No momento em que
mídias de convergência como Internet e dispositivos móveis ameaçam as mídias
tradicionais, a TV abraça o conceito de “shows de realidade” onde especialistas
nas mais diversas áreas atendem ao pedido de socorro de pais ou casais que não conseguem
dar conta de filhos chiliquentos, cães maníacos, apartamentos entulhados de
bugigangas ou de guarda-roupas que passaram da moda. Para sobreviver a irrupção
das mídias digitais interativas e em tempo real, a TV aponta para uma mudança
de função: de mídia informativa ou de entretenimento, para agenciadora das necessidades psíquicas de sacrifício,
disciplina, vigilância e reenergização dos telespectadores através da violência, funções a que o pesquisador canadense Arthur Kroker conceitua como "TV excremental". O
reality “Socorro! Meu filho come mal” da GNT é um caso exemplar.
Em um fenômeno de
sincronismo, no momento em que terminava a postagem anterior sobre o filme Edtv (clique aqui para ler) e a discussão sobre a função social
do reality show, eis que dou de cara
na TV com o reality da GNT Socorro! Meu
filho come mal comandado pela nutricionista Gabriela Kapim.
Há uma verdadeira
febre na TV a cabo atual de programas reality com especialistas nas mais
diversas áreas, de adestradores de cachorros a educadores infantis, passando personal trainers, personal stylists ou personal
organizers. Super Nanny, Santa Ajuda, Pronto Socorro da Moda etc., variações do gênero reality show sempre com especialistas
que recebem pedidos de socorro de telespectadores que não conseguem dar conta
de filhos mal educados, cães maníacos, apartamentos entulhados de bugigangas ou
de guarda-roupas que passaram da moda.
Socorro! Meu filho come mal não foge à regra de histórias de pequenas catástrofes domésticas que
precisam de um especialista que conserte tudo: crianças chiliquentas e birrentas
desafiam os pais e resistem a comidas saudáveis em nome do apego a doces,
massas e fast food. Após fazer o
diagnóstico, a nutricionista Gabriela Kapim traça um plano sempre com três
metas a cumprir (fácil, média e difícil). Em um misto de psicologia e nutrição,
Kapim tenta compreender a dinâmica pais-filho para tentar reverter as situações.
Discutíamos na
postagem anterior que depois dos reality
show clássicos como Big Brother
ou Na Real da MTV, o conceito de “show
de realidade” passou a ser introduzido em uma variedade de programas e gêneros
mais díspares – gastronomia, reportagens, moda, educação infantil, veterinária
etc. Essa tendência coincide com o crescimento das mídias de convergência como
a Internet e dispositivos móveis que ameaçam as mídias tradicionais como a
televisão.
Se a
interatividade e o tempo real são as principais características dessas novas
mídias, para fazer frente a esse novo quadro e sobreviver a TV deixará de
informar ou de tentar ser uma “janela aberta para o mundo”. Com o crescimento
da Internet, a TV não sucumbirá, mas permanecerá como uma espécie de “praça
central” feita pela mistura de programas pobres e medíocres feitos para uma
massa de desinteressados pelos temas mais densos da sociedade como a política,
cultura e economia.
A função “excremental” da TV
O pesquisador
canadense Arthur Kroker previa na década de 1990 que a televisão assumiria uma
função “excremental”: o público não veria mais a TV como uma mídia informativa
ou de entretenimento, mas como uma agenciadora dos dejetos psíquicos
decorrentes de quatro mecanismos ideológicos cotidianos que faz a sociedade se reproduzir
– sacrifício, disciplina, vigilância e reenergização através da violência.
Assim como os
corpos, a sociedade além de produzir e acumular deve excretar o seu mal estar,
paranoia, perversões, neuroses e sadomasoquismo. No passado esses fluxos
psíquicos eram agenciados por toda uma subcultura representada pela
prostituição, pornografia (hardcore, snuff movies etc.) slash e exploitation movies,
programas sensacionalistas e a chamada imprensa marrom. Internet e a chamada deep web assumiram esse papel, porém de
uma forma privada. Ainda é necessário uma “praça pública” onde vítimas sejam
imoladas, humilhadas e exibidas. Onde as mazelas da sociedade sejam exibidas
como atrações e catarse.
Como mais um
programa “show de realidade”, Socorro!
Meu filho come mal transforma em atração os próprios danos produzidos pela
indústria do entretenimento nas crianças. É sabido que existe um setor
especializado na ciência do consumo responsável por turbinar um mercado cujos
ganhos equivalem à soma das economias de 115 países pobres: o consumo infantil.
Sua mais recente tática subliminar é o reforço da chamada “cultura da
reclamação” por meio do incentivo de comportamentos como birras e chiliques
diante dos pais – sobre esse tema clique
aqui.
Detritos psíquicos dos reality show
Nesse reality show da GNT assistimos como show
os resultados da aplicação dessa ciência subliminar: crianças dando chiliques
diante de pratos saudáveis e coloridos. Resistem e exigem o trash food que a própria TV ofereceu
para elas nos intervalos publicitários e nos merchandisings dos programas infantis e desenhos animados.
A criança é,
então, colocada como um pequeno animal que precisa ser adestrado por meio de
contra-táticas comportamentais. O “show de realidade” atende ao primeiro fluxo
psíquico: o sacrifício. A criança é
imolada como a única responsável, escondendo-se o fato de que a própria TV
criou o seu pequeno monstro que agora oferece como diversão para os telespectadores.
Culpabilizada, a
criança vai ser submetida ao agenciamento do segundo fluxo: a disciplina. Assim como a ciência do
consumo usou de diversas artimanhas comportamentais e subliminares para induzir
a criança à viciosidade e compulsão, Gabriela Kapim vai igualmente aplicar
contra-métodos como, por exemplo, levar a criança-problema para um ensaio do Monobloco
no Rio de Janeiro. Lá ela deve aprender que, para tocar bem os instrumentos de
percussão, deve comer bastante feijão e se alimentar melhor.
A família é então
submetida a um programa com metas e prazos parecido com os métodos corporativos
motivacionais para tirar o máximo de produtividade e eficiência de seus
“colaboradores”.
Como em qualquer
reality show, está implícito o agenciamento do fluxo da vigilância: criança e família são submetidos ao monitoramento e
controle do especialista. É transformado em show aquilo que vivenciamos no
dia-a-dia pelo monitoramento e rastreamento das nossas ações, escolhas,
pensamentos e declarações em redes sociais, trabalho e lazer por meio de
analistas, empresas, comércio e indústria publicitária.
Socorro! Meu filho come mal acaba confirmando essa espécie de autocancelamento da televisão: essa
mídia desiste da pretensão que um dia teve de ser uma janela aberta para o
mundo para se tornar autista ou auto-referencial. Afinal, o reality show transforma em atração as
próprias mazelas pelas quais ela é responsável. Ironicamente, a TV aberta cria
a doença para mais tarde a TV a cabo oferecer o tratamento.
Pais anacrônicos
Mas olhando em
perspectiva, o show de realidade da alimentação infantil do GNT confirma uma
tendência discutida pela sociologia desde as teses da Escola de Frankfurt: a
família torna-se progressivamente uma instituição anacrônica diante da
necessidade do capitalismo tardio ressocializar os indivíduos não mais como
cidadãos, mas desta vez como consumidores dependentes do mercado – sobre esse
tema clique
aqui.
A indústria do
entretenimento e publicitária diariamente reforça a percepção de que os pais
são frágeis, anacrônicos e, por isso, incompetentes para dar conta de problemas
familiares, conjugais e educacionas. Nesse momento, os shows de realidades têm
em sua mira pais ou casais incapazes de gerir suas próprias vidas cotidianas,
transformando suas supostas fragilidades em shows que agenciam os fluxos do
sacrifício, vigilância, disciplina e violência.
Por isso, o mais irônico
no Socorro! Meus filhos comem mal é
que o pedido de socorro dos pais para uma especialista somente reforça a imagem
da fragilidade dos pais diante dos filhos. Pois é essa exatamente a origem da
cultura da reclamação infantil: quantos mais os pais parecem frágeis, mais a
criança se sente motivada a insistir em pedir aquilo que a própria mídia
oferece.
Ficha Técnica |
Título: Socorro! Meu filho come mal (série TV)
|
Direção: Lucas Margutti
|
Roteiro: Ana Abreu
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Elenco: Gabriela Kapim
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Produção: TvZero
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Distribuição: GNT
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Ano: 2013
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País: Brasil
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