quinta-feira, agosto 31, 2023

'The Sadness': zumbis e humanos entre a civilização e a barbárie


No cinema a mitologia zumbi passou por várias transformações: escravos de fazendeiros, símbolos do racismo, representação sanitária e viral do Mal etc. Mas seja qual for o roteiro, há um prazer catártico nesse subgênero: o prazer dos sobreviventes por poderem matarem zumbis como num jogo de tiro ao alvo. Afinal, eles são trôpegos e idiotas. Mas a produção taiwanesa “The Sadness” (Ku bei, 2021) inverte totalmente isso: dessa vez o prazer catártico é dos mortos-vivos. Uma praga viral toma conta da capital Taipé tornando os infectados monstros amorais que matam e estupram com um sorriso sádico no rosto. Como em todos os filmes sobre zumbis, “The Sadness” reflete a crise social ou econômica do momento (no caso, a pandemia global) e a própria condição humana, no limite entre civilização e barbárie.

A mitologia zumbi ascende ao cinema em 1932 com o filme White Zombie estrelado por Bela Lugosi sobre um colonialista branco no Haiti cuja usina de açúcar é operada por escravos zumbis. 

Esse mesmo plot associando zumbis e escravidão encontramos em I Walked With a Zombie (1943) onde mais uma vez encontramos um fazendeiro branco se apropriando das tradições vodu local para manter as pessoas sob controle na sua plantação. Há uma série de outros filmes com essa temática lançado em meados do século XX. Como Revolt of Zombies (1936) e King of Zombies (1941).

A guinada vem com o revolucionário The Night of Living Dead (1968) de George Romero. Nesse filme um protagonista negro tem que lidar com uma horda de zumbis brancos, refletindo os conflitos raciais nos EUA pelos direitos civis. 

Outra guinada na saga dos zumbis no cinema encontramos com o espanhol REC (2007): zumbis transformam-se em caso de vigilância sanitária e um edifício em Madrid é isolado por um cordão policial enquanto um sanitarista-exorcista entra para controlar o mal que se manifesta agora biologicamente.

Como não poderia deixar de ser, a pandemia global do coronavírus necessariamente teria que trazer alguma novidade dentro do universo dos mortos-vivos. E a guinada mais radical nessa mitologia no cinema também só poderia vir do Oriente – como sempre, através dos mangás e produções audiovisuais, simbolismos e mitologias ocidentais sempre ganharam ressignificações radicais através de gritantes gráficos coloridos retratando personagens vibrantes em narrativas frequentemente preenchidas por temas fantásticos e muito futurismo.  

Um exemplo é a maneira como o esoterismo ocidental é absorvida e reciclada pela cultura pop oriental – lendas medievais e temas clássicos do gnosticismo ganham novos contornos como em Ghost in the Shell e Neon Genesis Evangelion.

O horror inventivo de Taiwan The Sadness (Ku bei, 2021) mais uma vez transforma o problema zumbi numa crise sanitária – um vírus misterioso se propaga rapidamente sobre a capital Taipei superlotada, cheio de apartamentos abarrotados e vagões de metrô lotados.

Em sua superfície, o filme de Rob Jabbaz (cineasta canadense que trabalha em Taiwan) parece se assemelhar a qualquer filme sobre zumbis que sobrecarregam o cânone moderno desse subgênero.




A reviravolta de The Sadness é que não encontramos mortos-vivos como uma horda de famintos e adoecidos monstros trôpegos caindo aos pedaços. O que vemos são pessoas comuns em que, de repente, os olhos adquirem uma coloração negra e o comportamento torna-se sádico, livre de qualquer inibição – um vírus, chamado pela mídia de “Alvin”, retira dos infectados qualquer princípio de moralidade, fazendo com que eles persigam aqueles que ainda estão sadios, criando uma cadeia de assassinatos, morte, estupros em um frenesi violento e insaciável.

E como se o vírus suspendesse o superego dos infectados que começam a querer se vingar da civilização – começando pelas pessoas mais próximas contra as quais muitas vezes a fagulha do preconceito ou sexismo dá a partida para a violência. Uma nova espécie de morto-vivo que não vê a vítima como um alimento. Sua fome é o ódio contra a própria sociabilidade.

Como este Cinegnose já abordou em postagem anterior, a mitologia dos zumbis possui uma dupla dimensão: de um lado são sintomas de crises sociais e, do outro, possuem um momento de verdade ao fazer nos lembrar da condição humana nesse mundo.  

Apesar dessa ressignificação dos zumbis (a fome por violência que vem diretamente do próprio mal-estar da civilização), The Sadness mantém esse duplo significado da mitologia clássica dos mortos vivos.

O Filme

The Sadness, vagamente inspirado na série de quadrinhos Crossed de Garth Ennis, segue um jovem casal em Taiwan, Jim (Berant Zhu) e Kat (Regina Lei). 



Jim deixa Kat no trabalho poucas horas antes de um surto de zumbi explodir em Taipé. O caos que toma conta de tudo os deixa procurando um pelo outro. Mas esses infectados não são zumbis tradicionais. Jabbaz substitui por algo mais horrível: seu vírus altamente contagioso, que compartilha semelhanças com a raiva, faz com que as vítimas deem vazão aos seus impulsos mais sádicos. Eles não têm vergonha nem poder para se deter — e cedem aos seus impulsos horríveis com sorrisos largos e inabaláveis em seus rostos.

As ruas, vagões de metrô e salas de espera de hospitais são tomados pelo horror gore com diversas sequências de carne e sangue voando para a tela através de efeitos práticos realistas e criativos, muitas vezes com um toque gore retrô. Às vezes até ecoando cenas sádicas do filme clássico de Pasolini Saló ou os 120 Dias de Sodoma (1975).

Os efeitos práticos e próteses são excepcionais. As vítimas são mutiladas e dilaceradas de todas as maneiras, e cada morte parece única de sua própria maneira impressionante e nojenta. 

No início do filme, antes do caos começar, uma transmissão de notícias inclui um cientista reclamando sobre como as pessoas cada vez mais acreditam que a pandemia é uma farsa e como ninguém mais acredita em cientistas e na Ciência. 

Outro tema em The Sadness é a linha de continuidade entre sãos e contaminados. Por exemplo, enquanto Kat bate na cabeça de um dos zumbis — um homem que passou o filme inteiro tentando estuprá-la — ele grita que isso a torna igual a ele, aparentemente implicando que, em algum nível, quase todo mundo anseia pela chance de se envolver em violência extrema. 

O filme reforça isso quando um cientista que tentava encontrar a cura para o vírus Alvin, em sua última fala antes de morrer, menciona como foi bom ter matado bebês como cobaias em seus experimentos.



Jabbaz também passa parte do tempo de pré-infecção do filme com Kat enquanto ela é assediada em seu trajeto para casa, explorando brevemente o horror de mulheres sendo abordadas e ameaçadas na vida cotidiana. Seu assediador mais tarde se infecta e a persegue pela cidade. Mas a exploração da violência normal de gênero é rapidamente abandonada, e apenas alguns minutos depois, as pessoas estão sendo estupradas na rua por pessoas infectadas que sorriem e acenam para os transeuntes.

Todo mundo quer secretamente cometer atrocidades? Essa parece ser a mensagem que Jabbaz quer passar para o espectador com essa praga viral cujo efeito não é propriamente a morte do ego (a morte do indivíduo que passa a ser mais um anônimo em uma horda), mas a do superego. Transformando os infectados em monstros amorais. 

Mas The Sadness traz mais novidades: uma mudança na relação entre o pós-apocalipse e a epidemia zumbi. O que torna atraente os filmes sobre zumbis é que numa situação na qual a maioria da população foi transformada em monstro morto-vivo, os poucos sobreviventes podem livremente usar suas habilidades violentas manipulando toda sorte de armas, como fosse um senhor heroico em um mundo desértico.

Séries como Walking Dead exploram esse prazer mórbido – de repente, matar zumbis acaba virando um jogo ao estilo tiro ao alvo. Afinal, os zumbis são lentos, idiotas. Um prazer violento dos sobreviventes que acaba se voltando contra os próprios humanos na forma de divisões, traições etc.



Porém, em The Sadness esse prazer é suspenso, roubando do público a catarse. The Sadness mostra que é contra esse desejo de violência que devemos lutar. Porque parece que é isso que todos nós queremos, como revela essa catarse de base presente no pós-apocalipse zumbi.

Dessa maneira, o filme mantém esse duplo aspecto simbólico que estrutura esse subgênero: de um lado, é um reflexo de crises econômicas, políticas ou sociais de um determinado período (no caso, a crise da pandemia - sobre isso, clique aqui); e de outro, uma representação da condição humana nesse mundo: sempre andando na linha entre civilização e barbárie. 


  

Ficha Técnica

 

Título: The Sadness

Diretor: Rob Jabbaz

Roteiro:  Rob Jabbaz

Elenco:   Berant Zhu, Regina Lei, Ying-Ru Chen

Produção: Machi Xcelsior Studios

Distribuição: Shudder

Ano: 2021

País: Taiwan

   

 

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