Começou na segunda-feira (16) a 23a edição do Big Brother Brasil com a chamada “casa mais vigiada do Brasil” recebendo 22 participantes que disputarão um prêmio milionário. Onze homens e onze mulheres. Vinte e dois seres humanos em um ambiente fechado e monitorado por diversas câmeras.
Tamanha diversidade humana (gordos, sarados, ricos, pobres, influencers, aspirantes a celebridades, homossexuais, homofóbicos, empresário, balconista, esportista etc.) confinada não costuma acabar bem, acionando o gatilho das relações explosivas de agressões, assédios, erros, incompreensões, num quadro geral de incomunicabilidade total. Mas tamanha disfuncionalidade é um material e tanto para quebrar o tédio do final de noite dos telespectadores – ou esquecer os problemas que aguardam no dia seguinte.
E pensar que o gênero reality show começou com uma catástrofe em um projeto científico – e justamente esse fracasso incendiou a imaginação de diretores e produtores de TV.
Em 26 de setembro de 1991 quatro homens e quatro mulheres entraram numa gigantesca estrutura geodésica de vidro e metal com 12.000 metros quadrados, em Tucson, Arizona, em pleno deserto, para ali ficarem trancafiados por dois anos.
Era o projeto Biosfera 2, abrigando 3.800 espécies animais e vegetais e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra, com o propósito de entender como a biosfera planetária funciona e como o ser humano interage com os ecossistemas. Foram monitorados por dois mil sensores eletrônicos e milhares de câmeras, assistidos por 600 mil pagantes em todo o mundo – acadêmicos e cientistas.
Bancado por um filantropo bilionário texano, Ed Bass, e com apoio científico da Nasa, o projeto tinha também outro objetivo: a colonização especial – um ecossistema fechado e isolado da atmosfera terrestre para emular uma viagem de dois anos através do espaço, num ambiente sustentável que gerasse sua própria atmosfera e alimentos.
Foi uma atração experimental. Era inegável que, desde o início, havia um implícito senso midiático – o momento em que a tecnociência se transforma em espetáculo.
De início, o projeto mostrou sua inviabilidade: oito pesquisadores enclausurados passavam 95% do tempo lutando pela sobrevivência (fazendo a comida crescer, lutando contra pragas e tentando resolver problemas básicos como higiene e saúde). Não sobrava muito tempo para o trabalho científico.
Mas tudo ficou ainda mais catastrófico e com um tom de terror: ácaros e gafanhotos devoraram as plantações, Das vinte e cinco espécies de vertebrados apenas seis sobreviveram. Os únicos organismos que prosperaram foram ervas daninhas, formigas e baratas, muitas baratas!
E no meio de tudo a tensão crescente entre os membros da “tripulação” e a necessidade de injetar oxigênio num ambiente moribundo.
Alguns meses depois, em 15 de fevereiro de 1992 sete jovens entre 18 e 25 anos entraram no prédio 565 da Broadway Street, em Nova York, para ali permanecerem por três meses com diversas câmeras acompanhando suas vidas e seus relacionamentos. Era o início daquele que é considerado o primeiro Reality Show da TV mundial, o “The Real World” (Na Real) da MTV norte-americana.
Em 16 de setembro de 1999, nove pessoas entraram em uma mansão em Almere, na Holanda, para ficarem também trancafiadas, desta vez por 106 dias, sem nenhum contato com o mundo exterior, acompanhados por uma parafernália de câmeras e microfones.
Era a primeira edição do reality Show Big Brother idealizado pela empresa de entretenimentos Endemol. Embora o nome faça alusão a distopia literária de George Orwell, “1984”, na verdade o programa foi explicitamente inspirado na experiência Biosfera 2 de, então, oito anos atrás.
Tanto a produtora do “Real World”, Mary-Ellis Bunin, quanto o produtor holandês do Big Brother, John De Mol, inspiraram-se não tanto no fracasso científico do Biosfera 2, mas seu appeal midiático - segundo De Mol, a inspiração veio após um considerável número de drinques... Afinal, acompanhar uma “tripulação” de cientistas lutando contra baratas e pragas, assistir à crescente tensão entre eles sob a proibição de qualquer tipo de relacionamento sexual é um bom ponto de partida para um programa que explore o prazer sádico e voyeurista do público.
Mas há algo mais perverso...
A Ecologia Maléfica
Como experimento científico, o Projeto Biosfera 2 foi um resumo de todas as ideologias ecológicas, climáticas, microcósmicas e biogenéticas dominantes no meio científico e na agenda política global.
Um dos motivos apontados para o fracasso do Biosfera 2 foi a sua concepção científica positivista e linear que procura retirar da natureza o Mal, a catástrofe, o germe. Enclausurar os biomas terrestres num ambiente fechado, como uma espécie de Disneylândia ecológica, baseado num modelo de reciclagem, retroalimentação, estabilização e metaestabilização é como construir um paraíso ecológico idealizado. Delírio tecnocientífico, como se tudo fosse previsível linearmente dentro de modelos ou simulações.
Foi como se quisessem criar uma brancura operacional, no qual esquecessem a existência da “ecologia maléfica”: no final, a vida é predada pela destruição e a morte.
Porém, o que foi fracasso para o Biosfera 2, tornou-se a virtude e a razão de ser do negócio dos reality shows: enclausurar uma diversidade humana proveniente de diferentes biomas sociais para exibir ao vivo a ecologia maléfica: assim como a natureza é predada por ervas daninhas, formigas e baratas, as relações humanas o são pela intolerância, preconceito, violência, estupidez e crueldade.
No caso do Big Brother Brasil, nos tempos do apresentador Pedro Bial o programa global era ainda, por assim dizer, “envergonhado”. Diante das manifestações dessa ecologia maléfica, Bial tentava enquadrar as situações dentro de crônicas moralizantes que insistentemente narrava a cada eliminação de um participante. A cada explosão de intolerância e preconceito de um “brother” ou alguma situação politicamente incorreta, Bial intervinha para tentar diluir o escândalo.
Hipocrisia que tentava esconder a verdadeira natureza do programa.
Com o posterior apresentador Tiago Leifert, amante como é dos games eletrônicos, todo o predatismo e pragas nas relações humanas no reality show passaram a ser naturalizadas como “lances” dos oponentes em um “jogo”.
Agora com o ex-apresentador do Fantástico, Tadeu Schmidt, chegamos ao momento em que o BBB ri se si mesmo com uma versão light do ex-global Fausto Silva no comando do reality.
Esse prazer perverso em observar, de um ponto confortável da poltrona, as relações humanas confinadas se converterem num ecossistema maléfico, vai muito além do entretenimento sádico-voyeurístico. O reality show assumo no século XXI a função de “TV excremental”.
Arthur Kroker e a "TV Excremental" |
TV Excremental
O pesquisador canadense Arthur Kroker previa na década de 1990 que a televisão assumiria uma função “excremental”: o público não veria mais a TV como uma mídia informativa ou de entretenimento, mas como uma agenciadora dos dejetos psíquicos decorrentes de quatro mecanismos ideológicos cotidianos que faz a sociedade se reproduzir – sacrifício, disciplina, vigilância e reenergização através da violência.
Assim como os corpos, a sociedade além de produzir e acumular deve excretar o seu mal-estar, paranoia, perversões, neuroses e sadomasoquismo. No passado esses fluxos psíquicos eram agenciados por toda uma subcultura representada pela prostituição, pornografia (hardcore, snuff movies etc.) slash e exploitation movies, programas sensacionalistas e a chamada imprensa marrom.
No século XXI a Internet e a chamada deep web assumiram esse papel, porém de uma forma privada. Ainda é necessária uma “praça pública” onde vítimas fossem imoladas, humilhadas e exibidas. Onde as mazelas da sociedade sejam fossem como atrações e catarse para a queima desse fluxo psíquico que, no limite, poderia voltar-se contra a própria sociedade.
Nesse século as variações do gênero reality show passaram a ocupara esse papel em uma verdadeira febre (na TV a cabo ou aberta) de programas reality com especialistas nas mais diversas áreas, de adestradores de cachorros a educadores infantis, passando personal trainers, personal stylists ou personal organizers. Super Nanny, Santa Ajuda, Pronto Socorro da Moda etc., variações do gênero reality show sempre com especialistas que recebem pedidos de socorro de telespectadores que não conseguem dar conta de filhos mal-educados, cães maníacos, apartamentos entulhados de bugigangas ou de guarda-roupas que passaram da moda.
Nessas variações, a ecologia maléfica é ainda latente. Diferente da variação de programas com relacionamentos humanos confinados no interior de dispositivos de vigilância (onipresença das câmeras), punição (eliminação pelo voto do público pelo “resumo da ópera” do “jogador”), sacrifício (as diversas provas de resistência e eliminação) e violência (a própria situação de confinamento incita o pior dos participantes).
Filmes como O Poço (El Hoyo, 2019) mostram muito bem como esses mecanismo panóptico de uma instituição total açoda e arranca o pior da natureza humana para manter a totalidade em funcionamento.
Esse é o próprio macrocosmo gnóstico, ao estilo dos clássicos Matrix ou Show de Truman.