Animes, mangas, filmes e romances japoneses, repletos de gritantes gráficos coloridos e ações com temas fantásticos e futuristas, são tão desapegados das regras hollywoodianas ocidentais que permitem aos autores mergulhos profundos na psicologia e mitologia. Claro, sempre numa perspectiva pop. Um campo que facilmente absorve o esoterismo gnóstico, que melhor representa mundos distópicos violentos e ciberpunks catárticos. “Tag” (2015), de Sion Sono, é um bom exemplo: baseado em um romance popular que gira em torno de meninas colegiais que se tornam presas de professores e de um híbrido humano-porco em um mundo sem homens. Tudo isso enquanto são objetificadas para algum olhar masculino onipresente: seria o de um Demiurgo? Do espectador? Ou do próprio diretor? Mitologias clássicas gnósticas do Demiurgo, de almas decaídas, do Salvador e do Divino Feminino narradas em toda glória da cultura pop japonesa.
A cultura pop japonesa dos animes, mangás e romances são facilmente reconhecidos pelos seus gritantes gráficos coloridos retratando personagens vibrantes em narrativas cheias de ações repletas de temas fantásticos e futuristas.
Mais do que isso, é uma cultura dominada por uma ficção especulativa diferente do Ocidente: fantasias sexo-masculino-adolescente com poderosos símbolos fálicos na forma de robôs gigantes, samurais e ninjas que combinam artes marciais com raios e bolas de energia, em mundos distópicos alternativos e ultraviolentos populado por catárticos ciberpunks.
Justamente pela imaginação dos escritores e animadores ser tão desapegada, longe dos ditames hollywoodianos, permite aos autores ir a fundo na psicologia, mitologia e estados alterados de consciência.
Esse é o solo perfeito para crescer a influência da mitologia gnóstica clássica na qual o protagonista se confronta com divindades insanas e indiferentes na luta pela posse dos elementos remanescentes da catástrofe da Criação.
Assim como os ocidentais absorvem os elementos místicos exóticos e fluidos das religiões orientais, da mesma forma essa cultura pop oriental parece adotar vertentes esotéricas das tradições abraâmicas que parecem melhor traduzir essas fantasias multicromáticas e hiperbólicas das paisagens das animes – basta dar uma olhada nas páginas dos livros apócrifos da Biblioteca de Nag Hammadi para termos essa certeza.
Estão disseminados nessas narrativas os principais elementos da mitologia gnóstica: o Demiurgo, o mito da alma decaída, o mito do Salvador e o mito do Divino Feminino.
É o exemplo do filme Tag (2015), do incansável cineasta Sion Sono – só naquele ano conseguiu lançar cinco longas-metragens e um filme para a TV no espaço de 12 meses: All Esper Dayo!, Shinjuku Swan, Love & Peace, Tag, The Whispering Star e The Virgin Psychics.
Tag é uma mistura de gênero de terror, suspense e fantasia. Uma adaptação do romance “Real Onigokko” de Yusuke Yamada, que já foi adaptado para uma série de longas-metragens nos últimos anos, começando com The Chasing World, 2006. Sono pega talvez metade da premissa do romance de Yamada e a usa como trampolim para sua própria história. O resultado é algo que ecoa o original sem realmente se parecer muito com ele.
Nos seus 85 minutos, excluindo os créditos finais, a protagonista Mitsuko (a atriz austríaca-japonesa Reina Triedl) está praticamente fugindo o tempo todo em uma realidade que parece ser um mundo alternativo, no qual os eventos parecem acontecer em loop – as passagens de um loop para o outro são deliberadamente rápidas e contínuas, onde a protagonista acaba descobrindo que ela sempre se transforma em outra pessoa que se vê sempre numa nova situação, tensa, com alguma espécie de entidade mortal invisível (representada por um vento que arrasta folhas) que está matando todas as outras mulheres que estão ao seu lado ou por perto.
Mitsuko assume nos personagens amnésicos, que desperta em lugares e situações das quais não se lembra.
É difícil não notar que na primeira hora do filme não há um único homem para ser visto – na verdade essa ausência é simbólica e no último ato saberemos o motivo.
Logo na primeira hora de filme já está dada a atmosfera gnóstica de Tag: realidade inconsistente e a sucessão de trocas de personas ou papéis em estado amnésico, enquanto a protagonista luta para manter a sua “persona interior” para tentar recuperar o fio condutor dos acontecimentos – alusão clara dos filmes gnósticos à sucessão de mortes e reencarnações da alma prisioneira da “Roda do Samsara”: condenado a uma existência descontínua, marcada pelo esquecimento.
O Filme
Definitivamente Tag não é para os fracos de coração, com sua pegada gore e exploitation na sua primeira metade. Começa com uma estudante chamada Mitsuko em um ônibus para um acampamento feminino de verão. Em cerca de um minuto e meio, praticamente todos ao seu redor já estão mortos e ela está correndo para salvar sua vida. Um vento misterioso chega do nada para abruptamente atingir os dois ônibus cheios de colegiais em uma estrada rural.
Mitsuko foge para uma cidade onde, de alguma forma, alunos que ela não conhece a reconhecem como uma amiga e colega de classe de longa data.
Mitsuko mal se adaptou ao seu novo ambiente quando tudo é destruído por outro banho de sangue. Em fuga novamente, sua história se transforma na de Keiko (Mariko Shinoda), uma mulher de 25 anos se preparando para seu casamento, onde os sorrisos felizes e os convidados bem-intencionados logo desaparecem quando ela é levada às pressas pelo corredor em direção a um futuro potencialmente purgatorial. Lutando para sair da bagunça, sua fuga leva a um outro loop – agora é uma maratonista chamada Izumi (Erina Mano) que compete numa corrida de rua contra vilões e monstros que irrompem da cena do loop anterior.
O único elemento que sublinha a existência dos três personagens é a necessidade interminável de correr para sobreviver. Essa premissa é baseada no romance de 2001 de Yusuke Yamada, no qual pessoas que compartilham um sobrenome semelhante são caçadas (ou “marcadas” como no jogo infantil) e mortas.
Mas em Tag, o diretor Sion Sono procura outra coisa. Enquanto os outros filmes tendem a alegorias políticas convencionais semelhantes a The Purge, a narrativa de Tag pode ser interpretada como uma história de opressão totalitária gnóstica (a desconfiança de que o próprio tecido da realidade possa ser manipulável) combinada com a dominação de gênero vista por uma mulher passando por rituais de adolescência e idade adulta. As intervenções violentas no filme sempre interrompem longas cenas de solidariedade em um mundo sem homens, o senso de otimismo e liberdade vividamente capturados em sequências filmadas por drones ao som do pós-rock da banda japonesa Mono.
Tag funde o Gnosticismo (inevitavelmente conheceremos um demiurgo por trás de toda essa correria) com o discurso feminista (como as três protagonistas romperão um círculo vicioso misógino de um demiurgo fetichista), porém numa perspectiva irônica e autorreferencial, no qual engloba o espectador e até o próprio diretor.
A primeira metade de Tag é apimentada com sequências gratuitas em que aparecem as roupas íntimas dos personagens sob suas saias colegiais, incluindo mais de uma cena de um personagem se despindo, ficando só de sutiã e calcinha – sem, aparentemente, ter uma razão narrativa para estar lá.
Isso cria um efeito estranho: uma produção que passa a maior parte do tempo sendo um filme de terror machista e fetichista, voltado principalmente para o olhar masculino, que então de repente assume uma rejeição desafiadora desse mesmo olhar no clímax. Tudo isso torna Tag um filme ironicamente estranho que começa objetificando as mulheres para em seguida apontar o dedo acusatório para os espectadores.
E para os próprios fanboys e cineastas que exploram a objetificação feminina, inclusive o próprio Sion Sono.
Seguindo os elementos clássicos do Gnosticismo (um demiurgo por trás de uma espécie de game; a protagonista como uma alma decaída numa realidade inautêntica; também como a Salvadora, afinal todos estão presos naquele mundo por causa dela; e a protagonista como o Divino Feminino que emancipará a todos através da sua gnose) Tag termina com a gnose final: a quebra e fuga do loop incessante de “reencarnações” amnésicas.
Desafiando um Demiurgo que, além de ser sádico e cruel, é um fetichista obcecado pelas saias das colegiais japonesas.
Ficha Técnica |
Título: Tag |
Diretor: Sion Sono |
Roteiro: Sion Sono baseado no romance de Yusuke Yamada |
Elenco: Reina Triendl, Mariko Shinoda, Erina Mano, Yuki Sakurai, Aki Hiraoka |
Produção: Asmik Ace Entertainment, NBC Universal Entertainment |
Distribuição: Eureka Entertainment |
Ano: 2015 |
País: Japão |