O filme brasileiro “Trabalhar Cansa”
(2011) a princípio confunde o espectador: É terror? Drama social? Realismo
fantástico? A sensação de estranhamento a que são submetidos tanto espectadores
quanto os protagonistas Otávio e Helena ajuda formar um tragicômico quadro dos
pesadelos das classes médias. Ele, um homem de meia idade desempregado enquanto ela se
apega ao ideário do empreendedorismo abrindo um pequeno mercado de bairro.
De um lado Otávio se submete ao irracionalismo da religião autoajuda para
suportar a realidade da precarização do trabalho; e do outro, Helena tenta
compreender fenômenos supostamente sobrenaturais no seu mercadinho onde ao mesmo tempo crescem
tensões trabalhistas. Dois instantâneos de uma classe social ao mesmo tempo
agarrada no racionalismo da meritocracia e na irracionalidade da autoajuda,
magia e astrologia. Na verdade, os dois lados de uma mesma moeda.
Na
sua pesquisa sobre a coluna de astrologia do jornal Los Angeles Times em 1952, o pensador Theodor Adorno (principal
membro da chamada Escola de Frankfurt) chegou à conclusão de que as previsões
que as estrelas faziam para cada signo do zodíaco nada tinham a ver com o
Oculto. Para Adorno, a astrologia de massas se tratava de uma “superstição
secundária”: o oculto deixa de ser “o estranho” para se tornar
institucionalizado, objetivado e amplamente socializado – Leia ADORNO, Theodor. As Estrelas Descem à Terra, São Paulo:
Editora Unesp, 2007.
Mais
ainda: a busca da felicidade por meio da “supertição secundária” não seria uma
irracionalidade que operaria numa esfera exterior à Razão – ilusão,
viciosidade, dependência emocional etc. Pelo contrário, ela resultaria dos
próprios processos racionais do cotidiano das pessoas: o trabalho, competição,
ascensão social, busca pelo mérito, sobrevivência material e sucesso financeiro.
O
filme brasileiro Trabalhar Cansa
(2011), que marcou a estreia na direção de longas dos criadores de curtas
Juliana Rojas e Marco Dutra, explora esse imaginário da busca da felicidade (o
torturante drama do imaginário das classes médias) que no dia-a-dia acaba
transitando entre o real e o “sobrenatural” – ou “superstição secundária”, como
dizia Adorno. Trabalhar Cansa traça
uma surpreendente conexão entre o fantasma da precarização do trabalho que
assalta as classes médias e o apego ao “sobrenatural” como um instrumento mágico
da busca da felicidade e sobrevivência material.
A
princípio o espectador poderá ficar perdido quanto ao tom da narrativa (É
terror? Um drama social? Realismo fantástico?), mas deverá ficar atento ao
paralelo entre os estranhos fenômenos que começam a irromper no pequeno negócio
da família e a precarização do trabalho de um pai de meia idade desempregado.
O Filme
O
filme acompanha a trajetória de Otávio (Marat Descartes) que perde o emprego na
mesma época em que sua esposa Helena (Helena Albergaria) concretiza um sonho:
ter o seu próprio negócio, um pequeno mercado de bairro. Por isso, chega a casa
Paula (Naloana Lima) que será um misto de babá e empregada doméstica,
contratada de forma precária, sem registro, pois a família já começa a
enfrentar dificuldades financeiras.
Aos poucos, os papéis de Otávio e Helena se
invertem. Ela se torna a chefe do lar, traz o dinheiro e sustenta a casa,
trabalhando fora o dia todo, enquanto ele procura emprego e tenta pequenos
bicos em casa, como telemarketing. As relações trabalhistas também ficam
tensas, tanto entre Helena e os funcionários de seu mercado, quanto entre o
casal e a empregada.
De repente o sobrenatural começa a entrar
na vida de Helena. Todas as noites um cachorro late ferozmente para ela na
frente do seu mercado; uma enigmática mancha de umidade começa a surgir em uma
parede combinado com um cheiro fétido; um estranho líquido negro começa a
brotar por entre as lajotas do piso; o proprietário do imóvel é estranhamente
reticente quando fala do destino do inquilino anterior; estranhas movimentações
noturnas entre as gôndolas do mercado, o que faz Helena instalar câmeras etc.
Aos poucos a narrativa começa a ser tomada
por uma pesada simbologia: de um lado as tensões do desemprego e precarização
do trabalho tanto de Otávio como da empregada Paula, e do outro o fantasma do
sobrenatural que toma conta de Helena. O que poderíamos chamar de estranhamento
e alienação começa a dominar a atmosfera do filme, que avança aparentemente sem
ter uma solução, um ponto de virada que elucide todo esse estranhamento.
Mas a grande virtude do filme é estabelecer
uma secreta conexão entre o precário destino profissional de Otávio e os
fantasmas que dominam Helena no exato momento em que ela começa a se
entusiasmar com a ideia de transformar-se em uma mulher de negócios e
empreendedora. Qual é a secreta conexão entre esses dois plots narrativos de
Trabalhar Cansa? Resposta: a “superstição secundária” de Adorno.
Trabalho precarizado e autoajuda
Depois de muito tempo trabalhando em uma
grande empresa, Otávio é surpreendido com a demissão. Ele foi substituído por
alguém mais jovem. Na meia idade, ele passa a ser atormentado pelo medo da
inutilidade, de já ser considerado velho demais para o mercado, e de ver as
cobranças da escola da sua filha e dos atrasos na conta de luz chegarem.
São marcantes duas cenas simbólicas da
submissão de Otávio à precarização do trabalho: na primeira a gameficação do
processo seletivo de uma empresa onde uma funcionária do RH submete os
candidatos a uma dinâmica absolutamente idiota, enquanto enche uma bexiga
vermelha para a próxima dinâmica ainda mais surreal. Na segunda, um jovem
especialista em técnicas motivacionais corporativas dá uma palestra sobre a
competição no mercado de trabalho, e submete o auditório a uma dinâmica de grupo
idiotizante: sugere para cada um liberar o animal que viveria adormecido dentro
de si, fazendo todos gritarem cada vez mais alto para acordar “a fera
interior”.
Muitos
pesquisadores como Lasch e Sennett veem o surgimento dessa subcultura das
organizações baseadas em técnicas de autoconhecimento, autoajuda e técnicas de
desenvolvimento pessoal como resultantes diretos de uma crise de propósito do
trabalho e a descartabilidade generalizada do indivíduo. Para Sennett, por
exemplo, quanto mais as organizações tornam-se flexíveis e as funções e cargos
são reduzidos a equipes envolvidas em projetos temporários e terceirizadas,
cresce a atmosfera de paranoia e medo em relação ao futuro - leia SENNETT, Richard. A Cultura do Novo Capitalismo. R. de Janeiro: Record, 2006.
O
medo do fracasso e a introjeção da culpa criariam as condições do surgimento de
uma verdadeira religião secularizada: a crença do pensamento positivismo (forma
deteriorada da noção de fé nos antigas doutrinas religiosas) como forma de
contato com o divino que estaria em cada um de nós. Isso se aproxima do
conceito de “superstição secundária” de Adorno, da seguinte maneira: o
misticismo e fé se transformam em instrumentos irracionais de busca da
felicidade, assim como o horóscopo dos jornais, resquícios de antigos sistemas
mitológicos.
De
forma tragicômica acompanhamos como Otávio, outrora um profissional seguro de
seu ofício, vai se submetendo ao irracionalismo da superstição da religião da
autoajuda motivacional. Somente para conseguir empregos precários,
comissionados e terceirizados. E assim como nas religiões onde introjetamos a
culpa pelo pecado do mundo, da mesma forma a própria precarização do trabalho é
introjetado como castigo por supostamente não termos pensado positivo o
suficiente.
O pensamento mágico das classes médias
Ao
longo do filme Trabalhar Cansa
veremos que na verdade os fenômenos sobrenaturais que supostamente estariam
ocorrendo no mercadinho de Helena e uma metáfora de outro aspecto do
irracionalismo das classes médias: a crença de que feitiçarias, despachos, mal
olhados ou inveja seriam os responsáveis pelo fracasso individual.
Não
deixa de ser irônico que nessa classe social onde os valores meritocráticos (o
valor moral atribuído ao esforço individual de uma ascensão social através dos
próprios méritos como o estudo, a inteligência e o empreendedorismo) são a base
de uma visão de mundo supostamente realista e racional, surjam rompantes de
irracionalidade, superstições e fragmentos de religiões secularizadas.
A
forma como o filme Trabalhar Cansa
mostra como o irracionalismo e o pensamento mágico se tornam a alternativa para
os pesadelos das classes médias parece confirmar a tese do velho pensador
Theodor Adorno: a Razão, a Ciência e a Tecnologia (tão ao gosto da ideologia
meritocrática) produzem perversamente o seu inverso – o retorno do mito e da
religião, só que agora como ideologia que legitima um sistema que precariza a
própria vida e joga a culpa na suposta incapacidade do indivíduo.
Do
grito desesperado de Otávio para libertar “a fera inferior” e se dar bem no
mercado de trabalho altamente competitivo ao saco inteiro de sal grosso de
Helena para a limpeza mágica do problemático mercadinho, são dois instantâneos
de uma classe social ao mesmo tempo agarrada no racionalismo da meritocracia e
na irracionalidade da autoajuda, magia e astrologia. Na verdade, os dois lados
de uma mesma moeda.
Ficha Técnica |
Título: Trabalhar Cansa
|
Diretor: Marco Dutra, Juliana Rojas
|
Roteiro: Marco Dutra, Juliana Rojas
|
Elenco:Helena Albergaria, Marat Descartes, Naloana Lima
|
Produção: Dezenove Som e Imagem
|
Distribuição: Bodega Films
Ano: 2011
País: Brasil
|
Postagens Relacionadas |