cinema e História.São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.12).
Acumulação e destruição
Para
Baran e Sweezy historicamente o capitalismo evoluiu de uma economia de livre
concorrência para a grande concentração de produção e capital em oligopólios e
monopólios. Com a articulação em cartéis, abertos ou
camuflados, as corporações passam a atuar em relativa sintonia, combinando preços,
repartindo entre si os mercados, estabelecendo o grau de expansão e de inovação
dos produtos em seu campo de ação, combatendo empresas não associadas e
impedindo o surgimento de concorrentes.
O resultado foi uma crescente acumulação de
excedente que o sistema econômico não consegue absorver por limitações naturais
(recursos naturais) ou limitação física de mercado. Isso levaria a um quadro de
estagnação, desvalorização do capital e crises cíclicas. Guerras com seus
investimentos militares e multinacionais que investem seus excedentes no
terceiro mundo tornam-se soluções para contornar ou adiar conjunturas de
estagnação econômica.
A inovação tecnológica seria parte da estratégia de obsolescência planejada dos monopólios |
Contrariando Joseph Schumpeter (1883-1950) e
sua ideia de “destruição criadora” (a inovação tecnológica contínua desmentiria
a teoria do monopólio, pois acabaria na realidade acirrando a concorrência,
destruindo empresas velhas e criando novos modelos de negócios), Baran e Sweezy
demonstraram que chamada inovação tecnológica nada mais seria do que parte dos
esforços de vendas dos monopólios: obsolescência e descartabilidade forçada de
produtos que já vêm ao mundo com data de validade tecnológica pré-estabelecida.
São conhecidas as origens disso como revela o
documentário “A História Secreta da Obsolescência Planejada” (Espanha, 2011 - veja o vídeo abaixo)
que mostra como, na década de 1920, um cartel de fabricantes de lâmpadas
decidiu que elas não deveriam durar mais do que mil horas. Naquela época boa
parte das lâmpadas duravam até 2,5 mil horas.
Cinema e destruição
“Adoro coisas que explodem. Não
posso evita-las. Alguma coisa sobre pegar a via rápida para a entropia faz com
que a parte principal do meu cérebro solte um grunhido e minha boca fique
aberta de deleite. Culpem os Thunderbirds”, confessa um participante de um
fórum sobre cinema catástrofe (“The
Best Explosions Scenes of Destruction in Movie History” e que ainda ironicamente
coloca a culpa na antiga série televisava estrelada por fantoches, “Salvamento
Internacional”, com seus foguetes Thunderbirds que destruíam ilhas inteiras.
Esse fascínio mostraria uma
conexão entre a cultura da destruição do cinema norte-americano e a
naturalização da obsolescência dos produtos através da ideologia da
descartabilidade? Se estudarmos a história do cinema veremos uma grande
coincidência entre o surgimento dessa estratégia dos monopólios no final da década
de 1920 e o surgimento da destruição como tema generalizado no cinema.
"King Kong" (1933): o tema da perseguição transforma-se em destruição |
Os filmes de perseguição foram o
primeiro gênero cinematográfico popular iniciado com “O Grande Roubo do Trem”
(The Great Train Robbery, 1903) com perseguições a cavalo e tiroteio final. O
tema da perseguição marcará o filme slapstick
de Chaplin, Gordo e o Magro, Harold Loyd etc. onde sempre o protagonista está
às voltas com perseguições, quase sempre fugindo da polícia, de valentões ou
por ser confundido com outra pessoa. Nesse período as perseguições
necessariamente não implicam em destruições massivas de bens, instalações ou
prédios.
“King Kong” de 1933 parece ser o
momento em que o tema da perseguição se transformará em destruição para depois
ser sucedido por uma longa lista que estabelecerá uma verdadeira cultura da
destruição por meio de monstros, catástrofes astronômicas, aliens, desastres
naturais que irão se diluir em micro-destruições no cotidiano dentro de
narrativas nos gêneros policiais, drama, suspense, terror etc.: incêndios,
acidentes automobilísticos, depredações, enchentes, tufões, etc.
Isso fica mais evidente nos trailers promocionais dos filmes
onde as principais cenas barulhentas de destruição são condensadas em poucos
segundos para criar o principal efeito nas audiências: o “teaser”, a
provocação, a excitação. O trailer é o produto sintético onde convergem arte,
cinema e função econômica da Publicidade: o filme torna-se tão descartável
quanto a obsolescência cotidiana incentivada ou expressa pela cultura da
destruição.
Por que Nova York?
Mas por que desde o filme “King
Kong” Nova York é tornou-se o principal alvo dessa cultura da destruição no
cinema? Terremotos, fogo, enchente, meteoro, cometa, era glacial, fantasmas,
bomba atômica, terrorismo, macacos, dinossauros, lobos, raios lançados de
espaçonaves, foguetes disparados de zepppelins – por que nos fascinamos pela
destruição dessa cidade?
O apocalipse em Nova York representado pela revista de sci fi "Amazing Stories"na década de 1920 |
A proto-narrativa da ideologia
americana funcionaria sob duas chaves diferentes e ao mesmo tempo harmônicas:
uma é sombria, com alarmes e avisos que ensinariam lições morais misturadas com
argumentos políticos; a outra é a celebração e o entretenimento.
Outra explicação é sugerida por Sewell Chan no
artigo “The Irresistible Urge to Destroy
New York on Screen”. Chan afirma que Nova
York seria o símbolo de uma era do capitalismo que requeria a concentração de
capital – e, por isso de pessoas – em um grande sistema de fábricas e
escritórios, representado pela sua verticalização em uma magnitude que parece sufocada
sob seu próprio excesso. Com a financeirização do capitalismo e a liquidez e
descentralização dos fluxos de negócios em um mercado global, o modelo urbano
de Nova York torna-se obsoleto, pesado e oneroso. Pronta para tornar-se imagerie da sua própria obsolescência.
Refletiria esse imaginário da
descartabilidade onde passado e futuro são depreciados para impor a excitação e
o deleite de um eterno presente de consumo.
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