Ao lado de “Show
de Truman”, o filme “Edtv” (1999) de Ron Howard, mais do que antecipar uma TV atual
onde o conceito de reality show contamina de reportagens a programas de
gastronomia e decoração, anteviu uma nova função social - a “TV excremental”.
Uma televisão que há muito abandonou a pretensão de ser uma “janela aberta para
o mundo” para assumir um papel fisio-psicológico: processar os excrementos
psíquicos. Assim como o corpo que depois de ingerir, acumular, metabolizar e
produzir tem que no final excretar para manter o ciclo vital, da mesma forma milhões
de telespectadores necessitam excretar fluxos psíquicos (sacrifício,
disciplina, vigilância e violência) para que o ciclo se renove no dia seguinte após
um dia inteiro de alimentação e trabalho para acumulação de méritos e riqueza
alheia.
Desprezado pela
crítica e pelo público. Esse foi o destino do filme Edtv (1999) do premiado diretor Ron Howard (Oscar de melhor diretor
em Uma Mente Brilhante, 2001) que se
quer chegou a ser exibidos nos cinemas brasileiros. Muitos creditaram o fato
desse filme ter caído no esquecimento à coincidência de ter sido lançado no
mesmo ano de Show de Truman de Peter
Weir: assim como em Edtv, também antecipava a questão dos reality show que, mais tarde, se tornaria um gênero televisivo
mundial.
O sucesso de Show de Truman eclipsou Edtv, mas olhando hoje percebemos que
embora tratem do mesmo objeto, a proposta de discussão é bem diferente:
enquanto Weir contava a história de um protagonista cuja vida foi fabricada
para ser entretenimento de milhões sem ele saber, Howard quer discutir não só a
questão das celebridades instantâneas produzidas pelos reality show como também os destinos da TV em um novo milênio
dominado pela cultura digital em tempo real.
Tanto o filme Edtv como Show de Truman parte de um mesmo diagnóstico sobre as
transformações da TV: a televisão já deu para os espectadores os melhores
documentários, programas de informação, os momentos mais divertidos e trágicos.
Mas agora, a TV vai levar o telespectador “onde nunca esteve. Sem script, sem
atores e sem montagem: a TV Verdade!”. Em outras palavras, a TV em toda a sua
história pretendeu representar a
realidade para o telespectador, tornar-se uma “janela aberta para o mundo” como
dizia Umberto Eco. Agora, a TV deve presentar
a realidade. Principalmente diante da concorrência das mídias de
convergência como Internet e dispositivos móveis: interativos e em tempo real.
Hoje a pretensão reality da TV vai contaminar todos os
gêneros televisivos. Clássicos do reality show como Big Brother, Casa dos
Artistas ou A Fazenda vão
emprestar a pretensão realista a programas de gastronomia, decoração,
entrevistas, reportagens etc. Todos com personagens que, de alguma forma, lutam
para sobreviver: permanecer no programa, suplantar um rival ou simplesmente
sobreviver à desordem das suas próprias vidas. Como apontam diversos
pesquisadores atentos às transformações da função social da TV como Ciro
Marcondes Filho, Arthur Kroker e Umberto Eco, a televisão deixou a velha
pretensão de ser uma “janela aberta para o mundo” para funcionar sob a lógica
excremental do autocancelamento, desacumulação e autoextermínio.
Embora em Edtv o diretor Ron Howard abra mão de
discutir com seriedade o tema buscando soluções catárticas de entretenimento numa
convencional história de amores impossíveis, o filme oferece um conjunto de
sequências e insights que são ótimas para uma reflexão quinze anos depois. Principalmente
porque agora nosso olhar está mais “educado” em relação ao gênero reality show
para compreender que essa “realitificação” da televisão é a sua estratégia de
inserção em um sistema global de telas que não mais informam, mas agenciam os
fluxos da sociedade em tempo real.
O Filme
Acompanhamos o dia-a-dia
de um cidadão comum chamado Ed (Matthew McConaughey) cuja vida é dividida entre
trabalhar como balconista em uma locadora de vídeos e beber cerveja no bar
local. Até que um dia vê a oportunidade de ganhar “dinheiro fácil” em um
reality show idealizado por uma produtora (Elle DeGeneres) de uma emissora de
TV em crise de audiência. Sem pensar muito bem nas consequências, Ed aceita ter
sua vida seguida e perscrutada 24 horas por dia por câmeras e microfones. Sua
vida muda radicalmente: a briga com seu irmão mais velho pela pretensão de ser
a estrela principal do programa, o namoro com a ex de seu irmão, os segredos e
escândalos sobre a sua família que começam a aflorar ao vivo – descobre que a
sua mãe mentiu a vida inteira sobre o seu verdadeiro pai etc.
A vida de Ed passa
a ser não só observada, mas também sofre diversas formas de intervenções:
merchandising, inserção de produtos, promoções de pontos de vendas e a divulgação
de pesquisas de opinião sobre, por exemplo, quem Ed deve namorar. Ed terá que
lidar com a fama e com o jogo metalinguístico em que ele se vê inserido em
várias sequências: ver as câmeras e microfones e a si mesmo nas telas de TV na
sala da sua casa ou na locadora de vídeo. Howard apenas joga essas intrigantes
imagens para nós, sem entrar em qualquer discussão mais profunda, mantendo o
tom de comédia romântica para a narrativa.
Isso fica evidente
na edição em DVD onde vemos cenas que não entraram na edição final do filme (os
chamados “outtakes”). Essas cenas que acabaram ficando de fora mostram como
Howard pretendia dar outros significados e interpretações totalmente diferentes
ao protagonista e uma visão mais perturbadora sobre o fenômeno das
celebridades. Por exemplo, o final feliz da edição final teria uma continuidade
perturbadora com um tiroteio que lembraria o assassinato de John Lennon em 1980,
marco histórico que alterou totalmente a relação entre os fãs e as
celebridades.
TV excremental
Essa pretensão
reality da TV atual revela uma nova função que está para além da informação e
do entretenimento: a do excremento. Tal como o corpo que depois de ingerir,
acumular, metabolizar e produzir, ele deve ao final excretar para manter o
ciclo vital. Milhões de telespectadores que após um dia inteiro de alimentação
e trabalho para acumulação de méritos e riqueza alheia, necessitam ao final do
dia excretar para que o ciclo se renove no dia seguinte.
(a) Sacrifício:
com os reality show a televisão se
transforma em um espaço onde são descarregados ressentimentos por meio do
sacrifício do socialmente mais fraco: perdedores (como no caso de Edtv), minorias sexuais e étnicas etc. Pessoas
que são humilhadas ou se auto-humilham em troca da fama reforça a percepção resignada
para o espectador: descobri alguém que possui uma vida pior do que a minha!
Todo esse processo já estava em germe nas candid
TV, infomerciais e vídeos caseiros de catástrofes domésticas nos anos
1970-80. Claro que o nazi-fascismo já explorava o ressentimento através do ódio
racial através da propaganda política na década de 1930. Mas a diferença é que
com a TV excremental, esse fluxo se insere no cotidiano quase como uma função
fisiológica de excreção corporal;
(b) Disciplina:
a vida de Ed começa a ser controlada pelas expectativas do público, pelas
pesquisas de opinião (qual a melhor namorada para Ed?) e pela ilusão
democrática da interatividade. A TV oferece um modelo ao mesmo disciplinar e
terapêutico, como um processo de cura: médicos, fisioterapeutas, nutricionistas
etc. quase diariamente nos informam sobre novas doenças, síndromes e
contaminações, com seus respectivos tratamentos, remédio e curas. Assim como Ed
é controlado pelas pesquisas de opinião, o telespectador é disciplinado por
modelos terapêuticos.
(c) Vigilância:
a metalinguagem das câmeras que acompanham Ed (Ed vê a si mesmo seguido pelos
cinegrafistas assim como os telespectadores) funciona como mecanismo de
normatização dos sistemas de vigilância integral da nossa rotina - das câmeras
de segurança em espaços públicos aos sistemas de rastreamento por satélite ou
dos nossos gastos em cartão de crédito pelo sistema financeiro e jurídico.
Todos nosso mal estar psíquico desse ambiente social controlado cujos sintomas
se revelam na paranoia das teorias conspiratórias, no medo do terrorismo, na
xenofobia etc. é excretado como ressentimento: o prazer mórbido de “dar uma
espiadinha” em pessoas confinadas, válvula de escape que transforma em show de
TV a própria vida monitorada.
(d) Reenergização:
através da violência (brigas, conflitos, tensões, acidentes, discussões) que
explodem diante das câmeras, Ed reenergiza o cotidiano inerte e resignado dos
telespectadores. Não é à toa que a maioria dos filmes do Corujão da TV Globo
(sessão após o programa Fantástico) possuem
temas como sexo, violência, crimes e perseguições: a necessidade da reenergização do
telespectador para enfrentar a semana útil que se inicia na segunda-feira.
Ficha Técnica |
Título: Edtv
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Direção: Ron Howard
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Roteiro: Émile Gaudreault e Sylvie Bouchard
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Elenco: Matthew McConaughey, Jenna Elfman, Woody
Harrelson, Ellen DeGeneres, Rob Reiner, Martin Landau
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Produção: Imagine Entertainment, Universal Pictures
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Distribuição: Universal Pictures
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Ano: 1999
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País: EUA
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