sexta-feira, outubro 18, 2013

Ao sul do futuro no curta "Why Cybraceros?" e no filme "Distrito 9"


Matéria-prima do cinema de ficção científica, as especulações sobre o futuro estão desaparecendo. Em filmes como “Distrito 9” ou no curta “Why Cybraceros?” de Alex Rivera o futuro transformou-se em uma projeção hiperbólica do presente. Mundos utópicos ou distópicos que estariam esperando por nós no futuro são substituídos por hipo-utopias: a precarização do trabalho e dos direitos humanos e a sociedade transformada em um sistema estruturado em rede com uma interface digital contínua semelhante a um jogo que apagaria as tensões étnicas e raciais. É a chamada “ficção científica do Sul”, conjunto crescente de filmes produzidos nas margens de Hollywood e que vêm projetando no futuro próximo ou distante as mazelas do presente criadas pelas economias globalizadas. E que guarda muitos paralelos com a ideia de Zygmunt Bauman sobre "modernidade líquida".

O filme “Distrito 9” (2009) talvez seja a parte mais visível de uma tendência de filmes que alguns pesquisadores em cinema têm definido como “ficção científica do Sul”. O curta digital on-line “Why Cybraceros?” (1997) e “Sleep Dealer” (2008) do diretor Alex Rivera, por exemplo, seguem essa tendência de filmes em estilo mockmentary (filmes feitos em estilo documentário com tom paródico) e com características globais, seja pelos atores e empresas de produção de países considerados periféricos, ou pela temática ligada às mazelas da globalização sócio-econômica – imigrantes ilegais, xenofobia, racismo e intolerência.

São filmes de ficção científica onde a alta tecnologia (ícone característico do gênero) convive com favelas, deterioração urbana, precarização do trabalho e muito lixo que, muitas vezes, se confunde com seres humanos que necessitam ser controlados, confinados, descartados ou eliminados – imigrantes e estrangeiros humanos ou de outros planetas.

Se a principal característica do gênero é a especulação sobre mundos futuros utópicos ou distópicos, essa ficção científica “do Sul”, ao contrário, cria uma utopia que poderíamos chamar de “hipo”: Na Hipo-utopia o futuro tal qual previsto nas utopias científicas e tecnológicas modernistas não se realizou, nem nos seus aspectos positivos (utópicos) ou negativos (distópicos).  “Hipo” no sentido de “insuficiência”, “posição inferior” + “topia” do grego “topus”, “lugar”. “Distrito 9” e o curta “Cybraceros” são produções sci fi que, paradoxalmente, parecem se ressentir de ausência de futuro: refletem mais as mazelas do presente e as projetam de forma hiperbólica em futuros distantes ou próximos. Na verdade o futuro não existe, ele é apenas uma tela paródica ou cínica do presente.

“Why Cybraceros?”: o sonho americano high tech


O curta de Alex Rivera tem a forma de uma simulação de um vídeo promocional. Baseia-se em verdadeiro filme promocional da década de 1940, feito pelo Conselho de Agricultores da Califórnia, intitulado “Why Braceros?” – “braceros” era como se chamavam os peões ou mão de obra temporária mexicana. O filme era uma peça do chamado “Programa Bracero”, uma série de leis e iniciativas diplomáticas entre México e EUA para a contratação de mão de obra temporária para trabalho no campo. Ao longo do tempo, a iniciativa acabou gerando problemas de imigração ilegal e conflitos na fronteira entre os dois países.

                No curta, uma típica voz feminina de vídeos institucionais ou de sistemas de som de shoppings em of defende um Programa Bracero futurista em que apenas o trabalho seria importado pelos EUA: os trabalhadores seriam deixados em casa no México diante de telas de computadores com conexões de alta velocidade, munidos de joystick através do qual manipulam telematicamente robôs que selecionam as laranjas nas fazendas californianas.

                Cinicamente a narradora descreve que na Internet não há diferenças entre ricos e pobres e que no futuro todos trabalharão em casa, até mesmo os braceros. Uma reviravolta bizarra do sonho americano. Por muito tempo os EUA se beneficiaram dos baixos salários do trabalho de imigrantes, mas tiveram que pagar e conviver com o custo social – discriminação, violência, conflitos étnicos. A promessa do sonho americano sempre atraiu os mexicanos que, amargamente, descobriram o que estava por trás da utopia: discriminação e violência policial.


                Com o programa Cybracero todos se livrarão dos problemas. Sem compromisso, com baixo custo e sem cruzar a fronteira dos EUA, o cybracero é o imigrante perfeito, a cara high tech do sonho americano. E os consumidores norte-americanos consumirão produtos mais baratos e sem custo social. E o final do curta é ufanista: com o programa cybracero não haverá mais a ameaça de um trabalhador transformar-se em um cidadão o que significa “produtos de qualidade a um baixo custo financeiro e social para você, consumidor americano", enquanto vemos imagens de uma mulher branca loira em um supermercado moderno.

O curta “Why Cybraceros?” mostra cinicamente uma tecnologia que apaga o racismo, a exploração e a diferença de classes. Soluções técnicas para um “fardo antigo”.

Alex Rivera depois expandiu essa ideia no filme longa metragem “Sleep Dealer” (2008) onde o futuro nada mais é do que uma hipérbole dos problemas do presente trazidos pela aceleração das interconexões da globalização que propiciam a precarização do trabalho e o acirramento das diferenças de classe e de raças.

Distrito 9: o futuro é o apartheid do presente


                Dirigido pelo estreante Neil Blomkamp, a produção independente sul-africana é mais um exemplo dessa tendência da ficção científica “do Sul”: apartheid, racismo, precarização do trabalho e privatização. Uma nave perdida vinda do espaço estaciona sobre Joanesburgo e por lá fica 20 anos. Com o tempo os aliens ganham o apelido pejorativo de “camarões” e são confinados em um distrito, explorados pela máfia nigeriana e controlados por uma versão privatizada e policialesca da ONU, a MNU.

                Um futuro que projeta em alta tecnologia o racismo e preconceito do presente. No filme estão muitas das características perversas da globalização: precarização alimentar (os nigerianos vendem a um preço exorbitante comida de gato enlatada, apreciada pelos alienígenas), precarização do trabalho (a MNU é uma corporação cínica e hipócrita) e o tráfico de armas (tanto a máfia nigeriana como a MNU estão interessados no arsenal de armas da nave dos alienígenas).

                Tanto “Why Cybraceros” quanto “Distrito 9” utilizam a estética documental e realista. E para reforçar ainda mais o mix entre ficção e realidade, presente e futuro, o diretor Alex Rivera  idealizou um site satírico chamado “Sistema de Trabalho à Distância” (Market Driven Solutions for Today’s World Order – http://www.cybracero.com/) como fosse uma empresa oferecendo tecnologia e serviços com diversos depoimentos de felizes trabalhadores mexicanos.

Modernidade Líquida

                Essa hipo-utopia da ficção científica do Sul lembra o paradoxo proposto pelo pensador polonês Zygmunt Bauman: no seio da sociedade tecnológica esconde-se a liquefação e diluição dos valores humanos. Em meio a uma sociedade de fluxos, interconexões e integração mundial em redes de informação, cresce a incapacidade de nos relacionarmos com o “outro” de maneira plena.

                Para Bauman a sociedade pós-moderna torna-se cada vez mais excludente e intolerante. A tecnologização generalizada da sociedade cria um duplo movimento de, por um lado, trazer instabilidade, precarização do trabalho, dos sentimentos e das relações humanas; e do outro, o apagamento dessa realidade por meio de uma tecnologia virtual e telemática. O medo e insegurança criam as condições para a intolerância e aversão ao outro e à própria alteridade: velhice, morte, o estrangeiro, o homossexual etc.

                Essa nova sci fi “do Sul” parece ser a confirmação de uma tendência de produção cinematográfica que ocorre nas margens de Hollywood a partir de filmes como “Blade Runner, O Caçador de Andróides” (1982, co-produção EUA/Hong Kong), “Matrix” (1999, EUA/Austrália), “Código Fonte” (2011, EUA/França), “eXistenZ” (1999, Canadá/França) que exploraram temas como direitos humanos/trabalho e a sociedade como um sistema estruturado em uma rede com uma interface digital contínua semelhante a um jogo que apaga as tensões étnicas e raciais.

Ficha Técnica

  • Título: Why Cybraceros
  • Diretor: Alex Rivera
  • Roteiro: Alex Rivera
  • Distribuição: on line
  • País: EUA/México
  • Ano: 1997
  • Título: Distrito 9
  • Diretor: Neil Blomkamp
  • Roteiro: Neil Blomkamp e Terri Tatchell
  • Elenco: Sharlto Copley, David James, Jason Cope
  • Produção: TriStar Pictures, WingNut Films
  • Distribuição: Sony Picture Entertainment
  • Ano: 2009
  • País: África do Sul, EUA, Canadá, Nova Zelândia

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