Estamos à beira do
desfecho de uma guerra híbrida iniciada em 2013 com as chamadas “Jornadas de
Junho”. Num mecanismo tão exato quanto um “tic-tac”, passo a passo, um depois do outro, irresistível, sistemático: a Política foi demonizada,
um governo foi derrubado, o psiquismo nacional envenenado e a polarização
despolitizou e travou qualquer debate racional. Tudo iniciado pelas bombas semióticas
detonadas diariamente pelas mídias de massas. E nesse momento o desfecho ocorre na velocidade viral das redes sociais. Por isso, Bolsonaro converte-se em um “candidato-avatar”:
a Nova Direita descobriu a tática do “Firehose” – a espiral de boatos e
desmentidos pelos “fact-checking” cria paradoxalmente o subjetivismo e relativismo
que blinda o próprio candidato-avatar. Apesar de toda essa pós-modernidade, a
Nova Direita tem o mesmo elemento de estetização da política criada pelo fascismo histórico: a narrativa ficcional cômica
– de programas de humor da TV, Bolsonaro despontou como um “mito” de quem
ria-se e não se levava a sério. Por isso, circulou livremente. Hoje, é o
protagonista do “gran finale” da guerra híbrida. Como enfrentar um avatar?
Caro leitor, observe a foto abaixo. No
futuro, quando pesquisadores procurarem entender como o Brasil foi capaz de
destruir a Nova República e a redemocratização que levou à Constituição de 1988
(jogando o País numa distopia muito próxima à série brasileira Netflix 3%), certamente escolherão essa foto como
símbolo desse movimento irracional de autodestruição.
Nesse flagrante postado pela repórter
Bárbara Baião, da CBN, vemos uma funcionária de uma barraca se escondendo assustada com a invasão de cabos eleitorais numa
visita do candidato à presidência Geraldo Alckmin na Baixada Fluminense em
agosto desse ano. Como não conseguiu ser atendido, Alckmin se dirigiu a uma
padaria mais próxima para tomar um cafezinho na tradicional foto de corpo-a-corpo
numa campanha política.
É uma foto com raro poder de síntese
(o fotógrafo Cartier-Bresson chamava de “momento decisivo”): se no passado a
política de corpo-a-corpo era um evento até de festa com palanques e muitos
momentos folclóricos (como Jânio Quadros, na campanha de 1960, com caspa nos
ombros, sentado no meio fio tirando do bolso do paletó um sanduba de
mortadela), hoje é um mix de incômodo e pânico.
Depois de anos de um trabalho diário
do complexo jurídiciário-midiático em criar o ódio anti-PT e destruir a própria
Política e a figura dos políticos, para as pessoas comuns imersas nos problemas
do dia-a-dia, eleições e debates tornaram-se um estorvo.
Sintoma de uma espécie de
“refeudalização da esfera pública”, muito próximo daquilo que Habermas (“Mudança
Estrutural da Esfera Pública”) e Umberto Eco (“A Nova Idade Média”) antecipavam
como movimento histórico regressivo: absorvidas pelos seus problemas cotidianos
e amedrontadas, as pessoas escondem-se nas suas vidas privadas, alheios ao que
se passa lá fora – na Idade Média, o poder político da Igreja e as Cruzadas. Hoje,
escondem-se alheios e bestificados às ameaças aos direitos e a vida cada vez
mais difícil.
Ainda mais quando a própria Justiça
Eleitoral, seguindo esse movimento de esvaziamento da Política, praticamente
engessou o formato das eleições: menos tempo de campanha (principalmente entre
os turnos), a liberdade para o “autofinanciamento”, restrição de diversas
formas tradicionais de propaganda em ambientes públicos. Chegando ao ponto de no
dia das eleições somente serem permitidas manifestações políticas individuais e
silenciosas (adesivos, broches etc.). Qualquer manifestação coletiva se
tornaria “crime eleitoral”. O que claramente prejudicou centro-esquerda e
esquerda, cuja militância tradicional sempre foi mais aguerrida e numerosa.
Sem falar nos modelos igualmente
engessados dos debates entre candidatos na TV com poucos segundos para se fazer
perguntas, réplicas e tréplicas.
Sem o debate, o contraditório ou
eventos políticos que ocupem os espaços públicos, tudo conduziu para a atual
despolitização e o surgimento do suposto “novo”, identificado com aqueles
candidatos “anti-política” e “antissistema”. Resultando nessas eleições na
chamada “renovação” das Assembleias, Câmara e Senado: uma profusão de pastores
evangélicos, policiais, capitães, sargentos, juízes, ex-ator pornô, empresários
– como ironiza o humorista Marcelo Adnet, candidatos a CEOs do Brasil.
O nascimento de um avatar
Sincronicamente, tudo isso favoreceu a
estratégia de campanha do candidato Jair Bolsonaro concentrada em redes sociais
– afinal, contou com a expertise do homem-chave da campanha de Trump, Steve
Bannon. Aquele que contratou a Cambridge Analytics para roubar dados acumulados
dos perfis do Facebook para descobrir pessoas suscetíveis a receber teorias
conspiratórias, sentimentos difusos de contrariedade, perfis paranoicos e assim
por diante – clique aqui.
Desconstruída a Política e
despolitizado o debate (centrado nos conflitos culturais, morais e de costumes,
deixando de lado a economia política), ficou evidente a eficiência da estratégia
de pitacos em tweets ou vídeos postados no Whatsapp por Bolsonaro. A partir do
atentado que sofreu, praticamente se converteu em um avatar – um tipo de
comunicação auto-evidente, fechada em si mesma, construída sobre uma colcha de
retalhos de mantras, slogans e frases feitas, que logo depois se desdobram em
memes para viralizar nas redes sociais.
E até mesmo virou um avatar em um game on Line na qual a versão virtual do candidato do PSL ganha pontos ao bater e matar personagens mulheres, LGBTs e políticos de esquerda. É o game "Bolsomito 2k18" - clique aqui.
O que imediatamente nos faz lembrar do
episódio da série britânica Black Mirror,
“The Waldo Moment” – um mascote virtual com linguagem chula que “diz umas
verdades sobre políticos” vira um candidato “antissistema” boçal e que se torna
a esperança da nação. Não importa o que diga, está blindado pela opinião pública.
Waldo torna-se um ídolo, porque da Política ninguém espera mais nada.
Essa natureza “avatar” de Bolsonaro não
só revela o esvaziamento de tudo aquilo que chamamos de Política ou esfera
pública (o espaço das ofertas de valores pelos meios retóricos, seja pela tentação
ou sedução, agora substituídas pela intimidação e provocação) como também da
propaganda através das mídias de massificação – rádio e TV.
O fascismo é cômico
O “novo” na política (a nova direita)
descobriu a cultura viral: apela não mais para as massas em uma esfera pública,
mas agora para indivíduos isolados em seus dispositivos móveis, numa esfera
pública refeudalizada. Para pessoas cuja percepção da Política e dos políticos
é análoga a da assustada funcionária da barraca da foto acima.
Porém, o curioso é que no seu início
Bolsonaro não era uma avatar. Paradoxalmente, começou a ser conhecido através
das mídias de massas, como um personagem cômico, non sense, folclórico, em programas televisivos de humor como Pânico na Band ou nas matérias híbridas
de telejornalismo e humor do CQC.
Os quadros das “mitadas do Bolsonabo”
no Pânico da Band ou os arroubos
“folclóricos” de Bolsonaro no quadro “O Povo Quer Saber” no CQC em 2011, criando polêmicas bizarras com
Preta Gil, foram alguns exemplos. Dessa maneira começou a construção do “mito”
em tipos de programas televisivos que procuravam uma linguagem transmídia entre
TV e convergência tecnológica.
Historicamente todo fascismo começa
com personagens “cômicos”: histriônicos, canastrões, overacting. Por exemplo, Theodor Adorno (expoente da chamada Escola
de Frankfurt) achava que o nazi-fascismo era cômico, principalmente porque
ninguém levava a sério seus líderes no início, por emularem o histrionismo do
cinema mudo. O que a princípio permitiu circular livremente esses discursos –
Hitler e Mussolini eram amantes do cinema.
Por isso o fascismo (cuja principal
estratégia foi a esteticização da política) é a canastrice cinematográfica como
elemento que confere verossimilhança a discursos vazios e clichês – verossímil
porque repete de forma hiper-real na política aquilo que as pessoas se
acostumaram a ver na narrativa ficcional.
O que dizer então da jurista Janaína
Paschoal, deputada mais votada por São Paulo pelo PSL (partido de Bolsonaro e
autora do pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff), girando a
bandeira nacional, descabelada, dando socos no ar em plena Faculdade de Direito
da USP em 2016, como se estivesse possuída. Memes e piadas nas redes sociais,
misto de vergonha alheia e gozação, a comparavam com a protagonista do filme O Exorcista.
Hoje, participa da “renovação” da
política, junto com um ex-ator pornô e de telenovelas Alexandre Frota, do mesmo
partido. Não é por outra razão que todas figuras autoritárias surgidas nos
últimos anos são igualmente cômicas: Berlusconi na Itália, Trump nos EUA,
Sarkozy na França.
Na verdade esse traço cômico do
fascismo foi a ante-sala das atuais estratégias híbridas nas redes sociais por
meio de memes e teoria conspiratórias alucinadas e metonímicas – onde o
candidato Cabo Daciolo é o paroxismo, a caricatura da caricatura do cômico no
fascismo, capaz de ver ligações conspiratórias dos EUA com a Rússia e a China,
todos eles supostamente numa conspiração internacional iluminati contra o
Brasil. E de certa forma, o hiper-histrionismo do Cabo Daciolo acaba conferindo
uma inesperada “verossimilhança” à canastrice de Bolsonaro – afinal, temos o
prazer em descobrir alguém ainda muito mais caricato do que o “coiso”.
A blindagem do “Firehose”
Desde o discurso de um propagandista
nazista em 1933 no Palácio dos Esportes em Berlim, quando calou um
propagandista comunista ao comprovar que comunismo e capitalismo eram duas
faces de uma mesma moeda, com retórica fulminante inspirada em modelos de
narrativas ficcionais do cinema, a esquerda jamais se recuperou. E até aqui, em
pleno século XXI, ainda não foi capaz de entender como os nazifascistas
conseguiram manipular diferentes meios de comunicação de massas para estetizar
a política – clique aqui.
Imagine então nesse momento em que a
cultura da massificação está sendo superada pela cultura viral das mídias de
convergência? Enquanto a direita consegue dar um segundo salto para a política
algorítmica das redes sociais, a esquerda ainda mal conseguiu digerir o que foi
a conquista de corações e mente através das velhas mídias de massas no século
XX.
A Nova Direita conseguiu entender rapidamente
como as novas tecnologias de convergência dão eficácia a velhos conteúdos como
o ódio, polarização, medo, racismo etc. Mas principalmente compreendeu, ao lado
das táticas atuais da Guerra híbrida que no Brasil chega ao seu estágio
derradeiro (o entronamento do “novo” no poder), que até mesmo o suposto combate
às fake News com as agências e “plataformas” de checagem de notícias, acabam
por reforçar o próprio sofismo dos fake News.
O nome desse efeito chama-se
“Firehose” – a estratégia de fabricar diariamente boatos, para depois serem
negados pela checagem, fazendo com que a realidade se torne subjetiva. A ideia
é justamente criar uma espiral incontrolável de interpretações de tal forma que
faça a opinião pública não acreditar em fato algum. Confirmando o ideal dos sofistas que tanta
dor de cabeça deram a Aristóteles na Antiguidade: se todo mundo mente, resta
escolher a narrativa que mais agrade – a mais retórica, engraçada, inteligente,
bizarra. Assim como os inumeráveis vídeos dos youtubers. Ou assim como o
personagem Waldo do episódio de Black Mirror.
Com a tática de Firehoose, quebra-se o
consenso sobre a realidade (uma das bases do contrato político e da esfera
pública). Nessa situação absurda, não adianta mais a checagem dos fatos acusar
um boato de mentiroso – o público já comprou a narrativa na qual se agarraram.
Então, como enfrentar um candidato “Avatar”?
A estratégia de comunicação de um avatar não é discutir com seu interlocutor (o
outro candidato) com proposições ou argumentos. É gritar para a maioria
silenciosa (para aquela pobre funcionária da barraca da foto acima) através das
correntes das redes sociais – mídia ideal porque liquefaz todas as narrativas
no relativismo.
Como enfrentar um avatar?
O mal já foi feito: estamos vivendo o
desfecho da guerra híbrida iniciada em 2013 com as bombas semióticas diárias
através das mídias de massas, tão analisadas por esse Cinegnose (clique aqui) e que a esquerda pouco se deu conta do propósito que
estava por trás – apenas jogava na conta do “conservadorismo da grande mídia”.
Demonizada a Política e os políticos,
criada a irresistível polarização política e envenenado o psiquismo nacional, web
bots da direita agora surfam velozmente nas redes sociais com o poder catártico
das “mitadas” de um avatar.
No pouco tempo que falta antes do fim,
resta a Haddad, se não lutar no mesmo campo simbólico da direita (sair da bolha
dos convertidos e também “gritar” para a maioria silenciosa), pelo menos deve
tentar se descolar de todos os mitos criados pela tática híbrida de Bolsonaro:
(a) Descolar-se de Lula – Haddad começou
mal o segundo turno, com uma visita aos cárceres de Curitiba imediatamente após os resultados
eleitorais do primeiro turno;
(b) Descolar-se do PT – mais do que o
necessário discurso propositivo para se diferenciar do discurso vago e genérico
de Bolsonaro, Haddad também deve “mitar”: no pouco tempo que resta construir
uma imagem, personalismo. Muito mais do que “Haddad ser Haddad”, deve ser
personalista, descolando da imagem de “poste” ou mais um membro do quadro
partidário;
(c) Fugir dessa verdadeira armadilha
criada pela Guerra Híbrida e pela direita que são as discussões identitárias,
de costumes, culturais etc. Nisso a direita nada de braçadas através da negatividade.
O discurso deve partir para a economia política, política econômica, políticas
educacionais, culturais etc. – pontos nulos no discurso vago de Bolsonaro, que
sempre pede socorro ao seu “posto Ipiranga” Paulo Guedes;
(d) E, sim! Pedir desculpas à Nação.
Mas não pela formação da “maior organização criminosa do mundo”. Mas por não
ter compreendido o que realmente estava por trás daquelas “Jornadas de Junho”
de 2013. Tanto no seu aspecto de verdade (a insatisfação de uma geração com a
democracia representativa) quanto no de
mentira e manipulação – a Guerra Híbrida do Departamento de Estado dos EUA, que
semeou diversas “primaveras” (Revoluções Populares Híbridas) explorando mazelas
e pontos fracos de cada país.
Isso sim, deve ser colado na imagem de Bolsonaro.
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