Nos últimos dias os “colonistas” da imprensa corporativa tiveram dois chiliques: primeiro, quando o governo criou órgão na AGU para combater fake news. E, nessa semana, quando Lula visitou o presidente Fernández na Argentina. Cenários distópicos orwellianos começaram a ser pintados: um Governo que não só controlará a liberdade de informação, mas também decretará o fim do real no Mercosul da “moeda única”. Esses dois chiliques guardam uma oculta conexão: a grande mídia, supostamente produtora de “informação de qualidade e profissional”, é a principal fornecedora de matéria-prima para conteúdos das redes de extrema-direita. Entre a sensacionalista expressão “moeda única”, o déjà vu das críticas ao BNDES financiando “ditaduras de esquerda” e a crítica ambiental seletiva do gás de xisto argentino, fica clara a dialética grande mídia e estratégias de desinformação da extrema-direita.
“É constitucional ou não?”; “juristas consultados dizem que, no limite, pode cercear a liberdade de informar”; “não tem ordenamento jurídico!”; “acende alerta para arbitrariedades”. Com chiliques como esses os “colonistas” da grande mídia receberam a notícia do decreto do Governo Lula que criou a Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia.
Uma nova estrutura dentro da Advocacia-Geral da União (AGU) cuja ideia é “atuar em casos de flagrantes mentiras, com clara intenção dolosa e que podem causar danos à sociedade. Outro seria a disseminação de mentiras sobre os processos eleitorais, que ocorreram com frequência nos últimos anos”, como afirmou a AGU. Em outras palavras, combater fake news que deliberadamente visam sabotar políticas públicas com prejuízos à sociedade.
Sabujos do jornalismo corporativo, com o conhecido condicionamento pavloviano, foram treinados a olhar com desconfiança para qualquer iniciativa de interesse público que não parta do “mercado” ou da iniciativa privada. Afinal, para quê a AGU combater fake news se o mercado das notícias já possui o remédio: agencias de checagem, associações de jornalistas etc.?
Para a grande mídia, o remédio para desinformação é, como costumam repetir ad infinitum, “informação de qualidade e profissional” – que, como esse Cinegnose já discutiu anteriormente, é uma falácia porque fake news não é informação, mas “acontecimento comunicacional”. O que exige outras estratégias de combate – clique aqui.
“Colonistas” foram tomados pela surpresa e, instados pelos aquários das redações, resolveram esmiuçar as palavras e entrelinhas do decreto, invocando suas costumeiras fontes informação de pauta no campo jurídico para desenhar um quadro distópico orwelliano.
Até as manchetes terem sido (literalmente) tomadas de assalto pela invasão dos prédios dos Três Poderes em Brasília. E o risco de Lula criar uma Estado Big Brother ser atropelado pela pauta emergencial da defesa da Democracia.
Tirando o fato de que o decreto da AGU foi uma medida anticíclica (tira o combate à desinformação e monitoramento das redes das mãos do consórcio Forças Armadas – Judiciário – Grande Mídia que cevou o golpe de 2016 e a ascensão do bolsonarismo), qual seria outro motivo pelo chilique tão consonante dos grandes veículos de notícias?
Bastaram alguns dias para termos a resposta.
Bastou Lula visitar o presidente argentino Alberto Fernández para estreitar as relações bilaterais entre Brasil e Argentina, eixo estruturante do Mercosul, para a grande mídia ter outro chilique consonante entre seus “colonistas”. E Pior! O pânico ficou ainda maior quando Lula e Fernández sugeriram uma “moeda comum” para o Mercosul não depender da moeda norte-americana.
Não importa que Lula e Fernandez disseram isso como um projeto de longo prazo a ser tocado por futuros grupos de trabalho. E que na verdade, e de imediato, seu encontro foi para reativar as transações comerciais (esfriadas no governo Bolsonaro) através do financiamento de exportações garantido pelo Fundo Garantidor de Exportações (FGE). E com isso, afastar a possibilidade de a China dominar os acordos comerciais na região, enfraquecendo o Mercosul.
Os sabujos corporativos midiáticos mandaram às favas a distinção entre curto e longo prazo e se apegaram na bombástica expressão “moeda única”, sugerindo outra distopia: o fim do real, tragado pelo peso, moeda argentina que se derrete ante o dólar. “Moeda Única, Banco Central único!”, alarma o portal G1 – clique aqui.
Assim como o decreto para combate à desinformação da AGU, as intenções de Lula e Fernandez incorrem no mesmo pecado original: adotar medidas anticíclicas ao neoliberalismo, dessa vez no campo econômico.
Exportações para a Argentina (e de resto para todo o Mercosul) são exportações de alto valor agregado – essencialmente produtos manufaturados como tratores, caminhões, chassis, máquinas etc. Representando um primeiro movimento do Governo para retomar a industrialização do País, fazendo o movimento contrário ao do financismo neoliberal que projeta para o futuro uma neocolônia digital brasileira.
E ainda pior: mais uma vez, Lula ensaia o movimento geopolítico Sul-Sul, aspirando tornar o Brasil um líder regional que tenta induzir o desenvolvimento estável do entorno.
Mídia fornece matéria-prima para fake news
Como o editorial do jornal O Globo já havia sintetizado sobre o que pensa a grande mídia a respeito (“a industrialização é uma quimera” e “desindustrialização é uma tendência global” – clique aqui), os “colonistas” partiram para o front da batalha semiótica:
(a) Numa espécie de raciocínio “gradualista”, exigem que o Governo pense primeiro “para dentro”, para seus problemas internos como, por exemplo, o genocídio Yanomami. Com seus problemas interno, Lula supostamente iria “fraco” para o cenário internacional. No programa “Arena CNN”, até o ex-jogador Casagrande, em meio ao linchamento da “moeda única”, cravou: “é um jogo sem estratégia!”.
(b) Lula foi para a Argentina apenas para ajudar o seu amigo político em um ano eleitoral – afinal, Fernández o visitou nos cárceres de Curitiba. Ele apenas estaria retribuindo a demonstração de amizade de um amigo.
(c) BNDES bancando a moeda única? É o modus operandi do PT, que abrirá mais flancos para a corrupção.
(d) E a indefectível expressão “PT não faz autocrítica” voltou: Lula fala em defender a democracia, mas apoia ditaduras de esquerda como Cuba e Venezuela.
Essas quatro “críticas” parecem verdadeiras fake news criadas pela própria grande mídia (e depois turbinadas pelas redes extremistas de direita) nos tempos da guerra híbrida brasileira que culminou no golpe de 2016. E agora requentadas, trazendo uma curiosa sensação de déjà vu: a crítica (a) remete à “fraqueza” da presidenta Dilma, incapaz de manter em segurança de seus próprios e-mails e da Petrobrás diante dos grampos da NSA (lembra das denúncias de Snowden? Repercutidas oportunisticamente pelo Jornal Nacional em 2013?). À época a avaliação era que Dilma era "fraca", mais preocupada com os Brics do que com os problemas internos.
A crítica (b) reedita todas as teorias conspiratórias do Foro de São Paulo que chegou à paródia com a URSAL do inefável candidato à presidência Cabo Daciollo – Lula e seus amigos esquerdistas da América Latina.
A crítica (c) então remete a todas as fake news de que Lula aparelhou o BNDES para através do banco financiar países totalitários (principalmente de esquerda) trazendo prejuízos para a economia brasileira. Quando na verdade o BNDES financia a exportação de serviços de empresas brasileiras, agregando valor e empregos qualificados no Brasil.
Nessa semana, voltou à ribalta da grande mídia todas as fake news envolvendo Porto de Mariel em Cuba e calotes da Venezuela. O próprio informe do BNDES de 2019 (portanto, no governo Bolsonaro) mostrou que a maior parte do financiamento de 1998 a 2017 está muito longe de uma “ditadura socialista”: o principal destino são os Estados Unidos, com US$ 17 bilhões. Depois vêm Argentina (US$ 3,5 bilhões), Angola (US$ 3,4 bilhões), Venezuela (US$ 2,2 bilhões) e Holanda (US$ 1,5 bilhão). No total, são mais de 40 países.
E mais: mostrando lucro líquido de US$ 2,2 bilhões no período Lula-Dilma nessa estratégia de incentivo para outros países contratarem empresas brasileiras – que a Lava Jato condenou Lula por “tráfico de influência”.
E a crítica (d) é o verdadeiro “apito de cachorro” para manter atiçado o que este humilde blogueiro chama de “Exército Psíquico de Reserva” – o ativo da extrema-direita que poderá ser, a qualquer momento, mais uma vez convocada para desgastar o governo Lula.
Nessa perspectiva, compreende-se o chilique da grande mídia contra a criação de um órgão de Estado para combater fake news: o jornalismo corporativo teme ser descoberta como o próprio fornecedor de “informações de qualidade e profissionais” que são matéria-prima para as fake news das redes de extrema-direita.
Essa oculta conexão entre as “informações de qualidade e profissionais” e a estratégia de informação de extrema-direita pode, por exemplo ser acompanhada no caso de um dos presos na invasão de Brasília, Kingo Takahashi.
Aecista nos tempos que antecederam ao golpe contra Dilma Rousseff, estava sempre ligado na Globo News. Depois radicalizou-se, quando virou bolsonarista, quando o jargão “Globo lixo” passou a fazer parte do seu repertório – clique aqui.
Essa dialética entre grande mídia e o conteúdo do discurso da extrema-direita e, principalmente, o jogo duplo do jornalismo corporativo passa desapercebido por muitos analistas.
Chantagem ambiental
Porém, a simbólica foto no encontro do Fórum Econômico de Davos (Marina Silva posando ao lado da ativista Greta Thunberg - sobre a construção da persona da ativista clique aqui), mostra que a grande mídia tem mais uma arma guardada no arsenal das bombas semióticas. E que já fez o primeiro teste nessa semana.
Dentro das negociações em torno do comércio Brasil-Argentina, o Ministro da Economia da Argentina, Sérgio Massa, ofereceu o gás de Vaca Muerta (em Neuquén, próxima à Província de Santa Fé) como promessa de abastecer o mercado brasileiro com gás natural barato. Faz parte de uma pauta mais ampla de cooperação entre os dois países no setor de energia e que passa, dentre outros temas, por parcerias na área de transição energética.
A questão é não só o investimento do BNDES na construção do gasoduto para o Brasil (no qual o próprio gás barato seria a garantia do investimento). O fato é que a Argentina explora o gás de xisto, extraído com a técnica de fracking com alto impacto ambiental – fraturamento hidráulico subterrâneo altamente poluente.
“Contradição da gestão Lula, dizem especialistas!”, grita a grande mídia, enquanto veículos como Globo News correm atrás do Ministério do Meio Ambiente para transformar essa “contradição” em “ruído” e, com alguma sorte, na primeira crise entre o desenvolvimentismo de Lula e o ambientalismo de Marina Silva.
Outra sensação de déjà vu, recall do conflito entre Lula e Marina Silva em torno da construção da usina hidrelétrica Belo Monte, no Pará, e a repercussão internacional. Na época, Marina, ministra da pasta do meio ambiente, perdeu a queda de braço com Dilma Rousseff, então ministra das Minas e Energia. Levando a consequente saída do Governo e do PT.
Fracking e a exploração do gás de xisto é largamente explorado nos EUA e a fonte energética mais barata que turbinou o desenvolvimento econômicos das últimas décadas. A técnica de extração requer grande volume de água, emite gases que provocam o efeito estufa, como metano, libera ar tóxico na atmosfera. Estudos indicam que esse tipo de operação para extrair óleo e gás podem levar a perda dos habitats de plantas e animais, declínio das espécies, disrupções migratórias de espécies e degradação de terra.
Por isso, durante toda a eleição à presidência, foi um tema tabu para os democratas e para o candidato Joe Biden, apesar da sua agenda ambientalista.
Aqui entra em ação a crítica midiática seletiva: Joe Biden é celebrado pela grande mídia com uma liderança dentro da agenda das soluções ambientais contra as mudanças climáticas, além de pressionar o Brasil por medidas em defesa da floresta amazônica.
Mas se cala diante de uma flagrante contradição: Biden finge não ver os problemas internos da exploração de fonte não renovável presente na maioria dos estados daquele país com graves efeitos ambientais.
Mas o jornalismo corporativo consegue ver “contradição” em Lula. O que decorre disso, é a explosão da bomba semiótica da chantagem ambiental, para desgastar qualquer tipo de política de Estado desenvolvimentista que desafie o “destino manifesto” brasileiro de se tornar uma neocolônia digital – afinal, como pensa O Globo, “industrialização é uma quimera” na Quarta Revolução Industrial.