quinta-feira, setembro 28, 2023

Turismo, provincianismo globalizado e morte no filme 'Um Efeito Ótico'


Seguindo a trilha do surrealismo do cinema de David Lynch, Charlie Kaufman e Spike Jonze, “Um Efeito Ótico” (Un Efecto Óptico, 2020, disponível na HBO Max), do diretor espanhol Juan Cavestany, vai ficando cada vez mais estranho e desafiador ao espectador na medida em que a narrativa avança. Um casal espanhol decide viajar para Nova York para “desconectar-se” do seu cotidiano. Após o embarque, começam a sentir que provavelmente a cidade não é aquela que a agência de turismo lhes vendeu. O que começa como uma crítica ao provincianismo globalizado que se tornou a experiência do turista na atualidade, aos poucos começa a transitar para uma atmosfera gnóstica: morte, cinema e a experiência da “tela mental”.

Nesses tempos de pós-modernidade líquida e homogênea, o turismo tornou-se um sintoma de uma espécie de provincianismo global – procurar locais ou experiências instagramáveis, transformar lugares em cenários pitorescos de fundo para selfies, ou viajar com um guia turístico nas mãos e esperar que os lugares confirmem as fotografias dos cartões postais anteriormente impressos.

O filósofo francês Michel Lacroix denomina esse sintoma como “geografia deturpada”: o fato de percorrermos o mundo não em busca da alteridade ou contemplação, mas numa busca predatória e devoradora por emoções. E transformamos o produto dessa busca em imagens para serem imediatamente postadas em redes sociais. O turista transforma-se numa espécie de “herói da vida intensa” – leia LACROIX, Michel. O Culto da Emoção, José Olympo, 2006.

O provincianismo global pós-moderno no qual a experiência da viagem tornou-se um loop – cenários que apenas confirmam as imagens anteriormente feitas desses lugares. E para cimentar essa experiência de segunda mão, a indústria hoteleira igualmente homogeneizada pelas redes globais de hospitalidade.

Essa experiência do loop é apropria essência do filme espanhol Um Efeito Ótico (Un Efecto Óptico, 2020), uma produção que segue a melhor tradição do cinema surrealista de David Lynch, mas sobretudo de Charlie Kaufman e Spike Jonze. Porém, ainda mais retorcido e perturbador.

À primeira vista o filme é sobre o olhar de estranhamento de dois turistas que não reconhecem a cidade que viram nos guias. Um casal de deixa a cidade de Burgos, na Espanha, para conhecer uma Nova York que estranhamente fica cada vez mais parecida com a cidade que deixaram, embora as fotos e selfies que produzem indiquem ao contrário. 



Se a cidade que lhes venderam na agência de turismo não está correspondendo aos cartões postais, onde estão afinal?

O diretor Juan Cavestany promete uma experiência simples que começa a ficar pouco a pouco complicada. Um Efeito Ótico parece querer enganar o espectador e os próprios protagonistas, numa experiência de metacinema – Cavestany nos faz sentir dentro do filme, numa experiência arriscada.

Porém, o diretor parece nos dizer algo mais: um casal de turistas presos numa espécie de loop temporal, como em O Feitiço do Tempo: o mesmo dia de passeio em Nova York se repete, sem que os protagonistas tenham consciência disso. Eles parecem estar consumidos demais pelas banalidades da vida de casal, os silêncios incômodos e as pequenas discussões para perceberem que há algo estranhamente errado.

Juan Cavestany está narrando algum tipo de processo de encerramento: um casal que está fazendo uma última viagem que deve ser repetida como uma espécie de ensaio. Até ficar um dia perfeito, conforme prometido pela agência de turismo que lhes vendeu as passagens.

Nesse ponto o filme começa a ir para além das discussões sobre a geografia deturpada e o provincianismo global para entrar no campo do gnosticismo, morte e cinema.



O Filme

Um Efeito Ótico apresenta-nos a vida conjugal de um casal em Burgos, formado por Alfredo (Pepón Nieto) e Teresa (Carmen Machi), que decidem fazer uma viagem à cidade de Nova York com o objetivo de 'desconectar'. Na verdade, o propósito desta viagem é reavivar a faísca do relacionamento, que se dissipou por causa de um incidente específico – a síndrome do ninho vazio, quando a filha Isabel (Lucia Juarez) vai estudar fora em uma Universidade.

A premissa do filme parece simples: apenas dois protagonistas, cujo motor de ação é visitar todos os monumentos que aparecem em seu guia de viagem. Mas à medida que o filme avança, nos encontraremos imersos em algum tipo de engano, assim como os próprios personagens. A realidade é distorcida, por trás de cada pequeno detalhe há uma mudança significativa no mundo do casal.

A Estátua da Liberdade que enxergam parece uma pálida lembrança do cartão postal. Embora, estranhamente, a selfie tirada diante do monumento mostre a estátua tão parecida quanto a foto do guia de viagem.

Quando decidem então abandonar o guia e fazer incursões aleatórias pela cidade, as coisas ficam ainda mais estranhas: descem de uma linha do metrô para encontrar um bairro que, quanto mais andam, mais fica parecido com Burgos, na Espanha.



Os turistas de Um efeito óptico passeiam por uma cidade vazia, sofrem o fardo do inchaço dos pés e nada do que vêem ou sentem jamais está à altura do que imaginaram, prometeram ou simplesmente desejaram. Nova York não é tão diferente de Burgos, afinal. 

No início, o filme é uma crítica a experiência do turismo mercantilizado. Há algo, conjuntural se quiser, que os marca como seres acorrentados à urgência de consumir numa sociedade concebida para isso. A insatisfação é o motor de tudo isso – a impossibilidade de sentir ou simplesmente ver em um universo, o nosso, no qual a experiência se tornou mercadoria.  

Voltam para o quarto do hotel para acordar no dia seguinte, sem perceberem que estão em um loop – pequenas mudanças ocorrem a cada ciclo. 

Pouco a pouco Alfredo começa a adquirir, em sonho, um tipo de consciência meta da situação, enquanto Teresa experimenta constantes déjà vu.  É quando o filme prepara o espectador para entrar em um outro campo: o gnóstico. 

Há algum tipo de ensaio em andamento. O mesmo dia deve ser repetido, até ficar perfeito. Isto é, Nova York deixar de ser parecida com Burgos e ser ela própria. Pelo menos ficar parecida com os cartões postais e satisfazer o casal de turistas.

Tela Mental – Alerta de Spoilers à frente

Também há um tipo de encerramento, como que sendo filmado dentro do próprio filme – a certa altura, temos até um momento Show de Truman, quando, num relance, Alfredo vê por trás de uma porta que lentamente se abre um operador de câmera.



Nesse momento, Um Efeito Ótico se aproxima do tema morte e cinema (explicitado na última cena surreal, quando o casal é informado na viagem de retorno que agora estavam “preparados para retornar para casa”) – lembrando de certa maneira o filme japonês After Life (1998): Um grupo de recém-falecidos é recebido por funcionários que explicam que morreram. Os funcionários são roteiristas e produtores de cinema. A missão: escolher uma memória a partir da vida de cada um. Para ser roteirizada e transformada em um filme que reconstitua a cena mais feliz que cada um levará para toda a Eternidade. 

De fato, eles precisam se desconectar da sua vida passada e a síndrome de ninho vazio. Teresa ainda resiste, comendo escondida no banheiro fatias da mortadela de Burgos que secretamente trouxe na sua mala.

Esse dia perfeito que está sendo reencenado sucessivas vezes nada mais é do que a “tela mental” do pós-morte.

Assim como nos sonhos, na morte encobrimos a realidade com a ilusão ao criar a própria tela mental na qual são projetados medos, culpas e fantasias, criando uma experiência imersiva e etérica com formas-pensamento que se materializam de forma convincente.

No caso do filme, a tela mental é o dia perfeito como turistas em Nova York – uma experiência prazerosa como uma espécie de air bag mental para amortecer o impacto da realidade da morte e separação – principalmente da filha, Isabel.

Numa perspectiva gnóstica, portanto, o final de Um Efeito Ótico é triste e melancólico. O filme termina com a dupla experiência ilusória: a do turista que vive uma experiência de segunda mão (ver como a realidade confirma os cartões-postais) e da passagem para a morte através da experiência ilusória (cinematográfica) da tela mental.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Um Efeito Ótico

Diretor: Juan Cavestany

Roteiro:  Juan Cavestany

Elenco:   Carmen Machi, Pepón Nieto, Lucia Juaréz, Luis Bermejo

Produção: Cuidado con el Perro

Distribuição: HBO Max

Ano: 2020

País: Espanha

   

 

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